sábado, 28 de maio de 2022

Coração de D. Pedro IV voará para o Brasil sob condição

 

O governo brasileiro quer emprestado o coração do fundador do país para as cerimónias do bicentenário da independência, mas a Irmandade da Lapa do Porto, a entidade religiosa guardiã da relíquia no Porto está reticente, exigindo garantias científicas.

O coração de D. Pedro IV, de Portugal, e D. Pedro I, do Brasil, está guardado na Irmandade da Lapa, no Porto, por decisão da viúva, D. Amélia de Leuchtenberg (a sua segunda esposa).

É o presidente da Câmara do Porto quem tem na sua secretária a chave da caixa de madeira onde, dentro de um frasco de vidro e submerso em formol, se encontra o coração de D. Pedro, o pai fundador da independência do Brasil. Mas é a Venerável Irmandade de Nossa Senhora da Lapa, que tem a chave da Igreja, no Porto, onde está guardada a preciosa relíquia. É pela conjugação da vontade entre as duas partes que se aceitará – ou não – o pedido para o coração de D. Pedro ser emprestado ao Brasil, no âmbito das comemorações, este ano, dos 200 anos da independência.

O pedido foi tornado público pelo embaixador brasileiro George Prata, um dos coordenadores das comemorações do bicentenário do Brasil, que disse à agência Lusa ter o Brasil iniciado, no princípio do mês de maio, conversações preliminares com o lado português “para explorar a possibilidade da transladação temporária do coração do D. Pedro para o Brasil”. Foi ele próprio que, ao visitar Portugal em fevereiro, fez alguns contactos iniciais. Esteve no Porto, visitou a Câmara Municipal e teve uma reunião com representantes da Venerável Irmandade de Nossa Senhora da Lapa. E o presidente da Câmara Municipal do Porto sabe que a matéria é delicada, pois existem receios quanto aos efeitos desta aventura transatlântica na relíquia, mas estará inclinado a dizer que sim ao pedido brasileiro, pois acha boa a medida para a promoção do Porto no Brasil. Ao invés, a predita irmandade coloca aquilo que a sua provedora, Maria Manuela Maia Rebelo, definiu claramente ao Diário de Notícias como uma “condição prévia”.

Há cerca de dez anos, cientistas brasileiros, querendo perceber definitivamente as causas da morte do fundador (não é certo se foi doença de chagas, tuberculose ou doença cardíaca), pediram para fazer uma biópsia à relíquia real, mas a irmandade, sua guardiã, não o permitiu, receando pela sua integridade física. E, agora, quer um parecer científico, feito de preferência pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, que assegure que não implicará perigos para a sua integridade física a viagem transatlântica da relíquia, para assinalar a independência do Brasil, declarada por D. Pedro, em 7 de setembro de 1822. Já a decisão política de dizer que sim ou não às autoridades brasileiras, como salienta a provedora, competirá à autarquia. Com efeito, “a irmandade é apenas fiel depositária da relíquia, a sua guardiã”, diz a provedora. Todavia, como D. Pedro doou o seu coração à cidade e não especificamente à Irmandade, é a cidade que tem de decidir.

Segundo Maria Manuela Maia Rebelo, iniciaram-se conversações com a Faculdade de Medicina, com vista à realização da perícia científica. Enquanto isto, a diplomacia brasileira aguarda, tendo a embaixada do Brasil em Lisboa dito que “não há desenvolvimentos recentes a referir”.

Porém, a esquerda brasileira vê a iniciativa com muitas reservas, temendo que Bolsonaro use as comemorações do bicentenário na campanha presidencial (a eleições são a 2 de outubro).

É ao liberal D. Pedro e às gentes do Porto que a cidade deve o título de Invicta. De julho de 1832 a agosto de 1833, resistiu ao cerco das tropas do seu irmão, D. Miguel. Resistindo, acabou por vencer, com a causa liberal a derrotar definitivamente a absolutista.

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O coração de D. Pedro IV está guardado a cinco chaves no Porto e precisa de mil cuidados. São precisas seis pessoas para se chegar até ao coração, numa operação que implica sempre riscos para a relíquia. Disse-o, em março de 2013, à agência Lusa Ribeiro da Silva, historiador e mesário da Ordem da Lapa, alertando para a fragilidade do coração do “Rei Soldado”, que morreu em Queluz, em setembro de 1834, e chegou ao Porto em fevereiro de 1835. Não se pode ver o coração por ser um órgão frágil e ter muitos anos. Há o receio de que esteja em estado precário. As operações, que são muito complexas, podem azar um mau resultado. Por isso, deve abrir-se o menos possível. O alerta refere-se à necessidade de “partir o vidro” para chegar ao coração doado à cidade, devido à gratidão pela resistência do Porto na luta das forças liberais contra as tropas absolutistas de D. Miguel, irmão de D. Pedro IV. Segundo disse o mesário, aquilo está de tal jeito que não é fácil tirar a tampa – “problema acrescido que se vai ter um dia”. Por isso, já então parecia difícil levar o coração para o Brasil, como era intenção de cientistas brasileiros, que pretendiam fazer-lhe uma biópsia para detetar eventuais doenças no miocárdio, inclusivamente as provocadas por processos infeciosos noutros órgãos.

