segunda-feira, 9 de maio de 2022

Se pode e deve o Parlamento suscitar a audição de autarcas

 

O “Expresso” noticiou, a 29 de abril que, segundo informações da embaixadora da Ucrânia em Lisboa, refugiados ucranianos foram recebidos na Câmara de Setúbal por russos simpatizantes do regime de Vladimir Putin e que responsáveis pela LIMAR (Linha de Apoio aos Refugiados) estavam a fotocopiar documentos dos refugiados, entre os quais passaportes e certidões das crianças.

Igor Khashin, líder da comunidade russa em Setúbal, que participava no acolhimento de refugiados ucranianos com a mulher, é monitorizado, há alguns anos, pelo SIS (Serviço de Informações e Segurança), estando identificado e sob observação dos serviços, que não fazem investigação criminal, mas enviam relatórios. Além disso, os conselhos de compatriotas russos, como aquele que Khashin dirigia em Portugal, são acompanhados com mais atenção desde 2014, após a anexação da Crimeia pela Rússia. Aliás, o Primeiro-ministro foi claro na sua primeira declaração sobre o escândalo, ao dizer que os serviços secretos estavam a monitorizar a situação:

A guerra também se trava neste jogo de informações. Portugal é um Estado de Direito, onde há serviços próprios para recolher e tratar informações, para assegurar a proteção de refugiados.”.

Não há, contudo, qualquer investigação de foro criminal na Polícia Judiciária e no Ministério Público relativa às atividades deste russo. Porém, se o ACM (Alto Comissariado para as Migrações), em quem o Governo delegou a investigação do caso, averiguar da existência de algum tipo de crime no processo a justiça agirá em conformidade.

O dirigente da Edintsvo (Associação de Emigrantes de Leste), ora liderada pela sua mulher Yulia Khashina, funcionária da Câmara de Setúbal desde dezembro (entretanto desligada daquele conteúdo funcional), participava na receção dos refugiados ucranianos naquela cidade: desde a receção dos autocarros, preenchimento de dados no IEFP ou tratamento de processos na LIMAR, o gabinete de acolhimento a estes imigrantes, na dependência da câmara. Quando chegavam autocarros da Ucrânia, as primeiras palavras ditas aos que fugiam da guerra eram em russo, quando Khashin traduzia as informações dadas por uma funcionária autárquica. Alguns voltavam a encontrá-lo no balcão da LIMAR, no Mercado do Livramento, a receber documentos e a fazer perguntas.

Muitos refugiados em Setúbal ficaram assustados e com medo de represálias. Mas um refugiado contou como levou uma mulher, sua familiar, com crianças, ao mesmo gabinete. O Igor estava lá com um computador portátil e perguntava pelos dados das pessoas. Uma funcionária saía com o passaporte e outros documentos para outra sala e fazia cópias enquanto ele conversava.

A Câmara de Setúbal não explicou o que pode ter acontecido aos dados. Depois de ter garantido que não havia quebra de sigilo, André Martins, o presidente da câmara da CDU pelos Verdes, disse à SIC que não metia “as mãos no fogo por ninguém”. Depois, remeteu-se ao silêncio. A CNPD (Comissão Nacional de Proteção de Dados) iniciou um inquérito à autarquia, que nem tinha encarregado de proteção de dados (foi nomeado no dia a seguir à notícia). E a Inspeção-Geral das Finanças também investiga a autarquia no âmbito da tutela administrativa. Mas o presidente da Câmara de Setúbal pediu silêncio enquanto decorre a investigação sobre o acolhimento de refugiados e, mercê do voto contra do PS, não será ouvido na Assembleia da República (AR) sobre o acolhimento de refugiados ucranianos. Na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos Liberdades e Garantias, em reunião autorizada pelo Presidente da AR, apesar de as reuniões estarem suspensas, já que se debate o OE 2022, em fase de especialidade, todos os partidos se mostraram pela audição, à exceção do PS, o que levou à rejeição dos requerimentos apresentados.

Foram apresentados requerimentos pelo BE, PCP, PAN, Chega, Iniciativa Liberal e PSD.

