quinta-feira, 26 de maio de 2022

Está na forja a nova lei dos metadados, que será feita a mata-cavalos

 

De acordo com o respetivo comunicado, ficamos a saber que o Conselho de Ministros aprovou, no dia 26 de maio, a proposta de lei, a submeter à apreciação do Parlamento, de regulação do acesso a metadados referentes a comunicações eletrónicas para fins de investigação penal. O diploma estabelece regras de acesso pelas autoridades judiciárias a dados de tráfego tratados por empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações eletrónicas para efeitos de faturação, estando em causa a investigação de certos crimes e desde que isso se torne “indispensável para a descoberta da verdade ou a prova seja, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter”.

Trata-se de reformular a Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, que “transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações”, prevalecendo em vigor na redação que lhe deu a Lei n.º 79/2021, de 24 de novembro.

Como observou a ministra Catarina Sarmento e Castro, na conferência de imprensa subsequente à reunião do Conselho de Ministros, a susodita proposta de lei não cria “uma base de dados específica para a investigação criminal”. A este respeito, a titular da pasta da Justiça vincou: “Mudámos o paradigma”. E esclareceu que a proposta prevê “o acesso às bases de dados que já existem e que são mantidas pelas operadoras no exercício da sua atividade comercial, ou seja, não vamos manter uma base de dados separada, com dados conservados durante um ano para a exclusiva finalidade da investigação criminal, vamos, antes, aceder às bases de dados que, no dia a dia da sua atividade corrente, estas operadoras já utilizam na sua prestação de serviços”.

A governante reforçou que não se pretende criar “um dever de retenção da informação relativa a todas as pessoas”, mas que “há uma mudança de paradigma; e para a investigação criminal serão utilizados os dados de que hoje, correntemente, as operadoras já dispõem”, sendo o acesso feito “para que se possa combater o terrorismo, a criminalidade organizada, o tráfico de pessoas e o tráfico de droga”.

Catarina Sarmento e Castro salientou que havia que cumprir a decisão do Tribunal Constitucional (TC) e que não se podia “interferir naquilo que ficou resolvido” com o acórdão daquele tribunal, que declarou inconstitucionais normas da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, sobre a utilização dos metadados pela investigação criminal. Com efeito, “aquela base de dados deixou de existir”; dá-se um passo em frente para “aceder a alguma informação”; e a proposta de lei resolve a questão colocada pela decisão do TC (penso que vale o mesmo aceder à base comum ou a uma específica).

A ministra enfatizou que o diploma, a submeter à Assembleia da República, resultou de um grupo de trabalho que envolveu órgãos de polícia criminal e a Procuradoria-Geral da República; e que este grupo considerou que “era suficiente a informação das operadoras de telecomunicações” no âmbito da sua atividade comercial para a investigação criminal.

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Esta iniciativa governamental decorre do facto de o Tribunal de Justiça de União Europeia (TJUE) haver reprovado a predita diretiva comunitária. Fê-lo com base em queixa que lhe foi apresentada.

Na sequência, em Portugal, a Provedora de Justiça requereu ao TC, a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 4.º, 6.º e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, por violarem o princípio da proporcionalidade na restrição dos direitos à reserva da intimidade da vida privada e familiar (n.º 1 do art.º 26.º da Constituição), ao sigilo das comunicações (n.º 1 do art.º 34.º da Constituição) e a uma tutela jurisdicional efetiva (n.º 1 do art.º 20.º da Constituição).

Na sequência, pelo acórdão n.º 268/2022, o TC decidiu: declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o seu art.º 6.º, por violação do disposto nos números 1 e 4 do art.º 35.º e do n.º 1 do art.º 26.º, em conjugação com o n.º 2 do art.º n.º 18.º, todos da Constituição; e declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do art.º 9.º da mesma lei, no referente à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do art.º 35.º e do n.º 1 do art.º 20.º, em conjugação com o n.º 2 do art.º 18.º, todos da Constituição.

O Primeiro-Ministro, invocando o n.º 3 do art.º 282.º da Constituição, apontou que os casos julgados (de que não haja recurso) não são abrangidos pelo dito acórdão, uma vez que o TC não declarou incluí-los na abrangência da sua decisão – o que mereceu, da parte do bastonário da Ordem dos Advogados, a acusação de que o chefe do Governo se estava a intrometer na área da justiça, acusação abstrusa, pois isso é também sustentado pelo advogado José de Matos Correia.

