segunda-feira, 2 de maio de 2022

A liberdade na ótica dos filósofos e as suas diversas aceções e limites

 

Liberdade (no latim, “libertas” e, no grego, “eleuthería) é conceito que assume grande variedade de sentidos, sendo difícil atribuir-lhe significado consensual, mesmo nos seus elementos basilares.

Entre os sentidos possíveis, aponta-se a capacidade de agir por si mesmo, que se desdobra em diferentes direções como autonomia, autodeterminação e independência. Compreende-se também na ótica da ausência de submissão e servidão, própria da liberdade social e política, e relaciona-se com a questão do livre arbítrio. Geralmente, opõe-se à conceção determinista do mundo, constituindo o pensamento de Hobbes, por exemplo, importante exceção a essa oposição. Com o fim da “guerra santa” na Idade Média, surge o conceito moderno de liberdade.

O filósofo humanista francês Étienne de La Boétie (1530-1563), no “Discursos sobre a Servidão Voluntária(2006), trata da liberdade política, que se dá na relação com as outras pessoas e não como algo apenas individual. A liberdade é natural,  tal como a vontade de a defender, de modo que um exército de homens livres está mais disposto a vencer uma guerra que um exército de servos, já que os servos não têm motivação para vencer tal combate. Como os homens são livres e iguais, qualquer divisão na sociedade a transforma em sociedade de servidão e, ao invés de Jean Jacques Rousseau, La Boétie não presume que tais sociedades nunca tenham existido, mas afirma que eram livres antes da sua divisão, ou seja, antes do nascimento do Estado. Por isso, La Boétie pode ser tido como precursor do pensamento anarquista.

O caráter natural da liberdade é tão pujante que nem os animais suportam a servidão sem protesto. De facto, “só quem for surdo não ouve o que dizem os animais”. Muitos morrem quando os apanham. E o elefante, após se defender até mais não poder, prestes a ser apanhado, espeta as presas nas árvores e quebra-as, mostrando o desejo que tem de continuar livre. Parece que deseja negociar com os caçadores, dando-lhes os dentes para que o soltem, entregando-lhes o marfim em penhor da liberdade.

O filósofo não explica porque houve a divisão da sociedade, mas explica o facto de a maioria se curvar e obedecer de bom grado a poucas pessoas ou até a uma pessoa e como um tirano se mantém no poder. E aduz três razões: o hábito, pois as pessoas, não tendo lembrança da liberdade por já nascerem em servidão e, ainda que naturalmente livres, está na sua natureza a tendência de adquirir certos costumes (essa “mudança de natureza” humana é o precursor da alienação, conceito desenvolvido por Hegel séculos depois); a covardia derivada da ilusão acerca do tirano, pela qual os súbditos se encantam de tal modo, manietados e entorpecidos pelos teatros, jogos, farsas, espetáculos, feras exóticas, medalhas, quadros e outras bugigangas, que perdem qualquer força ou energia; e a estrutura hierárquica do poder, já que as poucas pessoas que rodeiam o tirano e são da sua confiança são dominadas por ele e dominam as demais, o que é como estender ambas as mãos à servidão, afastar-se definitivamente da liberdade. E o filósofo explica melhor esta dinâmica dizendo que meia dúzia de dirigentes tem ao seu serviço mais seiscentos que procedem com eles como eles procedem com o tirano. Abaixo destes 600, há 6000 devidamente ensinados a quem confiam o governo das províncias ou a administração do dinheiro, para ocultarem as suas avarezas e crueldades, serem seus executores no momento preciso e praticarem tais malefícios que só à sombra deles podem sobreviver e não cair sob a alçada da lei e da justiça. E, abaixo de todos estes, vêm outros. Todavia, o poder do tirano está sempre nos súbditos: o povo voluntariamente nega a sua liberdade e transfere poder para o tirano. Sem a liberdade, nem as posses são aprazíveis, porque nada é nosso; e ao tirano não resta muita coisa, pois até a amizade é impossível para ele.

Segundo La Boétie, há uma forma de escapar da servidão, que é cessar de a desejar. Com efeito, é espantoso saber-se que não é preciso combater o tirano nem defender-se dele. Será destruído logo que o país se recuse a servi-lo. Não é preciso tirar-lhe nada, basta que ninguém lhe dê algo; nem que o país faça algo em favor de si próprio, mas que não faça nada contra si próprio. Portanto, a liberdade é alcançada por um simples ato de vontade: não requer ousadia, combate ou guerra.