Além da do autarca, foram rejeitadas, com o voto contra do PS, as audições da Embaixadora da Ucrânia, da secretária-geral do Sistema de Informações da República e do diretor nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).

Por outro lado, a Ministra-Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, e o Ministro da Administra Interna, José Luís Carneiro, serão ouvidos na AR sobre o acolhimento de refugiados. E, além destas entidades, foram aprovadas, por unanimidade, as audições da Associação de Ucranianos em Portugal, da Alta-Comissária para as Migrações, da Secretária de Estado da Igualdade e das Migrações e do Secretário-geral do Sistema de Segurança Interna.

No debate, Pedro Delgado Alves, do PS, explicou que o presidente de câmara “responde perante a Assembleia Municipal”, pelo que é necessário “respeitar o poder autárquico” e as questões institucionais; e sustentou que estas questões devem ser dirigidas à câmara e ao seu presidente, sendo a Assembleia Municipal o seu local de fiscalização politica.

Do lado do PSD, André Coelho Lima perguntou “de que tem medo o PS”, lembrando que, em 2021, os socialistas apresentaram um requerimento para Fernando Medina ser ouvido na AR sobre o envio de dados de manifestantes russos para o Kremlin. O liberal Rodrigo Saraiva assume que “ficou banzado” com a postura do PS. E Pedro Filipe Soares, do Bloco de Esquerda, acusou os socialistas de se estarem a precaver e atirou:

O PS com maioria absoluta tenta impor uma vontade preventiva, não vá, de hoje para amanhã, ser um autarca do PS a ser chamado à AR. Está a fazer agora, com maioria absoluta, o que não pôde fazer no ano passado.”.

Conhecida a posição de Rui Rio contra a postura do PS, Vital Moreira acompanha, do blogue “Causa nossa”, a alegação de Pedro Delgado Alves, aduzindo que “os chefes de governo municipal, tal como os chefes de governo regional, não podem ser chamados a dar explicações na AR, pela simples razão de que não são responsáveis perante ela, só respondendo politicamente perante as respetivas assembleias municipais e os respetivos eleitores locais”. E acrescenta:

É fácil ver que uma tal possibilidade daria ao partido maioritário na AR a possibilidade de ‘chamar a capítulo’ e de ‘chatear’ politicamente as câmaras municipais dos partidos da oposição”.

E conclui que, “não estando obviamente prevista na Constituição, uma tal eventualidade representaria, em qualquer caso, uma subversão do regime constitucional de autonomia municipal e do sistema de responsabilidade política entre nós”.

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Entretanto, Luís Montenegro, um dos candidatos socialdemocratas às eleições internas do seu partido e seu antigo líder parlamentar, sustenta que o caso de Setúbal “é suficientemente grave para se terem de escrutinar procedimentos que têm que ver com entidades que são ajudadas e reconhecidas pelo Estado”, pelo que veio a terreiro solicitar à oposição parlamentar que avalie “a possibilidade de constituir uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) ao processo de acolhimento de refugiados da Ucrânia no município de Setúbal por cidadãos russos com alegadas ligações ao regime de Putin, para que seja apurada a verdade com rapidez, competência e independência, e para se poder ultrapassar o bloqueio que o PS está a fazer”, disse Montenegro à Lusa, defendendo:

Este instrumento pode ser utilizado de uma forma potestativa, sem a necessidade de oposição em termos de inviabilização por parte da maioria absoluta, e a sua consagração, na lei e no regimento, é precisamente para este tipo de situação”.

Trata-se, no dizer de Montenegro, de “escrutinar procedimentos que têm que ver com entidades que são ajudadas e reconhecidas pelo Estado, que trabalham em colaboração direta com uma autarquia local e também informações que estão ou estarão na posse do Governo há vários anos, pelo menos desde 2014, desde a anexação da Crimeia por parte da Rússia”.

