sexta-feira, 6 de maio de 2022

Militares aliciados para combater na Ucrânia por €2 mil ao dia

 

Hugo Franco dá-nos conta na edição do “Expresso” desta semana de que o anúncio duma empresa privada de aliciamento de militares para certas operações na Ucrânia a troco de €2000 euros diários está a despertar a atenção de alguns “contractors” portugueses – histórias de quem esteve em cenários de guerra e em Kiev.

As empresas militares privadas ou empresas de prestação de serviços de segurança (em Private Military Company, PMC), classificadas ou definidas como mercenárias (dispõem de “soldados de aluguer”) oferecem aconselhamento ou serviços de natureza militar. Muitas são conhecidas como empresas privadas de segurança, empresas militares privadas, companhias militares privadas, prestadores de serviços militares e mesmo indústria militar privada. Os conhecimentos e serviços oferecidos por elas assemelham-se aos de militares ou policiais das forças governamentais, na maioria das vezes em escala menor. São, muitas vezes, serviços de treino ou de complemento a forças armadas oficiais ao serviço dos governos. Tais empresas podem ser contratadas por outras empresas privadas para fornecer guarda-costas a funcionários-chave ou para proteger instalações dessas empresas, sobretudo em territórios hostis.

A contratação de mercenários é proibida por convenções internacionais, razão pela qual as PMC tentam diferenciar, às vezes, ardilosamente, as suas atividades do puro mercenarismo. Mas, quando usam força ofensiva em zona de guerra, podem efetivamente ser considerados como combatentes ilegais (mercenários), pois, segundo a Convenção internacional contra o recrutamento, uso, financiamento e treinamento de mercenários (1989), mercenário é o que, a troco de avultada quantia de dinheiro, participa diretamente em hostilidades ou em ato concertado de violência.

Conta o susodito articulista o caso dum português, cujo nome não revela, que tem sido instado pelas principais empresas militares europeias e norte-americanas, as Private Military Contractor (PMC), para missões específicas no Iraque, na Líbia, na Nigéria e recentemente na Ucrânia. Rejeita o vocábulo ‘mercenário’, típico de outros tempos de guerras sem lei e escândalos como os da Blackwater, PMC norte-americana, envolvida na morte de dezenas de civis na Guerra do Golfo, embora admita que ainda há alguns por aí, mas, segundo crê, em minoria. Diz que o ingresso nos quadros de tais empresas se assemelha às triagens para os serviços secretos: exige enorme formação e a obrigação de seguir trâmites legais, do que duvido, e burocracias internacionais.

O aludido operacional age como personal security detail ou guarda-costas de elite especializado em paramédico. Pode usar nas suas missões uma pistola de 9 mm, normalmente a SIG Sauer ou a Glock, e também a AK-47 e a M21 ou, ainda, mas raramente, a AF-15. No entanto, garante que é proibido disparar nem sequer um tiro de aviso, ao invés do que sucedia outrora, quando tudo se resolvia à rajada, sendo hoje muito restritas as regras do uso de fogo. Como sublinha, os contractors são defensores, não atacantes. E, depois da invasão da Ucrânia pelas tropas de Putin, o predito operacional foi convidado para uma missão, agora para a tirar pessoas de zonas alvo dos ataques, assinou com a PMC que o contratou a cláusula de confidencialidade em virtude da qual não pode revelar pormenores, mas diz que, neste momento, a empresa do Norte da Europa tem pessoal na Polónia que aciona os seus homens sempre que necessária a intervenção na Ucrânia. São missões de extração, segurança, logística, serviços de apoio médico, guarda-costas… A forma normal de recrutamento é o passa-palavra de quem está no meio, mais fiável que o anúncio. Todavia, se a procura é superior à oferta, as PMC recorrem a meios tradicionais de angariação de pessoal para missões espinhosas. Recentemente uma PMC, cujo nome não é divulgado, pôs um anúncio online numa plataforma de recrutamento militar a oferecer entre mil a 2 mil dólares por dia e bónus, a soldados e ex-soldados com “mais de um ano de experiência” em cenários de guerra e com know how para lidar com “armas da era soviética” para “extração/agentes de segurança”.