Para o filósofo holandês Baruch Espinoza (1632-1677), liberdade identifica-se com a natureza do “ser”, pelo que ser livre significa agir de acordo com a sua natureza. É mediante a liberdade que o homem se exprime como tal e na sua totalidade. E é ela a própria realização, enquanto meta dos seus esforços. Associa-se a fruição da liberdade a determinação constante e inescapável, mas os ditames da nossa vida realizam-se a cada passo que damos. Assim, a deliberação está a cargo da vontade humana que abrange as leis físicas e químicas, biológicas e psicológicas. Por conseguinte, está conexa com a ideia de liberdade a noção de responsabilidade, já que ser livre implica assumir o conjunto dos nossos atos e saber responder por eles.

Segundo Gottfried Wihelm Leibniz (1646-1716), o agir humano é livre a despeito do princípio de causalidade que rege os objetos do mundo material. Ao invés, a ação humana é contingente, espontânea e refletida. É tal que poderia ser de outra forma (não necessária) e, por isso, contingente; é espontânea visto que parte do sujeito agente que, mesmo determinado, é responsável por causar ou não nova série de eventos na teia causal; e é refletida, pois o homem pode conhecer os motivos por que age no mundo e, conhecendo-os, lidar com eles livremente.

Para o filósofo alemão Artur Schopenhauer (1788-1860), a ação humana não é absolutamente livre. Todo o agir humano, bem como todos os fenómenos da natureza, até as suas leis, são níveis de objetivação da coisa-em-si kantiana que o filósofo identifica como sendo puramente vontade.

Schopenhauer diz que o homem é capaz de aceder à sua realidade por um duplo registo: o primeiro é o do fenómeno, onde todo o existente se reduz, nesse nível, a mera representação.

No nível essencial, que não se deixa apreender pela intuição intelectual e pela experiência dos sentidos, o mundo é apreendido imediatamente como vontade (vontade de vida). A noção de vontade assume aspeto amplo e aberto, transformando-se no princípio motor dos eventos que se sucedem na dimensão fenoménica segundo a lei da causalidade. Assim, o homem, objeto entre objetos, não possui liberdade de ação porque não é livre para deliberar sobre a sua vontade. Não escolhe o que deseja, logo, não é livre. É determinado a agir segundo a sua vontade particular, objetivação da vontade metafísica por trás de todos os eventos naturais. O que parece deliberação é ilusão ocasionada pela consciência dos próprios desejos. É poder viver sem ninguém mandar.

O filósofo alemão Karl Marx (1818-1883) – também economista, historiador, sociólogo, teórico político, jornalista e revolucionário socialista –, influenciado por Hegel nos “Manuscritos económico-filosóficos” e em “A Ideologia Alemã”, entende a liberdade como a constante criação prática pelos indivíduos de circunstâncias objetivas em que despontam as faculdades, sentidos e aptidões (artísticas, sensórias, teóricas...) e critica as conceções metafísicas da liberdade. Para ele, não há liberdade sem o mundo material em que os indivíduos manifestam na prática a sua liberdade juntamente com outras pessoas, que transformam as suas circunstâncias objetivas de modo a criar o mundo objetivo das suas faculdades, sentidos e aptidões. Ou seja, a liberdade só pode ser encontrada pelos indivíduos na produção prática das suas condições materiais de existência. Desta feita, se os indivíduos são privados das suas condições materiais de existência, isto é, se as suas condições objetivas de existência são propriedade privada (de outra pessoa), não há verdadeira liberdade e a sociedade divide-se em proletários e capitalistas. Sob o capital, a manifestação prática da vida humana, a atividade produtiva torna-se coerção (trabalho assalariado); as faculdades, habilidades e aptidões humanas tornam-se mercadoria (força de trabalho), vendida no mercado de trabalho; e a vida humana reduz-se à sobrevivência. Para Marx, as várias liberdades parciais do capitalismo – v.g: liberdade económica (de comprar e vender mercadorias), liberdade de expressão ou liberdade política (decidir quem governa) – pressupõem que se mantenha a separação dos homens em relação às suas condições de existência, pois, se tal separação for atacada pelos homens em busca da sua liberdade material fundamental, todas as liberdades parciais são suspensas (ditadura) para restabelecer o capitalismo; mas, se a luta dos indivíduos privados das suas condições de existência (proletários) tiver sucesso e eles conseguirem abolir a propriedade privada dessas condições, será instaurado o comunismo, entendido como a associação livre dos produtores.

