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da Presidência da República que, no dia 16 de maio, “o Presidente da República
recebeu em Belém a escritora moçambicana Paulina Chiziane, congratulando-a,
agora pessoalmente, pela atribuição do Prémio Camões e inteirando-se do intenso
programa de encontros com os seus leitores em Portugal”.
A escritora moçambicana nasceu em Manjacaze, Gaza
(Moçambique), numa
família protestante em que se falavam as línguas Chope e Ronga, mas cresceu nos
subúrbios da cidade de Maputo, dantes denominada Lourenço Marques. Agora,
vive e trabalha na Zambézia.
Aprendeu
a Língua Portuguesa na escola duma missão católica. Começou a
estudar Linguística na Universidade Eduardo Mondlane, mas não concluiu o
curso.
Aprendeu a
arte da militância na Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), organização
em que militou ativamente durante a juventude, o que a levou a participar ativamente
na cena política de Moçambique. Acabou por deixar de se envolver na
política partidária para se entregar à escrita e publicação das suas obras. Porém,
umas das razões da sua opção foi o desengano com as diretivas políticas da Frelimo
na pós-independência, mormente em termos de políticas filo-ocidentais e ambivalências ideológicas
internas, quer no atinente às políticas de monogamia e poligamia, quer
pelas posições de economia política marxista-leninista, e pelo que via
como hipocrisia em relação à liberdade económica da mulher.
Foi a
primeira mulher a publicar um romance em Moçambique. E, a este
respeito, aludindo à temática do género, um dos fios condutores da sua obra,
referiu que, quando começou a escrever, “ninguém acreditava” naquilo que ela
fazia “porque eram escritos de mulher”. Todavia, iniciou a atividade literária em 1984, com contos
publicados na imprensa moçambicana. As suas escritas têm gerado
discussões polémicas sobre assuntos sociais, tal como a prática de poligamia no
país.
Com o seu primeiro
livro, Balada de Amor ao Vento (1990), discute a poligamia no sul
de Moçambique durante o período colonial. Mercê da sua participação ativa nas
políticas da Frelimo, a narrativa reflete o mal-estar social dum país devastado
pela guerra de libertação e pelos conflitos civis que aconteceram após a
independência.
Entre as suas
obras, sem falar já nos sobreditos contos, destacam-se, no romance: “Balada de Amor ao Vento” (Moçambique,
1990; Lisboa, 2003); “Ventos do
Apocalipse” (Maputo, 1993; Lisboa, 1999); “O Sétimo Juramento” (Lisboa, 2000); “Niketche: Uma História de
Poligamia” (Lisboa, 2002; São Paulo, 2004; Maputo, 2009), o seu único livro
publicado no Brasil; “As Andorinhas”
(Maputo, 2009); “O Alegre Canto da Perdiz” (Lisboa, 2008); “Na mão de Deus” (2013); “Por Quem Vibram os Tambores do Além”
(2013, com Rasta Pita); “Ngoma Yethu:
O curandeiro e o Novo Testamento” (2015); e “O Canto dos Escravizados” (2017). E, entre outras obras,
sobressai “Eu, mulher… por uma nova
visão do mundo” (Testemunho, em 1992 e publicado em 1994).
O
romance “Niketche: Uma História de Poligamia” ganhou o Prémio José
Craveirinha em 2003.
A escritora Foi agraciada,
em 2014, pelo Estado português, pela mão do Presidente da República Cavaco
Silva, com o grau de Grande Oficial da Ordem do Infante Dom Henrique.
Em 2016,
anunciou abandonar a escrita por está cansada das lutas travadas ao longo da
sua carreira, mas, em 2021, tornou-se a primeira mulher africana a ser
distinguida com o Prémio Camões, a mais prestigiosa honraria conferida a
escritores lusófonos, patrocinada pelos governos do Brasil e de Portugal, tendo
declarado sobre o inédito reconhecimento:
“Não contava com isso. Recebi a
notícia e disse: ‘Meu Deus! Eu já não contava com essas coisas bonitas!’. É
muito bom. Esse prémio é resultado de muita luta. Não foi fácil começar a
publicar sendo mulher e negra. Depois de tantas lutas, quando achei que já estava
tudo acabado, vem esse prémio. O que eu posso dizer? É uma grande alegria.”.