O anúncio está a aliciar vários portugueses ligados ao setor militar e ao da segurança privada, pois a proposta “é aliciante em termos monetários”. Um consultor português na área de segurança refere que recebeu, nos últimos dias, o contacto de mais de dez militares que leram o anúncio a pedirem conselhos sobre se se deveriam alistar e rumar a Kiev para se juntarem às forças de Zelensky que combatem a invasão russa. Porém, o interpelado advertiu-os de que não devem ir, advertência que muitos seguiram. A razão deste conselho negativo tem a ver sobretudo com a falta de condições de segurança que podem encontrar no terreno. Para a PMC poder oferecer condições de sucesso, os operacionais têm de ter boa capacidade de logística e de comunicações e muito boa saúde. E, pelas informações que chegam da Ucrânia, é de concluir que não há logística, armamento e munições suficientes.

As missões mais arriscadas são as do salvamento e evacuação de famílias, sobretudo estando crianças em causa. E, em termos monetários, a extração duma pessoa custa no mínimo 50 mil euros à PMC para três dias de trabalho, mas tem de ser uma missão simples e sem problemas, caso contrário os custos da operação disparam. Há alguns anos, num campo petrolífero perto de Bassorá (Iraque) o aludido operacional sentiu um estrondo. A mesquita foi alvo de ataque terrorista. Os primeiros instantes foram de pânico, pelo impacto, fumo e fogo. Felizmente não estava lá ninguém àquela hora. O IED (engenho explosivo improvisado – sigla em inglês) era de grande potência: era capaz de desfazer um carro blindado B6. O ataque não foi reivindicado, mas no dia seguinte a empresa norte-americana que explorava o oil camp foi-se embora.

Supõe-se que, na Ucrânia, quem paga a estas PMC para introduzirem soldados ocidentais no seu território é o próprio governo de Kiev, tal como o Kremlin pagará aos soldados privados, do Wagner Group, que são quase todos russos e têm sido acusados de crimes de guerra e abusos dos direitos humanos. O referido consultor de segurança diz nunca ter ouvido falar de um militar português contratado pela esfera de influência de Moscovo.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) reitera o aviso de março, desaconselhando a ida de militares portugueses para o conflito na Ucrânia “seja a que título e para que propósito for”. Nessa altura, havia sete portugueses, todos voluntários, identificados em combate. Embora não avançando desta vez com qualquer dado em concreto, o MNE diz que é residual o número de combatentes lusos em solo ucraniano. As autoridades temem que possam vir a morrer ou a ser capturados. Não há, porém, qualquer relato nesse sentido no terreno.

Nos últimos anos, os contractors portugueses têm-se espalhado por cenários de conflito bélico como Líbia, Somália, Iémen, Iraque ou Afeganistão, bem como em países em fase de reconstrução ou a bordo de navios de multinacionais petrolíferas. Estima-se que, no total, sejam entre os 30 e 50 operacionais e a esmagadora maioria pertencia aos comandos, fuzileiros ou paraquedistas. Conhecem-se quase a todos e constituem “um núcleo muito fechado”. A falta de perspetivas na carreira militar em Portugal e os altos salários (dos 65 mil euros por ano aos 200 mil) motivam muitos operacionais a emigrar para trabalhar na área privada. Quanto mais arriscada e especializada for a missão e mais currículo tiverem, mais bem pagos serão. E não há falta de trabalho sobretudo para quem não pisa o risco. Há guarda-costas, detetores e inativadores de explosivos, pilotos, seguranças de campos petrolíferos, seguranças de navios, mecânicos de aeronaves, paramédicos, especialistas em resgates ou operacionais de equipas de reação rápida. Os dados são escassos, mas há informação de que haverá pelo menos 6 voluntários oriundos de Portugal que se juntaram às tropas de Zelensky. Estão todos espalhados por vários setores da linha de combate.

Um soldado que nasceu em Setúbal, emigrou para França e tem experiência militar como paraquedista, revelou ter já tido alguns momentos de tensão no conflito em Irpin e Bucha, na Ucrânia, aonde chegou através da Legião Estrangeira. Testemunhou a morte de companheiros de combate. Em março, recebeu treino militar perto de Kiev, juntamente com outros voluntários estrangeiros, e promete ficar na Ucrânia “até ao fim do conflito”.

