segunda-feira, 9 de maio de 2022

O Belo, Bom e Verdadeiro Pastor e os pastores satélites

 

O 4.º domingo da Páscoa é conhecido como o “Domingo do Bom Pastor”, pois todos os anos a liturgia propõe um trecho do capítulo 10.º do Evangelho de João, em que Jesus é apresentado como o Belo Pastor (“ho poimên ho kalós”), sendo, portanto, este o tema central que a Palavra de Deus nos propõe na liturgia deste dia.

O trecho proposto para este Ano C (Jo 10,27-30) apresenta as seguintes ideias: as ovelhas do Senhor ouvem-Lhe a voz; Ele conhece-as, chama cada uma pelo seu nome e partilha com elas a vida; elas seguem-No; Ele dá-lhes a vida eterna, pelo que não perecerão, pois ninguém as arrebatará da mão do Pastor; foi o Pai, que é maior do que todos e ninguém pode arrebatar nada da mão do Pai, quem Lhe deu as ovelhas; e Jesus e o Pai são um só (“kaì egô kaì ho patêr hén esmén”).

Na verdade, o capítulo 10 do Evangelho de João é dedicado à catequese do Pastor, apresentando com a imagem do pastor uma catequese sobre a missão messiânica de Jesus: a obra do Messias consiste em guiar o homem para as pastagens verdejantes e para as fontes cristalinas de onde brota a vida em plenitude, como preconiza o salmista do Salmo 23. O Pastor que o Evangelho diz Belo, é simultaneamente Bom e Verdadeiro, pois estes conceitos (belo, bom, verdadeiro) entrosam-se.

A alegoria do Belo Pastor não é invenção de João, nem de Lucas, que a utiliza no capítulo 15 do 3.º Evangelho. Este discurso simbólico está construído com materiais provenientes do Antigo Testamento, em especial do capítulo 34 de Ezequiel onde se encontra a chave de compreensão da alegoria do pastor e do rebanho. Falando aos exilados na Babilónia, Ezequiel anota que os líderes de Israel foram, ao longo da história, falsos pastores que conduziram o Povo por sendas de morte e de desgraça, pelo que o próprio Deus vai assumir a condução do seu Povo; porá à frente do seu Povo um Belo Pastor (o Messias), que o livrará da escravidão e o encaminhará para a vida. Assim, a catequese do 4.º Evangelho mostra que a promessa de Deus via Ezequiel se cumpre em Jesus. Ao invés do líder hodierno, fixado em critérios de eficácia política, económica ou empresarial, temos o Pastor que se dedica pessoal e amorosamente a cada um e gera comunidade de pessoas.  

Entretanto, é de advertir que a alegoria do pastor e do rebanho deve ser e entendida e assumida tal como o hagiógrafo a expõe e não como eventualmente o leitor ou ouvinte esteja atreito a lê-la segundo a experiência que tem do pastoreio e do modo como se sente com alguns que se têm apresentado como pastores da e na Igreja. O Belo Pastor é Cristo e não qualquer outro.

Os que nós consideramos pastores na Igreja só o serão se o forem à maneira de Cristo, cumprindo a profecia de Jeremias: Dar-vos-ei pastores segundo o meu coração, os quais vos apascentarão com inteligência e sabedoria(Jr 3,15). Terão de estar como planetas sempre em sua órbita com Jesus, o Pastor-Sol, de quem recebem a luz, o calor e a vida. Não pode suceder que se afastem de Jesus como a Lua se está a afastar da Terra. Têm que, na sua órbita, ver e escutar Cristo e entender o mundo e servi-lo. Isto é avesso a qualquer tipo de carreirismo, mercenarismo e clericalismo – tenham as modalidades que tiverem. Não podem dizer que não têm vocação para mártires. Com efeito, se a proposta de salvação preconizada por Jesus, de que eles são testemunhas e arautos, exigir a entrega da vida até à morte, não podem deixar de correr esse risco.

Por outro lado, a ideia do rebanho não coincide com a do gregarismo: para onde vai um vão todos, o que um diz ou faz, dizem-no ou fazem-no os outros. Antes, cada um aceita viver em comunidade e estar atendo à voz e à chamada do Pastor, como deve afeiçoar-se a Ele, tentando conhecê-Lo e amá-Lo cada vez mais e melhor. Por conseguinte, deve aceitar o pastoreio de quem Jesus colocou diante dos crentes com a qualificação de pastores segundo o coração do Pai.

O trecho evangélico em referência acentua a relação criada entre o Pastor (Cristo) e as ovelhas (os discípulos e, em última análise, aos crentes). A missão do Pastor é dar vida às ovelhas. Por isso, ao longo do Evangelho, João descreve, a ação de Jesus como recriação e revivificação do homem, no sentido de fazer nascer o Homem Novo (cf Jo 3,3.5-6), o homem da vida em plenitude, o homem total, o que, seguindo Jesus, se torna filho de Deus (cf Jo 1,12), capaz de oferecer a vida por amor. Os que Jesus não se perderão nunca (“nunca hão de perecer e ninguém as arrebatará da minha mão” – Jo 10,28), pois a qualidade de vida que Jesus lhes comunica supera a própria morte (cf Jo 3,16;8,51). E Jesus, cuja perfeita união com O Pai é garantia de preservação e salvação das ovelhas, está disposto a defender os seus até dar a própria vida por eles (cf Jo 10,11), para que nada nem ninguém – por exemplo os dirigentes, os que estão interessados em perpetuar mecanismos de egoísmo, injustiça, escravidão – possa privar os discípulos dessa vida plena. Por sua vez, as ovelhas, têm de escutar a voz do Pastor e segui-Lo (cf Jo 10,27), significando isto que fazer parte do rebanho de Jesus é aderir a Ele, escutar as suas propostas, partilhar com Ele a vida, comprometer-se com Ele e, como Ele, entregar-se sem reservas numa vida de amor e doação ao Pai e aos homens.

