segunda-feira, 30 de maio de 2022

Descoberto o original da Clavis Prophetarum, do padre António Vieira

 

A jornalista Christiana Martins refere, na edição do Expresso de 27 de maio, que o original do texto profético-apocalíptico Clavis Prophetarum (três livros), do padre António Vieira, foi descoberto na Biblioteca Gregoriana, em Roma, por dois investigadores portugueses, vindo a ser apresentado, no dia 30 deste mesmo mês, numa emissão em direto a unir Portugal e Itália.

O manuscrito original da Clavis Prophetarum (Chave dos Profetas) de Vieira fora dado como perdido há cerca três séculos, havendo até quem dissesse que nem existia tal conjunto de textos.

Feitos os devido testes e verificações, encarregaram-se do anúncio da descoberta surpreendente, embora não estranha – dada a estreita relação dos jesuítas com Roma –, Ana Travassos Valdez, especialista em literatura apocalíptica e investigadora principal do Centro de História da Universidade de Lisboa, e Arnaldo do Espírito Santo, professor emérito da Faculdade de Letras.

Na predita emissão em direto realizada em conjunto pela Universidade Gregoriana e pela faculdade de Letras da Universidade de Letras de Lisboa ficaram desvendadas imagens do manuscrito. E esse encontro virtual contou, além das técnicas italianas que têm trabalhado no restauro do volume, com as comunicações do reitor da universidade italiana, do diretor da biblioteca onde o manuscrito foi encontrado, do reitor da Universidade de Lisboa, da presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia e dos referidos especialistas portugueses.

Foram enviados alertas do evento a um universo total de milhares de pessoas, incluindo todos os ex-alunos da faculdade de Letras e há um site, em italiano, português e em inglês, em que é disponibilizada a informação fundamental sobre o manuscrito, de pendor exegeta, político, utópico e otimista.

O texto em referência, que versa a necessidade do fim do mundo para que surja outro novo, mais próximo do original da criação divina, é o resultado de décadas de trabalho daquele que é considerado “o imperador da língua portuguesa”, depois que Fernando Pessoa, o poeta de Mensagem assim o denominou. Escrito em latim, em 324 folhas desiguais, o manuscrito traz várias novidades para os especialistas que se debruçam sobre a obra de Vieira.

Refere a Infopédia, da Porto Editora, que esta foi a obra “tão cansada e suada” da velhice de António Vieira, considerada por este como a sua obra capital.

O padre Bonucci, que assistia Vieira para conclusão deste tratado, escreveu, poucos dias antes da morte do autor, que poderia, com a ajuda de Deus, ficar pronto no ano seguinte. E, após o falecimento do orador-escritor, ficou encarregado de acabar a obra, mas, tendo adiado o trabalho que se lhe afigurava agora mais difícil e coligindo outros escritos dispersos do mestre, acabou por não o fazer. Em 1700, foi enviada uma cópia da obra para Roma, que se perdeu, apesar de ter já sido transcrita algumas vezes. Em 1714, o autógrafo chegou a Lisboa, onde foi ordenado pelo padre Carlos António Casnedi, que tentou estruturar os cadernos e resumir o seu conteúdo em Latim, munindo-o de algumas notas pessoais. Vieira defendia, nesta obra, algumas teses que, segundo o padre Casnedi, poderiam chocar algumas consciências. Considerava que os ameríndios viviam na “ignorância invencível” de Deus e do direito natural, o que os livrava do inferno. E julgava que a Terra Santa devia ser restituída aos judeus e permitida a reconstrução do Templo de Jerusalém, para se oferecerem os sacrifícios e praticarem os ritos prescritos pela lei mosaica, apesar da sua conversão ao catolicismo. E cria, na probabilidade, dentro de maior ou menor espaço de tempo, da segunda vinda do Senhor: “Não vos pertence conhecer o tempo nem o momento que o Pai estabeleceu em seu poder” (Atos dos Apóstolos 1,7).

***

António Vieira nasceu em Lisboa, em 1608, e partiu, ainda criança (aos 6 anos de idade), com a família para o Brasil. O pai, que era da baixa nobreza, deslocou-se ao outro lado do Atlântico para assumir o cargo de secretário da Governação. E o filho estudou no colégio jesuíta de São Salvador da Baía. Depois, em 1623, entrou para a Companhia de Jesus, mas regressou a Portugal como noviço e recebeu a ordenação presbiteral em 1634, apenas com 26 anos de idade.

O padre, especialista na retórica, falava de uma forma distinta, sabendo adaptar o discurso ao seu auditório. Sendo um homem de muitos talentos, era inegável que possuía o dom da oratória, uma capacidade que fazia com que desse nas vistas, desempenhando um papel importante a persuadir e a espalhar a mensagem. Tanto assim era que, em1640, perante a ameaça de um ataque holandês na Baía, Vieira pregou um sermão aguerrido: “Pela vitória das nossas armas!”.

Especialista na arte da comunicação, foi sendo reconhecido, ao longo da vida, pelo seu intelecto e pelo seu talento. E, em 1641, o jesuíta chegou a integrar uma delegação que veio a Portugal manifestar a D. João IV o apoio do Brasil à Restauração.