É de recordar
que, segundo a nota
informativa então divulgada, “o júri
decidiu por unanimidade atribuir o Prémio à escritora moçambicana Paulina
Chiziane, destacando a sua vasta produção e receção crítica, bem como o
reconhecimento académico e institucional da sua obra”. E o júri também referiu
a importância que a escritora dedica, nos seus livros, aos problemas da mulher
moçambicana e africana, tal como sublinhou o seu trabalho recente de
aproximação aos jovens, nomeadamente na construção de pontes entre a literatura
e outras artes. Na verdade, como conclui a nota, Paulina Chiziane “está traduzida em muitos países e é hoje uma
das vozes da ficção africana mais conhecidas internacionalmente, tendo já
recebido vários prémios e condecorações”.
***
É consensual que a escrita de Chiziane constitui uma
lupa sobre a história e os traumas da Moçambique. Quando, em 1990, publicou o
primeiro livro em Moçambique “Balada
de Amor ao Vento”, tornou-se a primeira mulher com um
romance publicado no país. Desde aí foi-lhe atribuído o título de primeira romancista
de Moçambique, embora prefira não ser tratada como romancista. Aliás, antes
desta obra, já se dedicara ao conto (com publicações em jornais e revistas do
país), que foi o primeiro género literário que explorou.
A sua obra evidencia um olhar pormenorizado sobre os
problemas da mulher africana e da mulher moçambicana, mas não só: toda a
cultura, os hábitos e o passado do continente e do país são vistos e pensados
criticamente. Traumas históricos como a guerra civil moçambicana, o
colonialismo e o racismo, práticas culturais como o curandeirismo e o sistema poligâmico
e o tratamento dado à mulher em Moçambique e em África acabam por infiltrar-se
tematicamente nos seus livros, como lembrava em entrevista dada pela escritora
em 2014 (publicada na plataforma online Buala).
Chiziane falava do colonialismo português (“há um medo
terrível dos portugueses, a repressão colonial foi muito dura”), das marcas
profundas deixadas por essa experiência colonial em África e em Moçambique, das
tradições seculares e culturais, do seu percurso de vida, da cultura moçambicana
e do como como esta não se libertou das convenções e construções alheias,
nomeadamente das dos colonizadores.
É de frisar que Paulina Chiziane dedicou o Prémio Camões 2021 às mulheres. Efetivamente,
como disse à Lusa depois de receber a distinção, o Prémio
Camões 2021 serve para valorizar o papel das mulheres numa altura em que o seu
trabalho ainda é subvalorizado, quando “afinal a mulher tem uma alma grande e
tem uma grande mensagem para dar ao mundo”, servindo este prémio “para
despertar as mulheres e fazê-las sentir o poder que têm por dentro”.
Confessou-se
confusa com a notícia do prémio, pois nem se lembrava de que “o Prémio Camões
existia”, porque os confinamentos provocados pela covid-19 a deixaram “bem
fechada em casa, desligada de tudo”. Não obstante, considerou que o prémio
surgiu como surpresa bem-vinda: “uma surpresa muito boa para mim, para o meu
povo, para a minha gente”, que escreve, em África, “o português, aprendido de
Portugal” – disse “emocionada”, pois sempre achou que o seu português “não
merecia tão alto patamar”.
O seu último
trabalho foi “A voz do cárcere”, escrito em conjunto com Dionísio Bahule
e lançado em 2021, em Maputo, depois de ambos entrarem nas prisões e ouvirem os
reclusos – ela a escutar as mulheres, ele, os homens.
E, sobre o
futuro, diz que “há tantas ideias”, ideias que “nem sempre o corpo consegue
realizar”, mas o prémio poderá ser um motor para ela se sentir um pouco mais de
pé, porque, às vezes, fica “cansada”, Enfim, como espera, o Prémio Camões pode
ser “um alento novo”, um símbolo de que a sua caminhada “valeu a pena” e de que
“é preciso continuar a lutar”.
***
Oxalá que o
seu intenso programa de encontros com os seus leitores em Portugal se
revista do sucesso que merece; e as causas que defende tenham o merecido
impacto na opinião pública.
2022.05.18 –
Louro de Carvalho
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