Um investigador da Universidade de São Paulo disse à Lusa ter sido retirado um “micropedaço” de um osso da mão dos restos mortais de D. Pedro IV, a partir do qual se tentaria obter ADN, sendo que o acesso a “um pequeno fragmento do coração ajudaria no processo” e prometendo o seu regresso ao Porto. No entanto, o predito historiador, reconhecendo que, “sempre que vinha ao Porto uma alta patente brasileira ou o presidente do Brasil, vinham ver o coração”, sustentava que “agora, mesmo que venham, tem de haver alguma parcimónia”, pois não se pode estar a abrir a cada ano, porque “podemos ter um desgosto e não queremos que isso aconteça”.

Chegar ao coração implica a remoção da pesada placa de cobre pregada na porta de madeira que fecha o monumento, usar uma chave de cerca de 15 centímetros e outras quatro até passar a grade onde estão a urna, o estojo e o vaso de prata dourada com o recipiente de vidro que conserva o coração em formol.

Em 2009, o professor de anatomia convidado para fazer a análise indicou alguma “segurança” quanto à conservação “pelo menos nos próximos dez anos”. Achou que o coração estava um bocadinho dilatado e não lhe parecia que esteticamente fosse “uma coisa muito famosa”. Só que estas coisas têm um significado para lá da estética e “esse é que é o significado profundo”.

A autenticidade do coração de D. Pedro IV nunca esteve em causa, mas foi longo e conturbado o percurso que levou o órgão doado ao Porto até ao monumento onde está desde 1837 (já lá vão 185 anos), na igreja da Lapa. Depois da morte de D. Pedro, em Setembro de 1834, a sua mulher, D. Amélia de Leuchtenberg, fez encerrar o coração num escrínio (uma espécie de vaso ou guarda-joias) com duas tampas e entregou-o ao ajudante de campo do rei que o trouxe de Lisboa para o Porto num navio. O coração chegou ao Porto em fevereiro de 1835, quase cinco meses após a morte do monarca, foi “em procissão da Ribeira para a Lapa” e “toda a cidade esteve presente”.

Ora, D. Pedro ofereceu o coração ao Porto, porque viveu ali durante os meses do Cerco do Porto (de julho de 1832 a agosto de 1833), havendo entre ele e a população enorme cumplicidade. Trata-se de “um gesto único na história de Portugal”, como aponta Ribeiro da Silva, para quem não se tratou de amor à primeira vista, pois, “no início, a cidade não aderiu em massa, mas o rei, depois, deu provas de grande abnegação e grande heroicidade e o povo simpatizou imenso com ele”.

O coração chegou à Lapa numa urna de madeira de mogno, dentro da qual estava um estojo (o original foi a única peça substituída, mas mantém-se na igreja) e, lá dentro, um vaso de prata dourada com duas tampas. “Uma era uma espécie de adorno e a outra, presa com parafusos, dava acesso ao coração, inserido em líquidos conservantes desde a primeira hora”. Na altura, “os professores da escola médico-cirúrgica entenderam que o coração ficaria melhor conservado num recipiente de vidro, por se tratar de material mais estanque do que a prata.

Seguiram-se “dois anos de espera” para a Câmara do Porto e a Irmandade da Lapa “chegarem a acordo sobre sítio onde devia ficar o monumento”, período em que o coração “ficou na capela-mor à guarda de uma sentinela, porque havia receios de que fosse roubado”. Foi edificado do lado do Evangelho sob a orientação de um arquiteto da câmara, que tentou representar o Brasil e Portugal, as armas da Casa de Bragança e as armas militares. E enfatizou Ribeiro da Silva que “o granito é todo do Porto, foi escolhido o mais fino. É um ex-líbris da cidade e da igreja”.  

O coração foi doado à cidade e não à igreja da Lapa, motivo pelo qual foi necessário que a rainha D. Maria II, filha de D. Pedro, resolvesse o dilema sobre o local onde devia ficar o legado.

Quando D. Pedro veio para o Porto, ficou no Palácio dos Carrancas (onde está hoje o Museu Soares dos Reis), mas era um sítio muito exposto. Teve de recolher para um mais protegido. Ficou a morar na Rua de Cedofeita, mais ou menos no local onde está hoje a esquadra da PSP. A igreja mais próxima era a da Lapa e o seu fundador “era um brasileiro”. Pelo menos, ia à missa semanal, mas, segundo Ribeiro da Silva, há escritos de que ia ali à missa todos os dias. Daí que D. Maria II quisesse que o coração ficasse na igreja da Lapa. Contudo, para Ribeiro da Silva, o coração “significou uma coisa importantíssima: o amor pela liberdade”.

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Em 1972, o Brasil reclamou a trasladação do corpo de D. Pedro, a que Portugal acedeu sob a égide de Américo Tomás, que acompanhou o féretro, no navio Funchal, até ao Monumento da Independência, no bairro do Ipiranga, em São Paulo. Mas, agora, o coração comporta riscos.

2022.05.27 – Louro de Carvalho

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