A três semanas das eleições para a liderança do PSD, Montenegro quer marcar posição. Após ter sido noticiado que os Serviços de Informações da República Portuguesa já monitorizam e acompanham a atividade dos russos com alegadas relações ao Kremlin desde 2014, o candidato à liderança do PSD defende que a AR tem de fazer mais e insta a oposição (com o PSD à cabeça) a constituir uma comissão de inquérito para apurar a verdade, “doa a quem doer”, aliás como apregoa o Presidente da República. Com efeito, para Montenegro, “há elementos que nos fazem concluir que esta informação já seria conhecida antecipadamente por parte do Governo”: por um lado, o “uso e abuso da maioria absoluta do PS para inviabilizar” as audições dos envolvidos; e, por outro, o facto de as secretas reportarem diretamente ao Primeiro-Ministro e, como tal, isso ser indício suficiente para presumir que o Governo sabia e que a relação entre a autarquia e o Estado, o que pode levar a que órgãos da administração possam ter sido coniventes com a situação.

Sem se referir diretamente ao PSD, o candidato socialdemocrata, defendeu que a oposição deve assumir a responsabilidade da liderança do processo. Com efeito, estamos a iniciar uma legislatura nova e de maioria absoluta, devendo o abuso da maioria ser evitado pelas oposições, que “devem aproveitar todos os instrumentos que o regimento e a lei lhe conferem”. E concluiu:

Se tiver havido falhas e se essas falhas tiverem responsáveis, só recuperaremos a nossa imagem se os responsáveis assumirem a sua responsabilidade. Se forem membros da administração pública, devem cessar funções; e, se forem membros eleitos, devem demitir-se ou ser demitidos.”.

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É de duvidosa certeza que a AR não tenha competência para suscitar uma audição ordinária de um autarca e é de questionar porque uma CPI só por si tenha essa competência. Sabe-se que a AR tem ouvido pessoas que, à partida, não teriam obrigação de comparecer perante os deputados. Com efeito, os gestores públicos e equiparados respondem, como qualquer titular de cargo público e qualquer pessoa coletiva de direito público ou equiparada, perante os tribunais administrativos e fiscais e, no caso, das contas, são fiscalizados pelo TdC (Tribunal de Contas), bem como nos tribunais judiciais em matéria civil e criminal; e os gestores privados respondem perante as administrações, perante os reguladores e, em matéria civil ou criminal, perante os tribunais judiciais e, em alguns casos, perante o Tribunal da ConcorrênciaRegulação e Supervisão. Não obstante, muitas entidades têm sido ouvidas na AR, embora com efeitos limitados em audições ordinárias ou em sede de CPI.

É certo que os titulares dos executivos autárquicos respondem perante as respetivas assembleias. Porém, sabemos como é difícil, mesmo quando não há maioria absoluta, levar a cabo um ato de fiscalização pelo órgão deliberativo. E, quando ele é viável, a solução passa quase exclusivamente pela apresentação de moção de censura ao executivo, que pode levar à dissolução do órgão e a eleições intercalares. Porém, a responsabilidade por ilícito fica na penumbra.  

Argumentar com a autonomia e com a falta de preceito constitucional leva a questionar se, com tanta autonomia, é lícita a intervenção recorrente das entidades concretizadoras da tutela administrativa, para lá do TdC e dos tribunais administrativos e dos tribunais judiciais, bem como a pressão para que as autarquias informem assiduamente a administração central sobre tantas materiais ou como documentos importantes para as autarquias carecem do aval do Governo para terem eficácia. Estão neste caso o PDM e outros planos de ordenamento do território (vg: planos de pormenor), tal como as declarações de utilidade pública administrativa.

Em todo o caso, se em Setúbal, há suspeitas de cópia de documentos pessoais de refugiados sem autorização dos mesmos e/ou recolha de dados que possam colocar em risco a segurança dos declarantes, de que estará à espera o Ministério Público para intervir? Não vale a pena aduzir, como Marques Mendes, que a questão é política e que em inquérito não se apuram determinadas irregularidades, que nunca ficam registadas. Certamente que há outros meios de prova. Há que investigar e agir em conformidade. E, se uma CPI pode ajudar, porque não a constituir numa AR que se tem assumido como a Casa da Democracia?

2022.05.09 – Louro de Carvalho

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