quarta-feira, 18 de maio de 2022

Recebida em Belém a agraciada com o Prémio Camões 2021

 

Regista a página web da Presidência da República que, no dia 16 de maio, “o Presidente da República recebeu em Belém a escritora moçambicana Paulina Chiziane, congratulando-a, agora pessoalmente, pela atribuição do Prémio Camões e inteirando-se do intenso programa de encontros com os seus leitores em Portugal”.

A escritora moçambicana nasceu em Manjacaze, Gaza (Moçambique), numa família protestante em que se falavam as línguas Chope e Ronga, mas cresceu nos subúrbios da cidade de Maputo, dantes denominada Lourenço Marques. Agora, vive e trabalha na Zambézia.

Aprendeu a Língua Portuguesa na escola duma missão católica. Começou a estudar Linguística na Universidade Eduardo Mondlane, mas não concluiu o curso.

Aprendeu a arte da militância na Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), organização em que militou ativamente durante a juventude, o que a levou a participar ativamente na cena política de Moçambique. Acabou por deixar de se envolver na política partidária para se entregar à escrita e publicação das suas obras. Porém, umas das razões da sua opção foi o desengano com as diretivas políticas da Frelimo na pós-independência, mormente em termos de políticas filo-ocidentais e ambivalências ideológicas internas, quer no atinente às políticas de monogamia e poligamia, quer pelas posições de economia política marxista-leninista, e pelo que via como hipocrisia em relação à liberdade económica da mulher.

Foi a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique. E, a este respeito, aludindo à temática do género, um dos fios condutores da sua obra, referiu que, quando começou a escrever, “ninguém acreditava” naquilo que ela fazia “porque eram escritos de mulher”. Todavia, iniciou a atividade literária em 1984, com contos publicados na imprensa moçambicana. As suas escritas têm gerado discussões polémicas sobre assuntos sociais, tal como a prática de poligamia no país.

Com o seu primeiro livro, Balada de Amor ao Vento (1990), discute a poligamia no sul de Moçambique durante o período colonial. Mercê da sua participação ativa nas políticas da Frelimo, a narrativa reflete o mal-estar social dum país devastado pela guerra de libertação e pelos conflitos civis que aconteceram após a independência.

Entre as suas obras, sem falar já nos sobreditos contos, destacam-se, no romance: “Balada de Amor ao Vento” (Moçambique, 1990; Lisboa, 2003); “Ventos do Apocalipse” (Maputo, 1993; Lisboa, 1999); “O Sétimo Juramento” (Lisboa, 2000); “Niketche: Uma História de Poligamia” (Lisboa, 2002; São Paulo, 2004; Maputo, 2009), o seu único livro publicado no Brasil; “As Andorinhas” (Maputo, 2009); “O Alegre Canto da Perdiz” (Lisboa, 2008); “Na mão de Deus” (2013); “Por Quem Vibram os Tambores do Além” (2013, com Rasta Pita); “Ngoma Yethu: O curandeiro e o Novo Testamento” (2015); e “O Canto dos Escravizados” (2017). E, entre outras obras, sobressai “Eu, mulher… por uma nova visão do mundo” (Testemunho, em 1992 e publicado em 1994).

O romance “Niketche: Uma História de Poligamia” ganhou o Prémio José Craveirinha em 2003.

A escritora Foi agraciada, em 2014, pelo Estado português, pela mão do Presidente da República Cavaco Silva, com o grau de Grande Oficial da Ordem do Infante Dom Henrique.

Em 2016, anunciou abandonar a escrita por está cansada das lutas travadas ao longo da sua carreira, mas, em 2021, tornou-se a primeira mulher africana a ser distinguida com o Prémio Camões, a mais prestigiosa honraria conferida a escritores lusófonos, patrocinada pelos governos do Brasil e de Portugal, tendo declarado sobre o inédito reconhecimento:

“Não contava com isso. Recebi a notícia e disse: ‘Meu Deus! Eu já não contava com essas coisas bonitas!’. É muito bom. Esse prémio é resultado de muita luta. Não foi fácil começar a publicar sendo mulher e negra. Depois de tantas lutas, quando achei que já estava tudo acabado, vem esse prémio. O que eu posso dizer? É uma grande alegria.”.

