quarta-feira, 4 de maio de 2022

Conferência no Vaticano debate património cultural da Igreja

 

Está a decorrer, de 4 a 5 deste mês de maio, no Vaticano, a Conferência internacional sobre o património cultural dos Institutos de Vida Consagrada, com o tema: “Carisma e criatividade. Catalogação, gestão e projetos inovadores para o património cultural das comunidades de Vida Consagrada”, iniciativa da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica e do Pontifício Conselho para a Cultura, com enfoque na catalogação, gestão e inovação do património cultural das comunidades religiosas, sendo o comité promotor presidido pelo bispo português Dom Carlos Azevedo, delegado do Pontifício Conselho para a Cultura.

A conferência, que é fruto da consciência crescente de que os bens culturais da Igreja fazem parte da identidade cultural das comunidades locais e oferecem novos meios para a promoção dos seus objetivos pastorais e missionários, pretende fortalecer as redes de trabalho e partilhar as melhores práticas para enditar a capacidade das comunidades religiosas para protegerem e desenvolverem o seu património de forma criativa. Assim, o evento tem como objeto o património cultural das comunidades de vida consagrada em todas as expressões e visa consolidar e tornar efetivas ações de proteção e valorização compartilhadas com todos os envolvidos neste património cultural. 

O trabalho de dois dias é organizado conjuntamente pelo Gabinete Nacional do Património Cultural Eclesiástico e Edifícios Religiosos da Conferência Episcopal Italiana, pela Faculdade de História e Património Cultural da Igreja da Pontifícia Universidade Gregoriana e pelo Departamento de Arquitetura da Universidade de Bolonha, com a prestimosa colaboração da IUSG (União Internacional das Superioras Gerais), a USG (União das Superioras Gerais) e o Secretariado de Assistência às Freiras.

O evento foi apresentado numa conferência de imprensa realizada no dia 17 de fevereiro, no Gabinete de Imprensa do Vaticano. Foram oradores: o Cardeal João Braz de Aviz, Prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica; o Cardeal Gianfranco Ravasi, Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura; Dom José Rodríguez Carballo, OFM, Secretário da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica; Dom Carlos Alberto de Pinho Moreira Azevedo, Delegado do Pontifício Conselho para a Cultura; e a Irmã Jolanta Maria Kafka, RMI, Superiora Geral das Religiosas de Maria Imaculada e Presidente da União Internacional das Superioras Gerais.

Os dois purpurados enfatizaram o papel crucial que as comunidades religiosas são hoje, aliás como sempre, chamadas a desempenhar no cumprimento da responsabilidade da Igreja de administrar cuidadosamente os seus bens culturais à luz da missão evangelizadora e da particular preocupação com os pobres. Aviz e Ravasi observaram que a tarefa é agora ainda mais urgente, porque as ordens religiosas enfrentam um declínio em números, resultando em maiores riscos de abandono e degradação do seu imenso património cultural. Por isso, como referiu o Cardeal de Aviz, são homens e mulheres consagrados chamados a “refletir juntos sobre o valor dos seus bens na sociedade hodierna, o seu destino final e a sua íntima conexão com o carisma da sua ordem religiosa e com a dimensão profética desse carisma”.

Na preparação para a conferência, os organizadores reuniram uma série de investigações, projetos e boas práticas neste campo. As contribuições, provindas sobretudo da Europa, foram recolhidas sob 4 temas que são os tópicos da sessão: “Campos para a compreensão teórica”, “Catalogação”, “Gestão” e “Reutilização”. Além disso, foi enviado, antes do evento, um questionário aos institutos religiosos, pelo que está a ser apresentada, na conferência, uma seleção de quinze contribuições. Assim, os participantes estão a partilhar reflexões e experiências sobre esses desafios e a debater novas estratégias para promover uma gestão integrada e quiçá mais eficaz do património cultural da Igreja.

