segunda-feira, 16 de maio de 2022

De cantora de ópera em Paris e Milão a quase rainha em Portugal

 

Falamos de Elise Friederick Hensler, com quem o rei Dom Fernando II, levado por estremado amor, casou após ter enviuvado, em 1853, da rainha D. Maria II, a quem o ligara grande afeição.

De origem suíço-alemã, filha de Friederich Conrad Hensler e da esposa, Louise Hensler, nasceu a 22 de maio de 1836 em La Chaux-de-Fonds, no Jura, perto de Neuchâtel. Aos 12 anos de idade, emigrou com os pais para Boston, na América do Norte. Recebeu peculiar cuidado na educação, não faltando o cultivo das Artes e das Letras e vindo os seus estudos, orientados para o belo canto, a ser completados na Europa, principalmente em Paris.

Acompanhada da mãe e integrada na Companhia de Ópera de Laneuville, chegaria a Portugal a 2 de fevereiro de 1860, estreando-se no Teatro S. João, no Porto. Seria depois escriturada para o Real Teatro de S. Carlos, em Lisboa, para cantar no “Propheta” e no “Roberto do Diabo”, nos papéis de Bertha e Elisabeth, respetivamente, pelo que se estreou em Lisboa a 12 de outubro.

Melómano de refinado gosto, Fernando II não perdeu nenhuma atuação de “o luminoso meteoro” nos dois grandes teatros portugueses. Daí nasceu o amor que iluminaria a atuação de duas vidas fadadas à união eterna pelos laços da arte, para o que deu grande contributo a mediação da infanta D. Isabel Maria, tia de D. Maria II. Assim, a 10 de Junho de 1869, já com D. Luís I no trono, celebrou-se o real consórcio no Palácio Devisme, em Benfica, tendo dias antes o Príncipe Ernesto de Saxe-Coburgo Gotha agraciado Elise Hensler com o título de Condessa de Edla, já que o Bispo de Viseu, Dom António Alves Martins, Par do Reino, se escusou a encaminhar o pedido do rei viúvo no sentido de ser concedido a Elise um condado em Portugal.

Ao invés de muitas figuras públicas, a imprensa coeva considerava a Condessa de Edla fadada para esposa de homem “tão protetor das artes e dos artistas e ao mesmo tempo tão ilustrado”, pois era dotada de educação muito esmerada, conhecendo a fundo e falando fluentemente sete dos principais idiomas da Europa, e cultivava as artes com ardor, amava o retiro, vivia sem ostentação e aliava um coração benfazejo ao génio artístico. Para lá de cantora e atriz, era música, escultora, ceramista, pintora, arquiteta, floricultora e, provavelmente, ocultista.

Deste casamento nasceria uma filha, Alice (que alguns dizem não ser filha do primeiro casamento da condessa, antes de vir para Portugal), que viria a casar com Manuel de Azevedo Gomes, pai do cronista Mário de Azevedo Gomes. Em todo o caso, é de frisar a dedicação de vida da condessa ao rei, como a sua companheira inseparável e como continuando numa via de ausência, honrando a memória do marido até ao seu falecimento em 1929, aos 93 anos de idade.

Depressa Elise se interessou pelos trabalhos do Palácio da Pena, em Sintra, iniciados por impulso de D. Fernando em 1839 e que terminariam com a sua morte, em 1885. As plantações do Parque, importantes entre 1840 e 1850, intensificaram-se a partir de 1869, como por exemplo as das “Feteiras da Condessa”. É à condessa que se deve, nessa altura, a introdução de certas espécies arbóreas da América do Norte, onde passara quase toda a sua juventude.

Merecia melhor trato e respeito esta “Druidesa” da Serra de Sintra a quem tanto amou, cultivou e protegeu, que o recebido de muitos letrados e políticos, maledicentes, que acabam envenenados pelo seu próprio veneno. Na verdade, na vida e na morte, foi maltratada por muitos a quem só fez bem. Acabou quase só. E, aos 93 anos, na madrugada do dia 21 de maio de 1929, à uma hora e cinco minutos, a Condessa morria de uremia no Palacete de Santa Marta em Lisboa. Apenas assistiram aos seus últimos momentos a filha Alice Hensler e seus filhos, além dum amigo de grande confiança da Condessa, Augusto Sequeira Cília.

Porém, depois de morta vieram despedir-se dela os dois grandes artistas que lhe ficaram devendo muito do seu sucesso profissional com as pensões que obtiveram para viver na Alemanha e Paris, mestre Columbano Bordalo Pinheiro e o pianista Viana da Mota.