Ao invés, o Presidente da República opinou que os processos poderão de ter de ser revistos e outras vozes da área da justiça clamaram que vinha aí o caos. E alguns juízes do TC vieram lançar em público a hipótese de os processos serem revistos, pois há uma norma que estabelece que a prova produzida por meios ilegais é nula. Nesse caso, deveriam tê-lo escrito no acórdão.    

Entretanto, a Procuradora-Geral da República arguiu junto do TC a nulidade do acórdão n.º 268/2022, com base na possibilidade de vulnerar os interesses da legalidade democrática e da promoção da defesa dos valores constitucionais do Estado de direito democrático e da boa administração, que o Ministério Público defende; na contradição entre a fundamentação e a decisão, pois o n.º 18 da fundamentação exclui do juízo de inconstitucionalidade os dados de base, embora o dispositivo declare a inconstitucionalidade de todo o art.º 4.º da lei em referência; e na omissão de pronúncia, pois não fixou o Tribunal “os efeitos da inconstitucionalidade, permitindo a aplicação retrospetiva, e mesmo retroativa, da sua doutrina, pondo em risco aqueles interesses constitucionalmente protegidos”. Porém, o TC, pelo acórdão n.º 382/2022, conclui que “a Procuradora-Geral da República carece de legitimidade, processual e constitucional, para suscitar o presente incidente pós-decisório, razão pela qual se decide não tomar conhecimento do requerimento apresentado”. Ora, do meu ponto de vista, a Procuradora-Geral da República, se pode suscitar a fiscalização sucessiva da constitucionalidade, há de ter legitimidade para suscitar um incidente pós-decisório. Todavia, parece excessivo ter arguido a nulidade, podendo ter optado pelo pedido de clarificação, designadamente sobre a retroatividade ou não dos efeitos do acórdão – sendo perfeitamente legítimo que o TC tomasse nova decisão complementar, até porque o n.º 1 do referido art.º 282.º da Constituição estabelece que “a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade produz efeitos desde a entrada em vigor” da norma em causa e “determina a repristinação das normas que ela tenha revogado”. E, assim, para que não se entrasse num pântano de insegurança jurídica, teria sido útil que o TC fixasse os efeitos da sua decisão com um alcance mais restrito que o previsto, a teor do art.º do n.º 4 do art.º 282.º da Constituição.

As decisões dos tribunais “são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades” (n.º 2 do art.º 205.º da Constituição). Porém, não podem escapar ao escrutínio da opinião pública e à crítica, se merecida. Nem parece que membro do governo ou deputado que faça comentário crítico aos tribunais belisque o princípio da separação dos poderes, a menos que torpedeie a justiça ou a crítica seja deveras demolidora.

Também não percebo como pôde a Procuradora-Geral da República recomendar aos procuradores que se escudassem na Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, que se tornou obsoleta com a publicação da lei que agora viu julgadas inconstitucionais algumas das suas normas basilares e que não estão protegidas pela anterior. Com efeito, quando há reordenamento da matéria, a lei vigente deveria ter-se por revogada. E não vejo como a manutenção da informação sensível por um ano viola o princípio da proporcionalidade e, se for por seis meses, já estará tudo bem, como não entendo que se possam manter chamadas e dados, mas sem referência à localização do telefone usado.

Enfim, somos chamados a uma excessiva defesa dos dados pessoais, com sabor a ultraliberalismo, e não zelamos o interesse público e a sujeição do interesse particular ao interesse geral, de tal modo que dificilmente será eficaz o combate ao crime organizado – corrupção, branqueamento de capitais, etc. – ao terrorismo e mesmo comuns crimes de sangue. Até parece que não se quer combater o crime. Ao invés, quer-se pôr o país em roda livre, a rogo de interesses instalados.   

Por fim, acresce insustentável o anúncio, por parte do Presidente da República, da sua intenção de sujeitar ao juízo prévio do TC a futura lei cujo conteúdo ainda não está fixado, ou seja, tem dúvidas sobre o que ainda não existe, o que não é plausível. E, por outro lado, parece que o TC está com tendência a judicializar o poder político que resulte de eleições, quando a casa da democracia é o Parlamento e o titular do poder soberano é o povo, que paga a todos os detentores do exercício do poder, em que se inclui, obviamente, a administração da justiça.

2022.05.26 – Louro de Carvalho

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