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O Papa Francisco enviou aos participantes na predita conferência uma mensagem em que sublinha que “os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica têm sido, de facto, e continuam a ser promotores de arte e cultura ao serviço da fé, guardiães de uma parte muito significativa do património cultural da Igreja e da humanidade: arquivos, livros, obras artísticas e litúrgicas, os próprios edifícios”. Mais refere que o valor que tais institutos assumem radica essencialmente na sua “capacidade de transmitir um significado religioso, espiritual e cultural que, para o património cultural dos Institutos de Vida Consagrada, consiste sobretudo no reconhecimento da relação que têm com a história, a espiritualidade e as tradições das Comunidades específicas, na prática com o seu carisma”.

Diz o Pontífice que, desde o início do seu Pontificado, tem chamado a atenção para “a gestão dos bens temporais eclesiásticos, na convicção de que, tal como o administrador fiel e prudente, se tem a tarefa de cuidar cuidadosamente do que lhe foi confiado”. É certo que a necessidade e, às vezes, o peso da conservação, pode tornar-se uma oportunidade para renovar, repensar e compor o próprio carisma no atual contexto sociocultural e planeá-lo para o futuro. E o Pontífice reitera o que disse na primeira conferência promovida pela Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica:

A fidelidade ao carisma fundador e ao consequente património espiritual, juntamente com os objetivos próprios de cada Instituto, continuam a ser o primeiro critério para avaliar a administração, a gestão e todas as intervenções feitas nos Institutos, em qualquer nível”.

Apontando para a necessidade de identificar “elementos específicos de compreensão destes bens, de modo a definir suas caraterísticas históricas, espirituais, teológicas, eclesiológicas e jurídicas”, Francisco frisa a necessidade de “promover a catalogação dos bens na sua totalidade e variedade” (arquivos, bibliotecas, arte móvel e imóvel). Justifica a necessidade da catalogação com “razões de serviço à cultura, transparência de gestão e prudência, considerando os milhares de perigos naturais e humanos aos quais esses frágeis tesouros estão expostos”. E considera importante abordar as questões envolvidas na gestão dos bens culturais em termos, quer da sustentabilidade económica, quer da contribuição que podem dar à evangelização e ao aprofundamento da fé.

Na sua mensagem, o Bispo de Roma encarece a necessidade de focalizar “a reutilização de bens imóveis abandonados, necessidade que hoje é ainda mais urgente devido, não só à contração numérica das comunidades de vida consagrada e à necessidade de achar os recursos necessários para cuidar das irmãs e dos irmãos idosos e doentes, mas também, em particular, aos efeitos da aceleração das mudanças legislativas e aos requisitos necessários para a adaptação”. E considera como causa do abandono o “peso económico da manutenção e preservação ordinária e extraordinária suportada por essas comunidades, especialmente na Europa”.

Preconiza que o problema deve ser enfrentado, “não com decisões imprevistas ou precipitadas, mas com uma visão geral e um planeamento de longo prazo e, possivelmente, também através do uso de profissionais com experiência comprovada”. Na verdade, como sustenta, o abandono do património é “questão particularmente sensível e complexa, que pode atrair interesses enganosos por parte de pessoas inescrupulosas e ser ocasião de escândalo para os fiéis”. Daí conclui o Papa “a necessidade de agir com grande prudência e cautela e também de criar estruturas institucionais para acompanhar as comunidades menos equipadas”.

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Do ponto de vista dos objetivos e da espiritualidade em torno da preservação do património cultural, os oradores clérigos são praticamente concordes. Entretanto, a Irmã Jolanta Maria dá conta de como decorreu a preparação em prol do futuro trabalho de catalogação.

Diz ela que, desde os primórdios da vida consagrada, a arte tentou “exprimir e testemunhar o espírito e o sentido de fé, louvor, dedicação a Deus e à Igreja”, criando um património que não se deve perder. Por outro lado, o cuidado do património cultural conjuga-se com o carisma e a espiritualidade, sendo responsabilidade dos Institutos e da Igreja.

