“Dr.
Esteves” era o designativo com que alguns brincalhões e críticos do regime
anterior a 25 de abril de 1974 mimoseavam o Professor Doutor António Oliveira
Salazar. Com efeito, usualmente a sua comparência em cerimónias de Estado ou em
determinados lugares problemáticos não era anunciada, mas apenas reportada após
a ocorrência.
Pelos
vistos, estava em causa a segurança pessoal do Presidente do Conselho de
Ministros, supostamente tão querido da esmagadora maioria dos cidadãos, mas
alvo dos adversários mais determinados e ferrenhos. O referido procedimento em
torno da figura do governante foi adotado sobretudo depois do falhado atentado
à bomba, preparado no dia 4 de julho de 1937.
Na
verdade, para os apaniguados do regime, estando em causa a segurança do chefe
do governo, estava em perigo a segurança do Estado, pois a permanência de
Salazar à testa da governança era imprescindível e o seu desaparecimento seria
catastrófico. Criou-se, em alguns ambientes politicamente mais pios, o rumor de
que Oliveira Salazar era imortal.
Recordo-me
da polémica gerada em torno da dispensa de funções de uma agente da PSP que
integrava o corpo de segurança do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro por
alegadamente ter divulgado pormenores dos procedimentos policiais em torno do
chefe do governo. Tal dispensa deu origem a um ato de solidariedade coletiva em
torno do tenente-coronel Aparício, que liderava o comando metropolitano de
Lisboa da PSP, e do general Lopes da Neta, então comandante geral da PSP, por
parte dos oficiais do exército que prestavam funções naquela corporação, de que
resultou a dispersão desses oficiais pelas unidades militares do exército.
Sensivelmente metade do tempo em que estive no Regimento de Infantaria de Viseu,
no âmbito do serviço militar obrigatório, tive como segundo comandante um
tenente-coronel provindo da PSP.
Quem
não se lembra da demissão de José Veiga Simão, Ministro da Defesa Nacional, no
primeiro dos governos de António Guterres, por causa da divulgação da lista dos agentes da secreta militar à
Assembleia da República?
Na
verdade, não devem ser revelados publicamente nomes nem procedimentos que
envolvam a segurança das figuras públicas que dela necessitem ou a que tenham
direito, bem como não podem ser objeto de divulgação os nomes e os modos de
atuação dos serviços secretos. “Segurança nacional”, “segredo de Estado”, para
o efeito, são expressões equivalentes e são mais prementes que o segredo de
justiça, imperativo em determinada fase do processo judicial, mas que é, tantas
vezes, veiculado para a opinião pública por motivos não aceitáveis.
Tudo
isto vem a propósito da recente “gafe” de Marcelo Rebelo de Sousa em ter
anunciado, ainda que informalmente, no passado dia 18 de maio, a meio da sua
viagem para Timor-Leste, a fim de participar nas comemorações dos 20 anos da
independência, a deslocação do primeiro-ministro à Ucrânia, no dia 21. Tal
anúncio veio minar os cuidados que rodeavam a
deslocação de Costa à Ucrânia, quer no atinente aos serviços portugueses, quer
no atinente aos serviços ucranianos.
Por
motivos de segurança, as visitas de figuras do Estado ao teatro de guerra são
mantidas em segredo até algum tempo após a sua efetivação. Obviamente, a visita
de António Costa à Ucrânia não era exceção, antes era de ‘alto risco’. E o
primeiro-ministro sempre omitiu a data em que iria a Kiev. Saíra de
Portugal no Falcon da Força Aérea, com elementos da Corpo de Segurança Pessoal
da PSP, todos munidos de capacetes militares e coletes à prova de bala, mas foi
apanhado de surpresa pela revelação do Presidente da República. Com esta
inconfidência, o Presidente ficava no centro das notícias, mas colocava a
viagem do primeiro-ministro em risco.
A travessia,
feita de carro, na madrugada aprazada, da fronteira da Polónia para a Ucrânia
já implicava riscos suficientes. Segundo uma fonte militar, as declarações de
Marcelo, a indiciar a data da chegada do primeiro-ministro a Kiev – cujo
conhecimento, por questões de segurança, era ‘classificado’ – puseram em perigo
a viagem e poderiam ter levado ao seu cancelamento recalendarizando-a para
outra altura. E a mesma fonte adiantou que o Presidente da República
revelou “falta de sentido de Estado”. De facto, só lhe faltou anunciar a hora
da chegada!
Entretanto, Costa,
que terá sido aconselhado à hipotética recalendarização da visita a Kiev,
considerando o seu envolvimento nas questões da União Europeia (UE), optou pela
manutenção da visita. Porém, não obteve correspondência às suas pressões, da
parte do exército, para que o material pesado de combate que Portugal fornece à
Ucrânia, no âmbito da ajuda dos países da NATO, chegasse ao destino ao mesmo
tempo que ele, o que teria relevante significado político.
São 15
blindados com lagartas M113, para transporte de pessoal, assim como um conjunto
de obuses de artilharia e metralhadoras pesadas Browning. O Exército
informou que precisava do mínimo de um mês para preparar os veículos, que
precisam de revisão, ao menos na parte mecânica, e da possível substituição de
baterias, dado estarem há muito imobilizados no campo militar de Santa
Margarida, e os colocar na Polónia. Cruzarão a fronteira com a Ucrânia, numa
viagem terrestre, por camião TIR ou por comboio, que atravessará toda a Europa,
demorando uma semana. Para tanto, Portugal terá o auxílio de militares
britânicos ou norte-americanos.
A ida do
equipamento por avião não é aconselhável, por questões de segurança e por
depender da autorização de sobrevoo de alguns países que poderão levantar
obstáculos.
Recorde-se
que o Departamento de Defesa dos EUA já há algum tempo vinha a insistir
com o nosso governo para que enviasse para a Ucrânia estes blindados (104
M113A2, provenientes dos Países Baixos, e 50 M113A1, que se encontravam na
Alemanha) que tinham sido adquiridos pelo Exército português em segunda mão aos
EUA, a preços reduzidos, aquando da diminuição do efetivo militar
norte-americano estacionado na Europa na década de 1990, no quadro do
desanuviamento subsequente ao fim da Guerra Fria, com a queda do Muro de Berlim,
em 1989, e a implosão da União Soviética, em 1991. Mas o Governo português foi
protelando a decisão.
Apesar de
tudo, ao chegar à capital ucraniana, António Costa já teve a satisfação de
encontrar reaberta a embaixada portuguesa, encerrada há quase três meses, na
sequência da invasão russa. Na verdade, para garantir o apoio à embaixada, o governo
português nomeou um oficial do Centro de Informações e Segurança Militar do
Exército, especialista na área da chamada inteligência e da contrainformação,
que estabelecerá relações com os outros serviços de informações de países parceiros
da NATO que já estão no local, podendo aceder a alguma informação privilegiada.
E a segurança do embaixador estará a cargo de seis elementos dos GOE (Grupo de
Operações Especiais, da PSP), que partiram dias antes para se inteirarem das
questões no terreno e que levaram camas articuladas de campanha, para dormirem
na embaixada, se necessário, e 80 caixas de rações de combate para distribuir
por todo o pessoal da representação portuguesa, o que dará para assegurar a sua
sobrevivência, em caso de cerco ou confinamento, durante cerca de um mês.
***
Costa,
que está, segundo consta, na lista negra do Kremlin, foi de comboio de Przemsyl
(Polónia) para Kiev (Ucrânia), na noite do dia 20 para o dia 21 (foram 11 horas
de viagem em território sob a mira dos russos). O comboio circulou às escuras,
para não facilitar a artilharia de Putin.
A
inconfidência de Marcelo, a mais alta figura do Estado, que todos devemos
respeitar, pôs em risco a segurança do primeiro-ministro e dos líderes
ucranianos que o receberam. A viagem fora planeada, segundo as regras, no maior
segredo, em operação conjunta com o Ministério dos Negócios Estrangeiros –
indispensável para as mensagens cifradas com as embaixadas portuguesas na
Polónia e na Roménia – e do SIED (Serviço de Informações Estratégicas de
Defesa) e com informação ao Presidente da República. Porém, ao invés do
esperado, a receber, em Kiev, Costa e o putativo cheque de 250 milhões de euros
para a reconstrução de escolas, só estava o vice-ministro dos Negócios
Estrangeiros ucraniano, e não o Presidente da República nem o
primeiro-ministro. Os ucranianos, perplexos com o amadorismo de Marcelo,
resguardaram-se. E os encontros de alto nível ocorreram em bunkers.
Em
todo o caso, Costa regressou com um convite de Zelensky para Marcelo visitar a
Ucrânia.
Não
acredito na tese do Tal&Qual,
desta semana, de que o Presidente Marcelo se estaria a vingar do facto de ter
conhecido a composição do terceiro elenco governativo de Costa pela comunicação
social. Penso, antes, que a tendência do Presidente para a tagarelice
compulsiva, travestida de comentário, às vezes, lhe obnubila o sentido de
Estado. Está neste caso, por exemplo, a promessa descabida de sujeitar a exame
prévio do Tribunal Constitucional a futura lei dos metadados.
Enfim,
já fomos governados por um homem que nunca se enganava e raramente tinha
dúvidas, mas agora temos um chefe de Estado com dúvidas sobre o que não existe,
algo que não sucedia no seu primeiro mandato. Aliás, precipitadamente, avisou
que dissolveria o Parlamento se o orçamento do Estado para 2022, avaliação que
deveria fazer só a posteriori. E
agora parece patinar com a síndrome da maioria absoluta. E é pena, pois ele tem
jeito para a conciliação.
Não
queremos o tempo do Dr. Esteves, mas os assuntos de Estado merecem peculiar
cuidado.
2022.05.25 – Louro de Carvalho
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