É de recordar que, segundo a nota informativa então divulgada, “o júri decidiu por unanimidade atribuir o Prémio à escritora moçambicana Paulina Chiziane, destacando a sua vasta produção e receção crítica, bem como o reconhecimento académico e institucional da sua obra”. E o júri também referiu a importância que a escritora dedica, nos seus livros, aos problemas da mulher moçambicana e africana, tal como sublinhou o seu trabalho recente de aproximação aos jovens, nomeadamente na construção de pontes entre a literatura e outras artes. Na verdade, como conclui a nota, Paulina Chiziane “está traduzida em muitos países e é hoje uma das vozes da ficção africana mais conhecidas internacionalmente, tendo já recebido vários prémios e condecorações”.

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É consensual que a escrita de Chiziane constitui uma lupa sobre a história e os traumas da Moçambique. Quando, em 1990, publicou o primeiro livro em Moçambique “Balada de Amor ao Vento, tornou-se a primeira mulher com um romance publicado no país. Desde aí foi-lhe atribuído o título de primeira romancista de Moçambique, embora prefira não ser tratada como romancista. Aliás, antes desta obra, já se dedicara ao conto (com publicações em jornais e revistas do país), que foi o primeiro género literário que explorou.

A sua obra evidencia um olhar pormenorizado sobre os problemas da mulher africana e da mulher moçambicana, mas não só: toda a cultura, os hábitos e o passado do continente e do país são vistos e pensados criticamente. Traumas históricos como a guerra civil moçambicana, o colonialismo e o racismo, práticas culturais como o curandeirismo e o sistema poligâmico e o tratamento dado à mulher em Moçambique e em África acabam por infiltrar-se tematicamente nos seus livros, como lembrava em entrevista dada pela escritora em 2014 (publicada na plataforma online Buala).

Chiziane falava do colonialismo português (“há um medo terrível dos portugueses, a repressão colonial foi muito dura”), das marcas profundas deixadas por essa experiência colonial em África e em Moçambique, das tradições seculares e culturais, do seu percurso de vida, da cultura moçambicana e do como como esta não se libertou das convenções e construções alheias, nomeadamente das dos colonizadores.

É de frisar que Paulina Chiziane dedicou o Prémio Camões 2021 às mulheres. Efetivamente, como disse à Lusa depois de receber a distinção, o Prémio Camões 2021 serve para valorizar o papel das mulheres numa altura em que o seu trabalho ainda é subvalorizado, quando “afinal a mulher tem uma alma grande e tem uma grande mensagem para dar ao mundo”, servindo este prémio “para despertar as mulheres e fazê-las sentir o poder que têm por dentro”.

Confessou-se confusa com a notícia do prémio, pois nem se lembrava de que “o Prémio Camões existia”, porque os confinamentos provocados pela covid-19 a deixaram “bem fechada em casa, desligada de tudo”. Não obstante, considerou que o prémio surgiu como surpresa bem-vinda: “uma surpresa muito boa para mim, para o meu povo, para a minha gente”, que escreve, em África, “o português, aprendido de Portugal” – disse “emocionada”, pois sempre achou que o seu português “não merecia tão alto patamar”.

O seu último trabalho foi “A voz do cárcere”, escrito em conjunto com Dionísio Bahule e lançado em 2021, em Maputo, depois de ambos entrarem nas prisões e ouvirem os reclusos – ela a escutar as mulheres, ele, os homens.

E, sobre o futuro, diz que “há tantas ideias”, ideias que “nem sempre o corpo consegue realizar”, mas o prémio poderá ser um motor para ela se sentir um pouco mais de pé, porque, às vezes, fica “cansada”, Enfim, como espera, o Prémio Camões pode ser “um alento novo”, um símbolo de que a sua caminhada “valeu a pena” e de que “é preciso continuar a lutar”.

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Oxalá que o seu intenso programa de encontros com os seus leitores em Portugal se revista do sucesso que merece; e as causas que defende tenham o merecido impacto na opinião pública.

2022.05.18 – Louro de Carvalho

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