Tendo em vista a conferência, procurou-se promover um questionário junto dos institutos de vida consagrada e sociedades de vida apostólica sobre o cuidado e gestão dos seus bens culturais, com o fito de verificar a sua atitude em relação aos bens culturais móveis e imóveis próprios, com particular atenção a cinco aspetos: o efetivo início e andamento dos processos de inventário e catalogação; a organização e uniformidade dos processos lançados, para se perceber se seguiram modelos coerentes nos institutos ou nas províncias; os limites e/ou critérios de prioridade entre os bens cadastrados, para verificar a quais categorias de bens a ação censitária é prioritariamente orientada (ou limitada); perceber se, no atinente ao imobiliário, poderia ser delineada uma política prevalecente nas instituições em caso de encerramento duma casa, ou seja, se prevalecer a alienação, a valorização económica na manutenção do imóvel, ou se houver casos de valorização social e cultural de edificações, em colaboração com outras instituições (religiosas ou civis) da área; e saber se é dada atenção específica ao património cultural da Igreja e à sua gestão no programa de formação dos institutos.

Deve-se reconhecer que, apesar da promoção do questionário, a compilação da pesquisa foi modesta. O instrumento dá informação de 56 congregações masculinas e 279 femininas, ou seja, em ambos os casos, cerca de 20% dos institutos ativos. No respeitante à presença de um catálogo ordenado do património cultural, 48% dos institutos declararam uma catalogação esporádica e parcial (limitada a alguma casa ou província). Em 23% dos casos, a catalogação é inexistente. Entre os virtuosos, verifica-se que são sobretudo os mosteiros sui juris de vida contemplativa que apresentam o catálogo completo dos seus bens (4% da amostra), juntamente com outras congregações (20%) que declaram a conclusão duma ação censitária homogénea, estendida a todas as comunidades e províncias. Globalmente, esta ação está atualmente em curso para apenas 5% das instituições. Não obstante, os contextos culturais pesam muito nessa segmentação. Na Europa, onde se pode supor que os bens culturais eclesiásticos são numericamente maiores, a catalogação é mais incompleta que no resto do mundo, onde os patrimónios culturais são mais recentes. Se para lá das fronteiras europeias 42% das comunidades declaram ter concluído o recenseamento do património cultural e apenas em 9% dos casos há ausência de catálogo, na Europa as relações invertem-se: 13% das comunidades concluíram a catalogação; e 27% ainda não a realizaram.

Porém, os dados devem ser considerados à luz da polarização das respostas obtidas: a participação no questionário da Europa foi superior à de outros contextos. A resposta da Europa constitui 73% da amostra. E a diferente urgência para a catalogação também pode ser interpretada em relação à idade dos institutos. A amostra formada é representada em metade dos casos por entidades fundadas no século XIX (1815-1915); 12% dos institutos são anteriores a 1550, enquanto os restantes são fundações atribuídas à idade moderna (14%) ou ao século passado (25%).

As respostas e a análise dos contextos de origem permitem salientar que se deve reforçar a atenção ao património nas comunidades de vida consagrada. Independentemente da idade da fundação, a preocupação com o património cresce ao tornar-se difícil geri-lo, sobretudo devido à diminuição do número de comunidades. A atenção ao património cultural não se tornou estruturante, sendo apenas emergencial, expondo-o ao risco de vias de proteção e valorização reduzidas. A esperança é que a conferência marque a viragem e a “conversão”, para sensibilizar mais, antecipar situações críticas, passando da emergência à oferta de projetos e ferramentas de catalogação e proteção.

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Não será descabido pensar o que fariam os/as fundadores/as face ao contexto atual. É certo que muitos institutos terão desvirtuado a finalidade tida em conta na fundação, mas há sempre a possibilidade de refundar, recomeçar e assumir o carisma em diálogo com as exigências do contexto. Ter património e cuidar dele não é contrafação da pobreza evangélica, desde que a evangelização e o interesse dos pobres sejam privilegiados.

2022.05.04 – Louro de Carvalho

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