As viagens
constituem uma caraterística necessária da humanidade, pelo que a literatura de
viagem é tão velha como a escrita. Sempre existiu a necessidade de registar as
nossas mais diversas deambulações: a princípio, como registo e documentação dum
mundo desconhecido; e mais tarde, com feição de literatura e poesia, gizando a
história de aventureiras reais e fictícias.
As viagens
serviram de matéria-prima para a produção literária de alguns dos maiores
escritores do mundo: de Homero e Heródoto a Marco Polo, Júlio Verne, Jonathan
Swift, José Saramago, García Márquez, Charles Darwin, Rimbaud, Jack Kerouac,
Hemingway e Goethe, passando por Vergílio, César e Alexandre Magno, Luís de Camões,
João de Barros e Fernão Mendes Pinto.
A literatura
portuguesa de viagens assenta na atividade dos descobrimentos e na necessidade do
registo de rotas, condições atmosféricas, acidentes de costa e de todos os
elementos facilitadores da repetição e prossecução dos percursos efetuados. Assim,
antecedem esta literatura os roteiros e diários de bordo, documentos técnicos
para orientação náutica. Porém, nesses textos, emergem já comentários que
alargam a notação descritiva em notas de pitoresco, descrições surpreendentes
ou narrativas que denotam empenho na relação entre o sujeito percetivo e o
mundo que se lhe vai revelando. Neste âmbito, temos, no século XVI, Esmeraldo
de Situ Orbis, de Duarte
Pacheco Pereira, e Roteiro do Mar Roxo, de Dom João de Castro. Todavia, as primeiras obras de interesse são Roteiro
da Primeira Viagem de Vasco da Gama, de Álvaro Velho, e Carta a Dom Manuel sobre o Descobrimento
do Brasil, de Pero Vaz de
Caminha.
Na sequência
da regularidade e multiplicação das viagens, aparecem relações de itinerários e
percursos, por mar ou por terra, mas matricialmente conexos com as viagens
ultramarinas, que aliam o interesse documental a procedimentos narrativos que
adquirem efeitos de ordem literária. São exemplo disso: Verdadeira
Informação do Preste João das Índias (1540), do Padre Francisco Álvares, Tratado
das Cousas da China (1570), de Frei Gaspar da Cruz, Itinerário
da Terra Santa (1593), de Frei Pantaleão de Aveiro, Etiópia
Oriental (1609), de Frei João
dos Santos, ou Itinerário da Índia por Terra (1611),
de Frei Gaspar de São Bernardino.
Por sua vez,
os escritores canónicos, que escreviam com intenção predominantemente
literária, centraram muitas obras na problemática da viagem, como faz Gil
Vicente, nomeadamente
no Auto da Índia e Camões, que faz dela a trama
fundamental em Os Lusíadas. Também os cronistas elaboram a matéria,
por vezes, em páginas importantes, mesmo do ponto de vista estético. É o caso:
de Gomes Eanes de Zurara, na Crónica
da Guiné, e de João de Barros, na Ásia.
A
proliferação desta literatura conhece, a partir da segunda metade do século
XVI, um género específico, o do relato de naufrágios, narrativa específica e
exclusiva de naus que naufragam, com descrição pormenorizada das reações
humanas geradas pelo naufrágio e do esforço trágico pela sobrevivência. O mais
antigo que se conhece, de 1554, é o do Galeão Grande São João, conhecido
por Naufrágio de Sepúlveda, de autor anónimo. Porém, outros merecem
também o benefício da atenção da análise literária, pela capacidade de escrita
do patético, pela descrição paralela do movimento físico e psicológico, pela
aliança duma crença inabalável na missão militar e religiosa do espírito de
conquista com pendor desenganado, neles figurando a contraepopeia lusa. São
eles: Relação do Naufrágio da Nau Santiago, de Manuel Godinho
Cardoso, Relação do Naufrágio da Nau São Bento, de Manuel de
Mesquita Perestrelo, Relação do Naufrágio da Nau Conceição, de
Manuel Rangel. Publicados em folhetos avulsos, foram reunidos no século XVIII
por Bernardo Gomes de Brito na História
Trágico-Marítima, em dois volumes (1735-36).
Merece
destaque, em toda esta literatura, pelo seu caráter excecional, Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, publicada em
1614, mas escrita antes de 1580. Nela, o autor narra a sua vida, de aventuras e desventuras, e as
suas viagens pelo Oriente, ao longo de 21 anos, em relatos com descrições
muito pormenorizadas dos povos, das línguas e terras por onde passou, revelando
admiração e fascínio pela grandiosidade dessas civilizações.
Temos ainda exemplos como: Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra, e Ramalho
Ortigão, Holanda, Eça de Queirós, O Egito (século XIX), Raul Brandão, Ilhas Desconhecidas, e José Saramago, Viagem a Portugal (século XX), Gonçalo
Cadilhe, por exemplo, em Nos Passos de
Magalhães e Gonçalo M. Tavares, por exemplo em Uma Viagem à Índia (século XXI).