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Em outubro de 2007, um estudo publicado pela ONU concluiu que, embora contratados como guardas de segurança, os operacionais privados desempenhavam funções militares. Muitos países, incluindo os EUA e o Reino Unido, não são signatários da convenção acima referida, que proíbe a contratação de mercenários. Porém, um porta-voz da missão dos EUA no departamento da ONU em Genebra (UNOG) declarou que a acusação de que os guardas de segurança contratados pelo governo dos EUA são mercenários é inexata e humilhante para os homens e mulheres que diariamente colocam as suas vidas em risco para proteger pessoas e instalações.

Segundo a Cruz Vermelha, desde o início da década de 1990, mais e mais funções usualmente efetuadas pelo aparato militar e de segurança dos Estados são passadas para tais empresas, que, entre outras atividades, operam no apoio logístico ao deslocamento de soldados e a operações militares, na manutenção de sistemas de armamentos, na proteção das instalações, na proteção especial a indivíduos, no treinamento de militares e de forças policiais no próprio país e no exterior, na obtenção e análise de informações de inteligência, na custódia e interrogatório de prisioneiros e, às vezes, participam nos combates. E esta evolução suscita questões acerca da proteção das pessoas que trabalham para tais empresas, do ponto de vista do Direito Internacional Humanitário. Nem sempre é claro se essas pessoas devem ser consideradas civis ou combatentes, distinção que é fundamental, tanto do ponto de vista legal como do das operações humanitárias.

As empresas militares privadas estão presentes em países como o Iraque e o Afeganistão, prestando serviços de escolta e treinamento. E, na Colômbia, contratados dessas empresas pilotam aviões e helicópteros que localizam e destroem cultivos de coca. A maioria dessas empresas e dos seus contratados é originária dos EUA e opera mediante licença outorgada pelo seu governo.

As empresas militares privadas movimentam mais de USD 100 mil milhões por ano. Segundo um estudo de 2008 (do Gabinete do Diretor da Inteligência Nacional dos EUA), os contratados privados totalizam mais de 29% das pessoas empregadas na Comunidade de Inteligência dos EUA e custam o equivalente a 49% do seu orçamento.  

O debate sobre a atuação destas empresas alterna-se entre a visão de que estas significam o enfraquecimento do Estado nacional ou a perda do seu monopólio da violência e a visão geopolítica, que vê uma espécie de adaptação nessas empresas, por parte de alguns países, que as utilizam para poderem projetar-se militarmente no exterior por vias clandestinas, mas não necessariamente ilegais, sem violar as leis internacionais, causar complicações com o eleitorado doméstico (que não quer os seus soldados envolvidos em guerras no exterior) ou atritos com outros países.

Em 1994 e 1995 a sul-africana Executive Outcomes (EO) esteve envolta em duas ações na África. Lutou pelo governo de Angola contra a UNITA depois de ter sido quebrado um acordo de paz intermediado pela ONU; depois, foi encarregada de conter a Revolutionary United Front, um movimento de guerrilha da Serra Leoa. Ambas as missões envolveram o pessoal da empresa treinando 4000 a 5000 integrantes das tropas de combate do governo angolano, retomando o controlo das minas de diamantes e forçando uma negociação de paz na Serra Leoa. Em 1999, um incidente da DynCorp na Bósnia motivou uma ação judicial com base na Lei de Combate a Organizações Corruptas e Influenciadas pelo Crime Organizado. Foi alegado que funcionários e supervisores da DynCorp tinham comportamento perverso, ilegal e desumano comprando mulheres, armas, passaportes falsos, e participando em outros atos imorais.  Em 2000, o programa “Foreign Correspondent(da “Australian Broasdcasting Corporation ABC Television”) transmitiu a reportagem “Sierra Leone: Soldiers of Fortune”, abordando os feitos do piloto Neall Ellis no helicóptero MI-24 Hind e pondo a nu falhas da Força de Paz da ONU e o envolvimento de mercenários na prestação de apoio a operações da ONU e a operações militares britânicas.

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É o fim da linha quando governos e até a ONU confiam as operações bélicas e humanitárias a privados, sem controlo, e lhes pagam balúrdios. E porquê a exigência de que os requisitados para a Ucrânia têm de possuir capacidade para lidar com armas da era soviética? Nada mudou?

2022.05.06 – Louro de Carvalho

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