O trecho remata com referência à plena identificação entre o projeto do Pai e o de Jesus: o objetivo é fazer nascer a nova humanidade. Em Jesus está presente e manifesta-se o desígnio salvador do Pai de dar vida eterna ao homem, pelo que, através da ação de Jesus, a obra criadora de Deus atinge o seu ponto culminante.

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O Papa, antes da recitação do “Regina Coeli”, caraterizou o vínculo entre o Senhor e cada um de nós, de que dá conta o Evangelho, com três verbos: ouvir, conhecer e seguir. Jesus usa, no dizer do Pontífice, a imagem terna e bela do pastor que está com as ovelhas e com elas partilha a vida. 

As ovelhas “ouvem” a voz do pastor. A iniciativa vem do Senhor, tudo parte da graça. Ele chama-nos chama à comunhão com Ele, mas a comunhão postula a escuta, pois, se permanecermos surdos, ele não pode dar-nos a comunhão a que nos chama. Porém, abrir-se à escuta significa disponibilidade, docilidade e tempo dedicado ao diálogo – do que é inimiga a pressa e o excesso de palavras. Ora, é preciso ouvir, para depois se responder: temos dois ouvidos e só uma boca, como avisava Sólon. Assim, é preciso ouvir-se um ao outro até ao fim e deixar o outro expressar-se; é preciso escutar-se na família, na escola, no trabalho e na Igreja. Mas, para o Senhor, antes de tudo, é necessário ouvi-Lo. Ele é a Palavra do Pai e o cristão é filho da escuta, chamado a viver com a Palavra de Deus à mão. Quem ouve os outros saberá ouvir o Senhor e vice-versa.  Ele ouve-nos quando Lhe rezamos, confiamos Nele e O invocamos. E ouvir Jesus torna-se o caminho para descobrir que Ele nos conhece. 

Ora “conhecer” é o segundo verbo glosado pelo Papa, que diz respeito ao Belo Pastor: Ele conhece as suas ovelhas. Mas este conhecer é mais do que saber: é também, e sobretudo, amar. Quer dizer que o Senhor, enquanto nos “lê por dentro”, nos ama, não nos condena. Ora, a forma de descobrir o amor do Senhor é escutá-Lo. Assim, a relação com Ele não será impessoal, fria ou de fachada. Jesus quer a amizade calorosa, a confiança, a intimidade. Estando com o Pastor, vivemos a experiência do salmista: “Ainda que eu vá para um vale escuro, não temerei mal algum, porque tu estás comigo(Sl 23,4). Sobretudo na dor, no esforço, na crise, Ele sustenta-nos, está connosco.

Por fim, o verbo “seguir”. As ovelhas que ouvem e descobrem que são conhecidas seguem o Pastor, a sua voz e passos. Ouvem, sentem-se conhecidas pelo Senhor e seguem o Senhor. E quem segue a Cristo vai aonde Ele vai, na mesma estrada, na mesma direção. Vai à procura de quem está perdido (cf Lc 15,4), interessa-se por quem está longe, leva a sério a situação de quem sofre, sabe chorar com quem chora, estender a mão ao vizinho, colocá-lo aos ombros. Ou seja, quem segue o Belo Pastor participa da sua condição de pastor, partilha do seu pastoreio, torna-se pastor com Ele e como Ele, anda na sua órbita, torna-se seu satélite.

E, após a recitação do “Regina Coeli”, Francisco referiu-se ao “59.º Dia Mundial de Oração pelas Vocações, cujo tema é “Chamados a edificar a família humana”, assegurando que, em todos os continentes, as comunidades cristãs invocam do Senhor o dom das vocações ao sacerdócio, à vida consagrada, à escolha missionária e ao matrimónio. É o dia em que todos nos sentimos, batizados, chamados a seguir Jesus, a dizer-lhe ‘sim’, a imitá-Lo para descobrir a alegria de dar a vida, de servir o Evangelho com alegria e entusiasmo. É o testemunho ou martírio pela vida, pela oração, pelo silêncio da escura pela palavra, feito no quotidiano ou de uma vez por todas na morte – a grande vocação ao martírio!

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Em suma, o Evangelho apresenta Cristo como o Belo Pastor, cuja missão é trazer a vida plena às ovelhas do seu rebanho, que são convidadas a escutar o Pastor, a acolher a sua proposta e a segui-Lo, encontrando assim a vida em plenitude. Não podemos ser ovelhas cheias de autossuficiência, satisfeitas e comodamente instaladas nas suas certezas, mas ovelhas permanentemente atentas à voz do Pastor, dispostas a arriscar segui-Lo até às pastagens da vida em abundância, a vida total – a meta final do rebanho que segue o Belo, Bom e Verdadeiro Pastor, a porta do Reino!

2022.05.08 – Louro de Carvalho

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