Não é de
esquecer a fecundidade desta literatura na produção portuguesa ao consagrar
“tópoi diversos”. Tal é o caso do “romance marítimo”, iniciado entre nós com Eugénio,
de Francisco Maria Bordalo (1846), e cultivado na segunda metade do século
XIX, em desenvolvimentos temáticos que ocupam os vários géneros e em particularizações
atinentes a escolhas individuais de autores e a períodos da cultura de
homenagem ou de deploração dos descobrimentos, em viagens de exploradores
oitocentistas ou de escritores de todas as épocas, em reescritas de consonância
ideológica (Afonso Lopes Vieira, Onde
a Terra se Acaba e o Mar Começa, 1940), de evocação nostálgica (Sophia de
Mello Breyner, Navegações,
1988) ou de intenção paródica (António Lobo Antunes, As Naus, 1988).
***
Engana-se
quem pensa que literatura de viagens seja folheto de turismo ou guia de sítios
aonde ir ou com tópicos de agenda. Textos desses pertencem ao marketing de
turismo e ao material de informação e propaganda. Também não se trata de
acervos de monótonos e repetitivos relatos adjetivados, do tipo de diário pessoal
direcionado para os amigos nas redes sociais.
A expressão
“Literatura de Viagens” ou “Literatura de Viagem” não reflete um conceito
unívoco, pois é um género literário de transição entre o relato não ficcional e
a ficção, transformando-se consoante o contexto histórico e o objetivo do
autor, como se vê na diferença entre as narrativas das grandes navegações e as
postadas em meios digitais neste século. O estadunidense Clifford Geertz, no
livro O Antropólogo como Autor, observa
que a narrativa de viagem se propõe contar que “Fui aqui, fui ali, vi este
fenómeno estranho e aqueloutro”. E Marcel
Lúcio Matias Ribeiro, em artigo publicado pela UFRN (Universidade Federal Rio
Grande do Norte), afirma que
este género é uma escrita que contrasta as especificidades culturais do
viajante e do lugar visitado, criando um diálogo entre culturas: a nativa e a estrangeira.
Assim, esta
literatura, que surge da necessidade de entender o outro, pode modificar as
conceções de mundo do leitor e do próprio autor, visto que, para interpretar e
representar o estrangeiro, o autor parte dos seus preconceitos, estereótipos e
cultura, modificando ou confirmando-os. Por sua vez, o leitor faz o mesmo
percurso tentando viver imaginariamente o que não viveu realmente.
Para criar
uma descrição viva dos lugares visitados, é comum os autores recorrerem a
diversas áreas do saber, como a geografia, a história, a antropologia, as
ciências naturais e até a ficção, o que dá ao género uma feição
interdisciplinar, que justapõe relatos sobre a natureza da região, usos,
costumes, crenças, questões políticas, comerciais e artísticas, bem como
qualquer outro aspeto que tenha chamado a atenção do escritor, que dá, muitas
vezes, ao relato um cariz subjetivo.
Embora o
turismo como setor comercial seja atividade recente na história da humanidade,
não é de hoje que as pessoas lidam com a urgência de se moverem pela crusta
terrestre. E em todas as sociedades em que as viagens se aliam à escrita, estão
presentes os relatos de viagem.
Da
antiguidade ao início do século XVI, tanto as viagens como os relatos delas
eram motivados por fins práticos. Os primeiros movimentos humanos pela Terra nasceram
da busca de alimentos e de locais seguros para viver. Mais tarde, passaram a
concretizar razões de Estado, missões diplomáticas, religiosas e comerciais,
como as registadas, por exemplo, no Livro
das Maravilhas, de Marco Polo. Então, a maioria das estradas e vias
marítimos eram ocupadas por comerciantes. Em menor proporção, havia andarilhos,
escritores e estudiosos. Mas a razão utilitária das viagens passa a um
padrão de cunho pessoal no século XVI, ao surgirem as mansões de verão na
Itália e a figura dos aventureiros; e atinge o auge com a implantação do
capitalismo. E o primeiro hotel de turistas, como o conhecemos hoje, surgiu no
século XVIII, no mesmo século que o navio a vapor e o caminho de ferro, duas
invenções que facilitaram a vida daqueles que queriam explorar por
explorar. E hoje muitas reportagens resultam de viagem que um evento ou notícia
ocasionou.
Em 1841, o
britânico Thomas Cook organizou os primeiros tours guiados com
roteiros turísticos pré-definidos na Grã-Bretanha, Europa e Egito. Daí se pulou
para a popularização, no século XIX, dos serviços de pacotes turísticos, bem
como do surgimento de guias de viagem, impressos em várias línguas: manuais
detalhados que não só explicavam pari
passu como viajar, mas também abriam paras as impressões a extrair pelos
visitantes. A viagem passa de necessidade a aventura voluntária para obviar
à curiosidade e ocasionar o lazer, o que dá ao relato o grau de satisfação.
Com a
mudança do objetivo da viagem, muda a forma da narrativa de viagem: o texto
adota um tom menos funcional e ganha o floreio da linguagem literária, segundo
a tendência romântica, predominante em grande parte do século XIX e que veio a
contaminar as diversas literaturas.
2022.05.14 – Louro de Carvalho
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