O filósofo russo Mikhail Bakunin (1814-1876), também teórico político, sociólogo e revolucionário anarquista, não foca o ideal abstrato de liberdade, mas a realidade concreta baseada na liberdade simétrica de outros. Liberdade, segundo ele, consiste no desenvolvimento pleno de todas as faculdades e poderes de cada ser humano, pela educação, treinamento científico e prosperidade material. Tal conceção de liberdade é eminentemente social, porque só pode ser concretizada em sociedade, não isoladamente. Em sentido negativo, liberdade é “a revolta do indivíduo contra todo tipo de autoridade, divina, coletiva ou individual”.

No dizer do filósofo humanista argentino Carlos Bernardo González Pecotche (1901-1963), a liberdade é prerrogativa natural do ser humano, que nasce livre, embora não dê conta até ao momento em que a consciência o faz experienciar a necessidade de exercer tal prerrogativa como único meio de realizar as suas funções primordiais da vida e atingir o seu objetivo enquanto ser racional e espiritual. Como princípio, assinala o homem e substancia-lhe a sua posição no mundo, sendo preciso vinculá-lo ao dever e à responsabilidade individual. Com efeito, os dois termos, de grande conteúdo moral, formam a alavanca que move os atos humanos, preservando-os do excesso, prejudicial à independência e à liberdade de quem nele incorre. Assim, a liberdade é como o espaço e depende do ser humano que aquela seja, como este, mais ampla ou mais estreita, vinculada ao controlo dos seus pensamentos e atitudes. O conhecimento é o agente equilibrador das ações humanas; e, ao ampliar os domínios da consciência, é o que faz o ser mais livre.

Para o filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), também escritor e crítico, a liberdade é a condição ontológica do ser humano. O homem é, antes de tudo, livre. É livre mesmo de uma essência particular, como não o são os objetos do mundo. É tão livre que pode ser considerado a brecha por onde o Nada encontra o seu espaço na ontologia. O homem é nada antes de se definir como algo e é absolutamente livre para definir-se, comprometer-se, encerrar-se, esgotar-se a si mesmo. Assim, a liberdade é o núcleo central do pensamento de Sartre e resume toda a sua doutrina. A sua tese é que a liberdade é absoluta ou não existe. Assim, recusa todo o determinismo e condicionamento. Recusa Deus e inverte a tese de Lutero: para este, a liberdade não existe porque Deus tudo sabe e prevê, mas, para Sartre, como Deus não existe, a liberdade é absoluta. E recusa o determinismo materialista, pois, se tudo se reduzisse à matéria, não haveria consciência e não haveria liberdade. Assim, o fundamento da liberdade é o nada, o indeterminismo absoluto. A tendência a ser acaba por ser a negação da liberdade. Se o fundamento da consciência é o nada, nenhum ser consegue ser princípio de explicação do comportamento humano. Não há nenhum tipo de essência (divina, biológica, psicológica ou social) que anteceda e justifique o ato livre. É o próprio ato que tudo justifica. De certo modo, o homem escolhe inclusive o seu nascimento, pois, se se explicasse a partir do seu nascimento, duma certa constituição psicossomática, seria apenas uma sucessão de objetos. Porém, o homem não é objeto: é sujeito. Isso significa que, aqui e agora, a cada instante, é a sua consciência que está escolhendo para si o que o seu nascimento foi. O modo como é seu nascimento é eternamente mediado pela consciência, isto é, pelo nada. A falsificação da liberdade, ou a má-fé, reside precisamente na invenção dos determinismos de toda espécie, que põem o ser no lugar do nada.

A liberdade revela-se na angústia. O homem angustia-se ante a sua condenação à liberdade. O homem só não é livre para não ser livre: está condenado a fazer escolhas, e a responsabilidade de escolher é tão opressiva que surgem escapatórias através das atitudes e paradigmas de má-fé, em que o homem se aliena da liberdade, mentindo a si mesmo através de condutas e ideologias que o isentem da responsabilidade sobre as próprias decisões.