Naquele cenário, o ritual confundia-se com o teatro da vida, e os artigos publicados sobre a sua morte alargavam-se em comentários extensivos sobre a sua vida ao lado do rei D. Fernando II e em rasgados elogios à sua faceta de mulher generosa. Para desconforto dos muitos que a tinham descriminado vilipendiado, recebia agora o tratamento e as honras de figura de Estado; a Rainha D. Amélia e o Rei deposto, D. Manuel II, fizeram-se representar-se pelo Visconde d’Asseca.

Após a celebração litúrgica das exéquias, sob a presidência do padre Ernesto Sena de Oliveira, prior do Coração de Jesus e futuro Arcebispo de Mitilene e, sucessivamente, Bispo de Lamego e de Coimbra, o féretro seguiu, por volta das dezasseis horas, para o Cemitério dos Prazeres, em Lisboa. E o cadáver foi colocado provisoriamente no jazigo de família de Alice Hensler Azevedo Gomes, enquanto se edificava a sua campa num jazigo próprio da autoria de Raul Lino (que seguiu as indicações de modéstia da condessa), em forma de arca de pedra com uma cruz, réplica da Cruz Alta de Sintra, que apresenta o epitáfio: “Aqui jaz Elisa Hensler, viúva de sua Majestade El-Rei D. Fernando II de Portugal, nascida em 1836 e falecida em 1929”.

Sabe-se que a Condessa d’Edla, não podendo ir morrer a Sintra, mandou trazer a vegetação e as pedras de Sintra para Lisboa, para que a cobrissem por todo o sempre e a marcassem como filha dileta do Pico do Graal.

No livro “A Condessa de Edla” (Alêtheia Editores), Teresa Rebelo refere que a generosidade exaltada em vida da condessa pela proteção aos artistas e pobres se manifestou no seu testamento por vários legados a amigos, familiares e instituições de caridade e beneficência.

Além dos familiares e amigos, como amante e dama da música, legou ao Conservatório Nacional de Música as partituras existentes nas suas casas de Lisboa e Parede. E, quanto às instituições, deixou ao Asilo de Cegos Branco Rodrigues quinhentos escudos; à Associação do Mealheiro das Viúvas e Órfãos dos Operários Mortos de Desastre no Trabalho, igual quantia; à Sociedade Protetora dos Animais, duzentos escudos; ao Pavilhão para Tuberculosos do Lumiar, mil escudos; vinte esmolas de dez escudos para vinte viúvas pobres da freguesia do Coração de Jesus; duzentos escudos para os pobres de Sintra; quinhentos escudos para o Hospital de Sintra; e, através da Condessa de Moçâmedes, mil escudos para instituições de beneficência.

Despojada de quanto licitamente lhe pertencia – logo que morreu, correram os abutres aos seus haveres, leiloados em hasta pública e motivo de notícia nos jornais durante vários dias – ficou o chalé do Parque da Pena votado ao abandono, a crescente ruína que um incêndio ceifou em hora cruel. Todavia, acabou por ser reconstruído o edifício, como adiante se dirá.

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O casal utilizava, como seu refúgio, Sintra, mais concretamente o Parque e o Palácio da Pena, propriedade de D. Fernando II. Ambos apaixonados pela botânica, intensificaram as plantações no parque, incluindo espécies provenientes de várias partes do mundo. E, num dos recantos do parque, começou a construção de um chalé que a condessa desenhou e projetou.

Tanto o chalé como o jardim em seu redor são de grande sensibilidade romântica e privacidade. Situado a poente do Palácio da Pena, o edifício é inspirado nos chalés alpinos, num estilo então muito em voga na Europa. Apresenta uma envolvente cenográfica, que reflete as facetas artísticas do casal. De gosto singular, a fachada e os interiores são inigualáveis. No exterior, o jardim que envolve o chalé exibe uma paisagem exótica em que se destacam a Feteira da Condessa, o Jardim da Joina, o Caramanchão e o labirinto de Pedras do Chalé.

Por sua morte em 1885, D. Fernando deixou em testamento à Condessa d’Edla todos os seus bens, incluindo o Castelo dos Mouros e o Palácio da Pena. Após um processo judicial que visava que o património passasse para a Coroa portuguesa, Elise vendeu ao Estado o Parque e Palácio da Pena e o Castelo dos Mouros, ficando com usufruto do chalé e do jardim até 1904.

Em 1999, o chalé foi consumido por um incêndio, mas reabriu ao público em 2011, após quatro anos de obras de recuperação, visto que a Parques de Sintra levou a cabo a reconstrução deste edifício de grande valor cultural, histórico e artístico. O projeto foi distinguido em 2013 com o Prémio União Europeia para o Património Cultural – Europa Nostra, na categoria de Conservação.

2022.05.16 – Louro de Carvalho

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