terça-feira, 10 de maio de 2022

O caso da LIMAR em Setúbal merecia tratamento proporcionado

 

Depois do que se passou na Assembleia da República (AR), que rejeitou a audição do Presidente da Câmara de Setúbal sobre o que se passou na LIMAR (Linha de Apoio aos Refugiados), bem como as da Embaixadora da Ucrânia, da secretária-geral do SIRP (Sistema de Informações da República) e do diretor nacional do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), o país assiste a onda de discussão inútil e a uma série de dizeres e atitudes contraditórios.

Estão em curso na AR audições da Ministra-Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, do Ministro da Administra Interna, da Associação de Ucranianos em Portugal, da Alta-Comissária para as Migrações, da Secretária de Estado da Igualdade e das Migrações e do Secretário-geral do Sistema de Segurança Interna.

Por sua vez, a Assembleia Municipal (AM) de Setúbal vota duas moções de censura (do PSD e do PS) ao Executivo presidido por André Martins (do PEV, eleito pela CDU). Porém, independentemente das votações, nada acontecerá ao autarca. Com efeito, no poder local, ao invés do que sucede com o Governo do país, o Executivo municipal não emana do órgão deliberativo (AM), que não pode destituir o executivo municipal, como a AR pode mandar abaixo um Governo se for aprovada uma moção de censura ou rejeitada uma moção de confiança ou o programa do governo. A iniciativa censória no poder local municipal tem valor meramente declarativo.

A CDU é o partido mais forte, mas não tem maioria absoluta (17 deputados municipais em 38, ou seja, está a 3 da maioria absoluta, 20). Para a moção do PS ser aprovada é preciso (pelo menos) que o PSD a vote favoravelmente; e, para a do PS ser aprovada é preciso (pelo menos) que o PSD faça o mesmo. Tudo indica, porém, que nem um partido nem o outro farão isso, até porque o conteúdo das duas moções é diferente. A moção do PSD diz que o Presidente da Câmara “não tem condições para permanecer no mandato”, já que André Martins sabia que os refugiados ucranianos acolhidos pela LIMAR, da responsabilidade da Câmara Municipal de Setúbal – estavam a ser recebidos pela Associação Edinstvo, cujos dirigentes são próximos do governo russo. Assim, no dizer do PSD, “provocou o problema e não promoveu qualquer solução como é da sua responsabilidade”. Já os socialistas recusam pedir a demissão do líder da autarquia. Se a moção fosse aprovada, a AM estaria apenas a “censurar politicamente” o Presidente da Câmara e a “sua equipa da vereação CDU”, não só pelo caso dos refugiados ucranianos como também por outras questões, como as relativas, por exemplo, ao estacionamento no concelho. Na verdade, o texto do PS deixa ler:

São demasiados e bastante graves todos estes factos e comportamentos ocorridos em apenas sete meses de mandato, pelo que, fruto das suas ações, o Presidente da Câmara e a sua equipa de vereação têm mais do que motivos para merecer o repúdio político por parte da Assembleia Municipal de Setúbal, no âmbito das suas competências previstas na lei e enquanto órgão fiscalizador da ação da Câmara Municipal.”.

O PS quer a criação duma Comissão Eventual de Fiscalização da Conduta da Câmara Municipal e dos serviços do Município no Acolhimento de Refugiados Ucranianos, “tendo em conta a permanente ausência de respostas” da parte de André Martins em relação ao assunto. Afirma não querer, pelo menos para já, a queda do Presidente aduzindo que há inquéritos em curso, pelo menos dois: um da Comissão Nacional de Proteção de Dados; e outro da Inspeção-Geral de Finanças, ordenado pela ministra da Coesão, Ana Abrunhosa, que tem a tutela do poder local.

Não podendo o executivo municipal cair por força de moções de censura aprovadas na AM, restaria que todos os vereadores da oposição (seis, num executivo de onze, contando com o presidente da autarquia) se fossem demitindo até que a vereação deixasse de poder funcionar por falta de quórum. O PS para já não alinha nesta medida em nome da necessidade de ficar apurada toda a verdade sobre esta história, enquanto o PSD parece encaminhar-se para aí, embora um dos dois vereadores, Fernando Negrão, seja contra.

Convenhamos que o caso de funcionária que supostamente fez cópias de documentos pessoais de outrem sem a respetiva autorização e terá passado, através do marido ou com ele, informações a entidades russas não podia ter dado origem a tal burburinho político, a menos que haja interesses em torno da questão. Atividades de espionagem por parte de estrangeiros merecem expulsão do país via diplomática, tanto assim que o país, não há muito tempo, expulsou funcionários da embaixada russa; infrações disciplinares estão sujeitas a processo disciplinar instaurado pela competente hierarquia e, havendo suspeita fundada de crime, merecem averiguação por parte do MP (Ministério Público) e eventualmente ação judicial; abuso de poder e veiculação indevida de informação lesiva de outrem estão sujeitos à ação dos tribunais judiciais.        