O escritor, crítico e pensador francês Guy Debord (1931-1994), no seu livro “A sociedade do espetáculo”, ao criticar a sociedade de consumo e o mercado, afirma que a liberdade de escolha é liberdade ilusória, pois escolher é sempre escolher entre duas ou mais coisas prontas, isto é, predeterminadas por outros. Uma sociedade como a capitalista, onde a única liberdade que existe socialmente é a liberdade de escolher que mercadoria consumir, impede que as pessoas sejam livres no quotidiano. O quotidiano, na sociedade capitalista, divide-se em tempo de trabalho (não livre, mas submisso à hierarquia de administradores e exigências de lucro impostas pelo mercado) e tempo de lazer (de liberdade domesticada de escolha entre coisas feitas sem liberdade no tempo de trabalho da sociedade). Assim, a sociedade da mercadoria faz da passividade (escolher, consumir) a liberdade ilusória que se deve buscar a todo o custo, enquanto, como seres ativos (no trabalho, na produção), somos não livres.

Por fim, a relevância do filósofo irlandês Philip Pettit (1945-…), radicado nos EUA, reside na construção duma teoria da liberdade que traz consigo implicações práticas para a consecução das finalidades da democracia. A iniciar o seu sistema filosófico, resgata dois pontos importantes do debate filosófico acerca da liberdade: o tratamento simbiótico imprimido à liberdade da vontade e à liberdade política; e a tradição republicana de concetualização da liberdade como não dominação, mais tarde substituída pela perceção liberal desta enquanto não interferência.

Philip inicia a sua abordagem pela ótica da liberdade da vontade. Para tanto, resgata as ideias desenvolvidas por Immanuel Kant  posto diante da indagação se existe liberdade da vontade.

***

Pode entender-se a liberdade em diversas exceções: condição do ser de poder agir consoante as leis da sua natureza; direito de qualquer cidadão poder agir sem coerção ou impedimento, segundo a sua vontade, desde que nos limites da lei; (filosofia) capacidade própria do ser humano de escolher autonomamente, segundo motivos definidos pela sua consciência; livre arbítrio (capacidade de escolha autónoma feita pela vontade humana, frente a um dado religioso e moral); estado de quem não está preso, detido ou cativo; condição de quem não é escravo ou de quem, tendo-o sido, foi libertado e é liberto; (política) condição de autodeterminação de povo ou nação ou estado do país que não depende de poder estrangeiro; ausência de restrições ou constrangimentos de expressão, reunião, manifestação ou circulação; estado de disponibilidade; licença ou permissão; condição de quem está solto, sem empecilho ao movimento; (sentidos figurados) atrevimento, familiaridade excessiva, desembaraço, franqueza; (plural em política e sociedade) garantias e imunidades; (plural em relações interpessoais) modo íntimo, ousado ou insolente de agir com alguém; (liberdade condicional em direito) possibilidade dada ao condenado, mediante a satisfação de certos requisitos determinados por lei, de abandonar a prisão antes de cumprida a totalidade da pena, passando a gozar dum estatuto de liberdade provisória, sujeita à vigilância e ao controlo de agentes da justiça; (liberdade de cátedra) direito que o docente tem de expor os seus conhecimentos sem se submeter a doutrina imposta (corresponde-lhe a liberdade de aprender); (liberdade de consciência) direito de professar as opiniões religiosas e políticas que se julgarem verdadeiras; (liberdade de imprensa) direito que os meios de comunicação social têm de emitir ou divulgar pensamentos, factos e opiniões sem censura prévia; (liberdade individual) garantia dos cidadãos de não serem impedidos do exercício dos seus direitos, exceto nos casos previstos na lei; e (liberdade poética) uso de recursos estilísticos, alterações morfológicas e sintáticas ou vocabulário só aceitável em registos poéticos.

A coação ditatorial pode silenciar o indivíduo que não perfilhe o pensamento único ou obrigá-lo a falar. Se não obedece, é preso e/ou torturado, desaparece ou morre. Por onde anda a liberdade?

2002.05.02 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário