A jornalista Christiana Martins refere, na edição do Expresso de 27 de maio, que o original
do texto profético-apocalíptico Clavis
Prophetarum (três livros), do padre António Vieira, foi descoberto na
Biblioteca Gregoriana, em Roma, por dois investigadores portugueses, vindo a
ser apresentado, no dia 30 deste mesmo mês, numa emissão em direto a unir
Portugal e Itália.
O manuscrito original da Clavis Prophetarum (Chave dos
Profetas) de Vieira fora dado como perdido há cerca três séculos, havendo
até quem dissesse que nem existia tal conjunto de textos.
Feitos os devido testes e verificações,
encarregaram-se do anúncio da descoberta surpreendente, embora não estranha –
dada a estreita relação dos jesuítas com Roma –, Ana Travassos Valdez,
especialista em literatura apocalíptica e investigadora principal do Centro de
História da Universidade de Lisboa, e Arnaldo do Espírito Santo, professor
emérito da Faculdade de Letras.
Na predita emissão em direto realizada em conjunto
pela Universidade Gregoriana e pela faculdade de Letras da Universidade de
Letras de Lisboa ficaram desvendadas imagens do manuscrito. E esse encontro
virtual contou, além das técnicas italianas que têm trabalhado no restauro do
volume, com as comunicações do reitor da universidade italiana, do diretor da
biblioteca onde o manuscrito foi encontrado, do reitor da Universidade de
Lisboa, da presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia e dos referidos
especialistas portugueses.
Foram enviados alertas do evento a um universo total de milhares de pessoas, incluindo todos os ex-alunos da faculdade de Letras e há um site, em italiano, português e em inglês, em que é disponibilizada a informação fundamental sobre o manuscrito, de pendor exegeta, político, utópico e otimista.
O texto em referência, que versa a necessidade do fim
do mundo para que surja outro novo, mais próximo do original da criação divina,
é o resultado de décadas de trabalho daquele que é considerado “o imperador da
língua portuguesa”, depois que Fernando Pessoa, o poeta de Mensagem assim o denominou. Escrito em latim, em 324 folhas
desiguais, o manuscrito traz várias novidades para os especialistas que se
debruçam sobre a obra de Vieira.
Refere a
Infopédia, da Porto Editora, que esta foi a obra “tão cansada e suada” da
velhice de António Vieira, considerada por este como a sua obra capital.
O padre Bonucci,
que assistia Vieira para conclusão deste tratado, escreveu, poucos dias antes
da morte do autor, que poderia, com a ajuda de Deus, ficar pronto no ano
seguinte. E, após o falecimento do orador-escritor, ficou encarregado de acabar
a obra, mas, tendo adiado o trabalho que se lhe afigurava agora mais difícil e
coligindo outros escritos dispersos do mestre, acabou por não o fazer. Em 1700,
foi enviada uma cópia da obra para Roma, que se perdeu, apesar de ter já
sido transcrita algumas vezes. Em 1714, o autógrafo chegou a Lisboa, onde
foi ordenado pelo padre Carlos António Casnedi, que tentou estruturar os
cadernos e resumir o seu conteúdo em Latim, munindo-o de algumas notas
pessoais. Vieira defendia, nesta obra, algumas teses que, segundo o padre
Casnedi, poderiam chocar algumas consciências. Considerava que os ameríndios
viviam na “ignorância invencível” de Deus e do direito natural, o que
os livrava do inferno. E julgava que a Terra Santa devia ser restituída aos
judeus e permitida a reconstrução do Templo de Jerusalém, para se oferecerem os
sacrifícios e praticarem os ritos prescritos pela lei mosaica, apesar da sua
conversão ao catolicismo. E cria, na probabilidade, dentro de maior ou menor
espaço de tempo, da segunda vinda do Senhor: “Não vos pertence conhecer o tempo
nem o momento que o Pai estabeleceu em seu poder” (Atos dos Apóstolos 1,7).
***
António Vieira nasceu
em Lisboa, em 1608, e partiu, ainda criança (aos 6 anos de idade), com a família
para o Brasil. O pai, que era da baixa nobreza, deslocou-se ao outro lado do
Atlântico para assumir o cargo de secretário da Governação. E o filho estudou
no colégio jesuíta de São Salvador da Baía. Depois, em 1623, entrou para a
Companhia de Jesus, mas regressou a Portugal como noviço e recebeu a ordenação
presbiteral em 1634, apenas com 26 anos de idade.
O padre, especialista na retórica, falava de uma forma
distinta, sabendo adaptar o discurso ao seu auditório. Sendo um homem de muitos
talentos, era inegável que possuía o dom da oratória, uma capacidade que fazia
com que desse nas vistas, desempenhando um papel importante a persuadir e a
espalhar a mensagem. Tanto assim era que, em1640, perante a ameaça de um ataque
holandês na Baía, Vieira pregou um sermão aguerrido: “Pela vitória das nossas
armas!”.
Especialista na arte da comunicação, foi sendo reconhecido, ao
longo da vida, pelo seu intelecto e pelo seu talento. E, em 1641, o jesuíta
chegou a integrar uma delegação que veio a Portugal manifestar a D. João IV o
apoio do Brasil à Restauração.
Os seus sermões em Lisboa revelaram-se um total êxito, apresentando
um conteúdo rico, servido de uma linguagem clara e enriquecido com metáforas pertinentes
que permitiam ilustrar o que pretendia comunicar. E comoveram tanto o rei, que este
o nomeou pregador da capela real.
Era um homem de causas. Não se ficava pelo discurso polido.
Antes, foi um acérrimo defensor dos judeus e dos índios. Foi missionário,
entregando-se a causas que o apaixonavam. E, além de escritor genial, revelou o
seu talento como “agente secreto”. D. João IV percebeu que Vieira tinha uma
habilidade incomum. Por isso, recorreu à influência que ele tinha a partir do
púlpito de forma que o padre transmitisse determinadas mensagens que favoreciam
o reino. Todavia, a “agenda política” do Rei era passada de forma despercebida,
o que permitia ao padre assumir missões secretas no estrangeiro que, sendo
delicadas, eram importantes.
Assim, Vieira realizou viagens diplomáticas pela
Europa, nos anos de 1646 e 1647. Esteve em França, na Holanda e em Roma. Nesta
cidade, a sua missão oficial seria fomentar junto do papa as condições para o
surgimento de uma reconciliação luso-espanhola. No entanto, a intenção seria
suscitar em Nápoles o desejo de revolta contra a coroa de Madrid. As suas
manobras não conheceram o sucesso pretendido, mas não foram viagens
desperdiçadas, pois contactou, através com as comunidades de judeus portugueses
presentes em Rouen (França) e em Amesterdão (Holanda). E, após o regresso a Portugal,
convenceu o rei a terminar com a pena de confisco dos bens por delito de
judaísmo, medida que a Inquisição aplicava, por sistema, aos cristãos-novos, ou
seja, aos judeus convertidos ao cristianismo, mas que eram suspeitos de
práticas judaicas na clandestinidade. Os inquisidores não gostaram desta
intervenção e nunca mais lhe perdoaram, acabando por, em 1668, o virem a acusar
de herege.
O padre também se tornou o principal impulsionador da Companha
Geral do Comércio do Brasil, destinada a captar investimentos dos judeus
portugueses no estrangeiro. Mas, em 1649, publicou a História do Futuro e esteve à beira de ser expulso da Companhia de
Jesus, por ter manifestado apoio ao rei num litígio com os jesuítas. E, para
evitar a expulsão, regressou ao Brasil. No Maranhão, convivendo com os índios.
Envolveu-se apaixonadamente nas suas causas, colocando-se ao lado deles em
disputas com os colonos que os escravizavam. É dessa altura o Sermão de Santo António aos Peixes,
pregado no Maranhão, a 13 de junho de 1654, dia da festa do santo.
Ficou para a história a alegoria que Vieira usou contra a
desumanidade com que os colonos portugueses tratavam os índios. Aí, teve a
coragem de dizer: “Os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como
os peixes, que se comem uns aos outros (…) e os grandes comem os pequenos.” Os
colonos pressionaram e o padre teve de regressar a Lisboa, em 1661. Mas o seu
regresso não foi o mais feliz, pois D. João IV, que era seu protetor, tinha
morrido em 1657. E o conde de Castelo Melhor, ministro D. Afonso VI, o novo
rei, desterrou o sacerdote, quando soube que ele conspirava contra o rei a
favor de D. Pedro.
A Inquisição abriu um processo a Vieira, em 1662,
acusando-o de ter opiniões heréticas. O livro Quinto Império do Mundo, Esperanças de Portugal foi o pretexto,
pois anunciava a ressurreição de D. João IV. E Vieira acabou por ser proibido de pregar e condenado
a reclusão numa das casas dos jesuítas. Em 1667, foi salvo na sequência do
golpe de Estado de D. Pedro, que destronou o irmão. E partiu para Roma, onde
sabia que seria bem recebido, visto que os seus sermões tinham encantado o papa.
Já em Itália, tratou de estreitar relações com os judeus. O padre, não
esquecendo os seus valores e convicções, escreveu contra a Inquisição. E, antes
de regressar a Portugal, obteve um salvo-conduto de Clemente X que impedia os
inquisidores de o incomodarem. Tinha 67 anos quando regressou a Lisboa em 1675.
Até então, a proteção papal revelou-se de valor inestimável. Depois, o Santo
Ofício usufruía dos favores do regente (futuro D. Pedro II). E o padre,
magoado, tratou da publicação dos sermões e regressou, em 1681, ao país que o
acolheu do outro lado do Atlântico. Por lá, Vieira ainda se deixou envolver na
política local, tendo defendido a abolição da escravatura dos Índios com a sua
sagacidade natural. Até ao momento da morte, concentrou-se na escrita profética,
tendo falecido aos 89 anos, a 17 de junho de 1697, na Baía.
Eminentemente barroco (exímio utilizador do
concetismo) deixou cerca de 200 sermões, sete centenas de cartas, História do Futuro, Apologia
das Coisas Profetizadas, Defesa Perante a Inquisição, Autos do Processo da Inquisição e outros, dispersos por arquivos em Portugal, Brasil, Itália,
Espanha, França, México e Inglaterra, e o original da Clavis Prophetarum.
2022.05.30 – Louro de Carvalho
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