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Entretanto, a Alta-Comissária para as Migrações (ACM), garantiu, na AR, que só conheceu do envolvimento de uma associação russa no acolhimento de refugiados ucranianos quando o caso foi denunciado na comunicação social. Contrariou, assim, as declarações feitas horas antes pelo presidente da Associação dos Ucranianos em Portugal, Pavlo Sadhoka, que disse ter vindo a alertar o ACM para este tipo de situações desde 2011.

Especificamente, Sónia Pereira foi chamada À AR para ser ouvida sobre a receção a refugiados ucranianos na Câmara de Setúbal por funcionários alegadamente pertencentes a associações próximas do regime de Vladímir Putin. Segundo a ACM, logo que o organismo conheceu, pela imprensa, o que se estava a passar na autarquia de Setúbal, entrou em contacto com os “parceiros privilegiados”, ou seja, contactou “os centros locais de apoio ao imigrante em Setúbal, para perceber o conhecimento que tinham da situação, de que forma estavam a acompanhar, que atendimentos têm realizado com cidadãos deslocados da Ucrânia.

A responsável também esclareceu que a autarquia de Setúbal não tem protocolo com o ACM nem centro local de integração de imigrantes, além de “nunca” ter pedido reunião com o ACM para gerir ou organizar o acolhimento de pessoas refugiadas vindas da Ucrânia.

Horas antes, em audição também na AR, o presidente da Associação dos Ucranianos em Portugal afirmou que denunciou às secretas portuguesas russos pró-Putin no acolhimento de refugiados após anos de alertas ao Alto Comissariado das Migrações. Pavlo Sadoka reiterou que, após o início da invasão russa da Ucrânia, a 24 de fevereiro, a Associação dos Ucranianos em Portugal começou a receber denúncias de que “organizações que o Alto Comissariado reconhece como de ucranianos”, mas que são defensoras do regime do presidente russo, estavam a receber refugiados, a quem pediam informações pessoais e relacionadas com familiares que ficaram na Ucrânia. A associação solicitou uma reunião ao Alto Comissariado das Migrações para denunciar a situação, que ocorreu “no início de abril”, o que ficou desmentido como se viu.

Por seu turno, a Ministra-Adjunta e dos Assuntos Parlamentares com a tutela das Migrações, sobre o caso de Setúbal, disse aos deputados que se terão baixado “os níveis de alerta para questões de privacidade, o que não podia acontecer em matéria de acolhimento de refugiados” – situação “inaceitável”, “uma irresponsabilidade” ou “excesso de voluntarismo”. É o que pensa do sucedido em Setúbal com o acolhimento de refugiados ucranianos por cidadãos russos.

A governante começou por dizer que “Portugal, desde há muitos anos, tem feito um caminho de boas práticas de acolhimento”, mas que, “a confirmarem-se as notícias que têm vindo a público, Setúbal é um caso isolado”. Para Ana Catarina Mendes, tudo “tem de ser investigado”. Por isso, como afirmou, “o Ministro da Administração Interna pediu que a Comissão Nacional de Proteção de Dados faça um inquérito para perceber o que aconteceu com os dados pessoais que, dizem as notícias, possam ter sido tratados”. A ministra, que foi eleita deputada pelo círculo de Setúbal e que fora candidata à AM da autarquia, disse “não haver certeza de que [os dados] tenham sido enviados para alguma entidade externa”, mas, havendo a suspeita, tem de haver uma investigação e resposta a esta matéria”. E repetiu o que a alta comissária para as migrações já tinha afirmado na audição anterior: “O ACM e a CM de Setúbal não tem nenhum protocolo assinado”.

Também afirmou, na AR, o presidente da Ucrânia-Portugal-Europa-Associação Centro Social e Cultural Luso-Ucraniano que “a situação de Setúbal é uma situação isolada e revela falta de bom senso político e de respeito”. Disse que, desde que a associação foi criada em 2014, “foram alertados para pessoas infiltradas que, sendo ucranianas, pertenciam aos separatistas” e seguiam Putin. Porém, sublinhou que “não é uma situação que vai desgastar o acolhimento de ucranianos”

Entende que organizações a favor do regime de Putin têm todo o direito de existir, mas se têm uma influência muito forte não podem ser reconhecidas como interlocutoras da comunidade ucraniana.

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Enfim, é caso simples de encarar e resolver, não faltando entidades com a necessária competência para tanto. Ao invés, perde-se tempo na AR e na AM. E tudo porque a embaixadora da Ucrânia em Lisboa, cobrindo informações pouco fundadas, parece não conhecer as regras da diplomacia, que postula, acima de tudo, comedimento e descrição, não alinhamento com manifestação partidária como aquela em que se incorporou no 25 de Abril. E os poderes, com exceção do Primeiro-Ministro, parece que ficam em roda livre, sem o sentido da necessidade e da proporção.   

2022.05.10 – Louro de Carvalho

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