Os seus sermões em Lisboa revelaram-se um total êxito, apresentando um conteúdo rico, servido de uma linguagem clara e enriquecido com metáforas pertinentes que permitiam ilustrar o que pretendia comunicar. E comoveram tanto o rei, que este o nomeou pregador da capela real.

Era um homem de causas. Não se ficava pelo discurso polido. Antes, foi um acérrimo defensor dos judeus e dos índios. Foi missionário, entregando-se a causas que o apaixonavam. E, além de escritor genial, revelou o seu talento como “agente secreto”. D. João IV percebeu que Vieira tinha uma habilidade incomum. Por isso, recorreu à influência que ele tinha a partir do púlpito de forma que o padre transmitisse determinadas mensagens que favoreciam o reino. Todavia, a “agenda política” do Rei era passada de forma despercebida, o que permitia ao padre assumir missões secretas no estrangeiro que, sendo delicadas, eram importantes.

Assim, Vieira realizou viagens diplomáticas pela Europa, nos anos de 1646 e 1647. Esteve em França, na Holanda e em Roma. Nesta cidade, a sua missão oficial seria fomentar junto do papa as condições para o surgimento de uma reconciliação luso-espanhola. No entanto, a intenção seria suscitar em Nápoles o desejo de revolta contra a coroa de Madrid. As suas manobras não conheceram o sucesso pretendido, mas não foram viagens desperdiçadas, pois contactou, através com as comunidades de judeus portugueses presentes em Rouen (França) e em Amesterdão (Holanda). E, após o regresso a Portugal, convenceu o rei a terminar com a pena de confisco dos bens por delito de judaísmo, medida que a Inquisição aplicava, por sistema, aos cristãos-novos, ou seja, aos judeus convertidos ao cristianismo, mas que eram suspeitos de práticas judaicas na clandestinidade. Os inquisidores não gostaram desta intervenção e nunca mais lhe perdoaram, acabando por, em 1668, o virem a acusar de herege.

O padre também se tornou o principal impulsionador da Companha Geral do Comércio do Brasil, destinada a captar investimentos dos judeus portugueses no estrangeiro. Mas, em 1649, publicou a História do Futuro e esteve à beira de ser expulso da Companhia de Jesus, por ter manifestado apoio ao rei num litígio com os jesuítas. E, para evitar a expulsão, regressou ao Brasil. No Maranhão, convivendo com os índios. Envolveu-se apaixonadamente nas suas causas, colocando-se ao lado deles em disputas com os colonos que os escravizavam. É dessa altura o Sermão de Santo António aos Peixes, pregado no Maranhão, a 13 de junho de 1654, dia da festa do santo.

Ficou para a história a alegoria que Vieira usou contra a desumanidade com que os colonos portugueses tratavam os índios. Aí, teve a coragem de dizer: “Os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros (…) e os grandes comem os pequenos.” Os colonos pressionaram e o padre teve de regressar a Lisboa, em 1661. Mas o seu regresso não foi o mais feliz, pois D. João IV, que era seu protetor, tinha morrido em 1657. E o conde de Castelo Melhor, ministro D. Afonso VI, o novo rei, desterrou o sacerdote, quando soube que ele conspirava contra o rei a favor de D. Pedro.

A Inquisição abriu um processo a Vieira, em 1662, acusando-o de ter opiniões heréticas. O livro Quinto Império do Mundo, Esperanças de Portugal foi o pretexto, pois anunciava a ressurreição de D. João IV. E Vieira acabou por ser proibido de pregar e condenado a reclusão numa das casas dos jesuítas. Em 1667, foi salvo na sequência do golpe de Estado de D. Pedro, que destronou o irmão. E partiu para Roma, onde sabia que seria bem recebido, visto que os seus sermões tinham encantado o papa. Já em Itália, tratou de estreitar relações com os judeus. O padre, não esquecendo os seus valores e convicções, escreveu contra a Inquisição. E, antes de regressar a Portugal, obteve um salvo-conduto de Clemente X que impedia os inquisidores de o incomodarem. Tinha 67 anos quando regressou a Lisboa em 1675. Até então, a proteção papal revelou-se de valor inestimável. Depois, o Santo Ofício usufruía dos favores do regente (futuro D. Pedro II). E o padre, magoado, tratou da publicação dos sermões e regressou, em 1681, ao país que o acolheu do outro lado do Atlântico. Por lá, Vieira ainda se deixou envolver na política local, tendo defendido a abolição da escravatura dos Índios com a sua sagacidade natural. Até ao momento da morte, concentrou-se na escrita profética, tendo falecido aos 89 anos, a 17 de junho de 1697, na Baía.

Eminentemente barroco (exímio utilizador do concetismo) deixou cerca de 200 sermões, sete centenas de cartas, História do Futuro, Apologia das Coisas Profetizadas, Defesa Perante a Inquisição, Autos do Processo da Inquisição e outros, dispersos por arquivos em Portugal, Brasil, Itália, Espanha, França, México e Inglaterra, e o original da Clavis Prophetarum.

2022.05.30 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário