quarta-feira, 25 de maio de 2022

 

“Dr. Esteves” era o designativo com que alguns brincalhões e críticos do regime anterior a 25 de abril de 1974 mimoseavam o Professor Doutor António Oliveira Salazar. Com efeito, usualmente a sua comparência em cerimónias de Estado ou em determinados lugares problemáticos não era anunciada, mas apenas reportada após a ocorrência.

Pelos vistos, estava em causa a segurança pessoal do Presidente do Conselho de Ministros, supostamente tão querido da esmagadora maioria dos cidadãos, mas alvo dos adversários mais determinados e ferrenhos. O referido procedimento em torno da figura do governante foi adotado sobretudo depois do falhado atentado à bomba, preparado no dia 4 de julho de 1937.

Na verdade, para os apaniguados do regime, estando em causa a segurança do chefe do governo, estava em perigo a segurança do Estado, pois a permanência de Salazar à testa da governança era imprescindível e o seu desaparecimento seria catastrófico. Criou-se, em alguns ambientes politicamente mais pios, o rumor de que Oliveira Salazar era imortal.

Recordo-me da polémica gerada em torno da dispensa de funções de uma agente da PSP que integrava o corpo de segurança do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro por alegadamente ter divulgado pormenores dos procedimentos policiais em torno do chefe do governo. Tal dispensa deu origem a um ato de solidariedade coletiva em torno do tenente-coronel Aparício, que liderava o comando metropolitano de Lisboa da PSP, e do general Lopes da Neta, então comandante geral da PSP, por parte dos oficiais do exército que prestavam funções naquela corporação, de que resultou a dispersão desses oficiais pelas unidades militares do exército. Sensivelmente metade do tempo em que estive no Regimento de Infantaria de Viseu, no âmbito do serviço militar obrigatório, tive como segundo comandante um tenente-coronel provindo da PSP.

Quem não se lembra da demissão de José Veiga Simão, Ministro da Defesa Nacional, no primeiro dos governos de António Guterres, por causa da divulgação da lista dos agentes da secreta militar à Assembleia da República?       

Na verdade, não devem ser revelados publicamente nomes nem procedimentos que envolvam a segurança das figuras públicas que dela necessitem ou a que tenham direito, bem como não podem ser objeto de divulgação os nomes e os modos de atuação dos serviços secretos. “Segurança nacional”, “segredo de Estado”, para o efeito, são expressões equivalentes e são mais prementes que o segredo de justiça, imperativo em determinada fase do processo judicial, mas que é, tantas vezes, veiculado para a opinião pública por motivos não aceitáveis.

Tudo isto vem a propósito da recente “gafe” de Marcelo Rebelo de Sousa em ter anunciado, ainda que informalmente, no passado dia 18 de maio, a meio da sua viagem para Timor-Leste, a fim de participar nas comemorações dos 20 anos da independência, a deslocação do primeiro-ministro à Ucrânia, no dia 21. Tal anúncio veio minar os cuidados que rodeavam a deslocação de Costa à Ucrânia, quer no atinente aos serviços portugueses, quer no atinente aos serviços ucranianos. 

Por motivos de segurança, as visitas de figuras do Estado ao teatro de guerra são mantidas em segredo até algum tempo após a sua efetivação. Obviamente, a visita de António Costa à Ucrânia não era exceção, antes era de ‘alto risco’. E o primeiro-ministro sempre omitiu a data em que iria a Kiev. Saíra de Portugal no Falcon da Força Aérea, com elementos da Corpo de Segurança Pessoal da PSP, todos munidos de capacetes militares e coletes à prova de bala, mas foi apanhado de surpresa pela revelação do Presidente da República. Com esta inconfidência, o Presidente ficava no centro das notícias, mas colocava a viagem do primeiro-ministro em risco.

A travessia, feita de carro, na madrugada aprazada, da fronteira da Polónia para a Ucrânia já implicava riscos suficientes. Segundo uma fonte militar, as declarações de Marcelo, a indiciar a data da chegada do primeiro-ministro a Kiev – cujo conhecimento, por questões de segurança, era ‘classificado’ – puseram em perigo a viagem e poderiam ter levado ao seu cancelamento recalendarizando-a para outra altura. E a mesma fonte adiantou que o Presidente da República revelou “falta de sentido de Estado”. De facto, só lhe faltou anunciar a hora da chegada!

Entretanto, Costa, que terá sido aconselhado à hipotética recalendarização da visita a Kiev, considerando o seu envolvimento nas questões da União Europeia (UE), optou pela manutenção da visita. Porém, não obteve correspondência às suas pressões, da parte do exército, para que o material pesado de combate que Portugal fornece à Ucrânia, no âmbito da ajuda dos países da NATO, chegasse ao destino ao mesmo tempo que ele, o que teria relevante significado político.

São 15 blindados com lagartas M113, para transporte de pessoal, assim como um conjunto de obuses de artilharia e metralhadoras pesadas Browning. O Exército informou que precisava do mínimo de um mês para preparar os veículos, que precisam de revisão, ao menos na parte mecânica, e da possível substituição de baterias, dado estarem há muito imobilizados no campo militar de Santa Margarida, e os colocar na Polónia. Cruzarão a fronteira com a Ucrânia, numa viagem terrestre, por camião TIR ou por comboio, que atravessará toda a Europa, demorando uma semana. Para tanto, Portugal terá o auxílio de militares britânicos ou norte-americanos.

A ida do equipamento por avião não é aconselhável, por questões de segurança e por depender da autorização de sobrevoo de alguns países que poderão levantar obstáculos.

Recorde-se que o Departamento de Defesa dos EUA já há algum tempo vinha a insistir com  o nosso governo para que enviasse para a Ucrânia estes blindados (104 M113A2, provenientes dos Países Baixos, e 50 M113A1, que se encontravam na Alemanha) que tinham sido adquiridos pelo Exército português em segunda mão aos EUA, a preços reduzidos, aquando da diminuição do efetivo militar norte-americano estacionado na Europa na década de 1990, no quadro do desanuviamento subsequente ao fim da Guerra Fria, com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a implosão da União Soviética, em 1991. Mas o Governo português foi protelando a decisão.

Apesar de tudo, ao chegar à capital ucraniana, António Costa já teve a satisfação de encontrar reaberta a embaixada portuguesa, encerrada há quase três meses, na sequência da invasão russa. Na verdade, para garantir o apoio à embaixada, o governo português nomeou um oficial do Centro de Informações e Segurança Militar do Exército, especialista na área da chamada inteligência e da contrainformação, que estabelecerá relações com os outros serviços de informações de países parceiros da NATO que já estão no local, podendo aceder a alguma informação privilegiada. E a segurança do embaixador estará a cargo de seis elementos dos GOE (Grupo de Operações Especiais, da PSP), que partiram dias antes para se inteirarem das questões no terreno e que levaram camas articuladas de campanha, para dormirem na embaixada, se necessário, e 80 caixas de rações de combate para distribuir por todo o pessoal da representação portuguesa, o que dará para assegurar a sua sobrevivência, em caso de cerco ou confinamento, durante cerca de um mês.

***

Costa, que está, segundo consta, na lista negra do Kremlin, foi de comboio de Przemsyl (Polónia) para Kiev (Ucrânia), na noite do dia 20 para o dia 21 (foram 11 horas de viagem em território sob a mira dos russos). O comboio circulou às escuras, para não facilitar a artilharia de Putin.

A inconfidência de Marcelo, a mais alta figura do Estado, que todos devemos respeitar, pôs em risco a segurança do primeiro-ministro e dos líderes ucranianos que o receberam. A viagem fora planeada, segundo as regras, no maior segredo, em operação conjunta com o Ministério dos Negócios Estrangeiros – indispensável para as mensagens cifradas com as embaixadas portuguesas na Polónia e na Roménia – e do SIED (Serviço de Informações Estratégicas de Defesa) e com informação ao Presidente da República. Porém, ao invés do esperado, a receber, em Kiev, Costa e o putativo cheque de 250 milhões de euros para a reconstrução de escolas, só estava o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, e não o Presidente da República nem o primeiro-ministro. Os ucranianos, perplexos com o amadorismo de Marcelo, resguardaram-se. E os encontros de alto nível ocorreram em bunkers.

Em todo o caso, Costa regressou com um convite de Zelensky para Marcelo visitar a Ucrânia.

Não acredito na tese do Tal&Qual, desta semana, de que o Presidente Marcelo se estaria a vingar do facto de ter conhecido a composição do terceiro elenco governativo de Costa pela comunicação social. Penso, antes, que a tendência do Presidente para a tagarelice compulsiva, travestida de comentário, às vezes, lhe obnubila o sentido de Estado. Está neste caso, por exemplo, a promessa descabida de sujeitar a exame prévio do Tribunal Constitucional a futura lei dos metadados.

Enfim, já fomos governados por um homem que nunca se enganava e raramente tinha dúvidas, mas agora temos um chefe de Estado com dúvidas sobre o que não existe, algo que não sucedia no seu primeiro mandato. Aliás, precipitadamente, avisou que dissolveria o Parlamento se o orçamento do Estado para 2022, avaliação que deveria fazer só a posteriori. E agora parece patinar com a síndrome da maioria absoluta. E é pena, pois ele tem jeito para a conciliação.

Não queremos o tempo do Dr. Esteves, mas os assuntos de Estado merecem peculiar cuidado.

2022.05.25 – Louro de Carvalho

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