Enquanto a Igreja
Católica continua mobilizada para a reflexão sobre a sinodalidade através de um
processo de escuta e diálogo, um painel de seis teólogos e canonistas notáveis
(alguns deles são cardeais), debateu a natureza da consulta e a tomada de
decisões numa Igreja sinodal.
A discussão
ocorreu a 20 de maio, no Palazzo Pio do Vaticano, no quadro da apresentação de
um novo livro lançado pela editora vaticana sob o título Sinodalidade com ‘Responsabilidade Limitada’ ou de Consultiva a
Deliberativa?, da autoria do cardeal Francesco Coccopalmerio, presidente
aposentado do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, órgão que
interpreta o Direito Canónico e elabora os projetos dos de atos legislativos que
se afigurem necessários.
Coccopalmerio
propõe que a sinodalidade seja vista como a comunhão de sacerdotes e fiéis que
se esforçam para procurar e discernir juntos o bem da Igreja, de modo que possam
ser tomadas as decisões aptas a alcançar esse bem. Preconiza maior discussão
sobre a participação dos fiéis leigos, quer processo consultivo na vida da Igreja,
quer na fase de tomada de decisões.
Os
conferencistas concordam que havia uma diferença entre o processo de tomada de
decisão como um exercício conjunto de discernimento, consulta e cooperação, e a
autoridade de tomada de decisão, que é da competência do bispo, nos termos do
documento aprovado pelo Santo Padre e publicado pela Comissão Teológica
Internacional, em 2018, sobre “Sinodalidade na Vida e Missão da Igreja”. Porém,
o cardeal Mario Grech, secretário-geral do Sínodo dos Bispos, disse que a reflexão do cardeal Coccopalmerio “não repudia ou ameaça a
autoridade”, seja do bispo, seja dos outros membros do clero, seja de qualquer
líder da Igreja. Ao invés,
pede-se que a autoridade esteja
sempre envolvida no processo de expressar, sem falta, a própria opinião e que
preste muita atenção para que haja um discernimento autêntico.
Assim, no
processo progressivo de tomada de decisão, nunca se trata de ir contra a pessoa
de autoridade, nem de suprir a sua ausência ou de a utilizar, mas de pensar e
agir sempre juntamente com tal pessoa e com o seu consentimento, disse Grech, explicitando
a reflexão do autor.
Este
processo de “discernimento comunitário”, em que o clero e os fiéis “estão
unidos na escuta comum do Espírito Santo”, não é fácil, disse o cardeal Grech,
mas há exemplos análogos, como o de como o Colégio dos Bispos é chamado a
exercer sempre a autoridade em conjunto e com o Papa. É, como vincou, um “processo espiritual” que não coloca clérigos e leigos uns
contra os outros, mas induz cada pessoa a estar “com” os outros na Igreja com o
desejo partilhado de ouvir, deliberar e determinar. É uma Igreja que não funciona como uma monarquia ou um parlamento, mas é
uma igreja de leigos e clérigos, unidos na sua identidade batismal comum e que
reúne os seus diferentes ministérios e carismas para discernir e planear,
acentuou Grech.
Já Mons.
Severino Dianich, teólogo e especialista em Eclesiologia, sustentou que é
fundamental este género de reflexão.
Em Itália e talvez noutras partes do
mundo, como frisou, “há um notável sentimento de frustração que deve ser
reconhecido” em como os conselhos estão realmente a funcionar, quer os
diocesanos quer os paroquiais.
Há uma sensação de que “caminhar
juntos” significa uma jornada que acontece apenas pela metade, porque, chegada
a hora de tomar uma decisão, pode parecer que o bispo ou o padre continua o
resto dessa jornada sozinho.
É uma
preocupação que teólogos e canonistas devem discutir, disse, especialmente ao
abordarem objeções a um maior envolvimento dos leigos, tal como os temores de
que isso se transforme “numa luta por posições de poder”. Vendo que é
exatamente o oposto, Dianich sublinhou que todos os cristãos são “ricos em
carismas”, que são diferentes para clérigos e para leigos, de modo que, quando
“um padre decide sozinho, ele é de facto empobrecido”. Ora, o processo deliberativo da comunidade eclesial “nada mais é do que enriquecer
o ministério hierárquico” com dons e carismas que podem servir a cada bispo ou
sacerdote individualmente.
Adiantando que
o Papa Bento XVI reconheceu isso num discurso de 2011 em que discutia a
encíclica do Papa São João XXIII Mater et Magistra, o sacerdote citou o
texto do Papa emérito, dizendo que os fiéis leigos “não podem ser apenas os
seus fruidores e executores passivos, mas constituem os protagonistas da mesma,
no momento vital da sua realização, bem como preciosos colaboradores dos
Pastores na sua formulação, graças à experiência adquirida no campo e às
próprias competências específicas”.
Uma razão
pela qual há maior consciência e desejo de que a Igreja seja mais sinodal –
disse Mons. Dianich – é a Igreja estar a redescobrir o seu “propósito original
fundamental”, que é existir, não para si mesma, mas para evangelizar.
Assim,
tornou-se evidente que
os evangelizadores mais importantes
– além do Papa, dos bispos e dos sacerdotes – são as pessoas “nas periferias e
parte da vida quotidiana”. Os fiéis leigos são aqueles que “estão rodeados de
pessoas” e encontram diária e diretamente aqueles que ainda não encontraram
Jesus e que podem testemunhar imediatamente o Evangelho em ação.
Por fim, o cardeal
Coccopalmerio disse que as suas propostas são muito rudimentares e devem ser
discutidas para determinar a sua validade com a orientação do Espírito Santo. E,
se as ideias não chegarem a lugar algum, “pelo menos terá existido a tentativa
de aprender mais sobre a natureza da Igreja”.
***
Já em 2016, o porta-voz dos cardeais
que assessoram Francisco na reforma da burocracia central da Igreja
– e que utilizaram a sua última reunião do ano para se focarem nos papéis dos
dicastérios vaticanos que interagem com os governos estrangeiros, supervisionam
a Igreja em territórios missionários e consideram quais padres são nomeados
bispos e que trabalham com as Igrejas Orientais – salientou que o cardeal Kevin Farrell,
do dicastério dedicado a leigos, família e a vida, enfatizou a importância do
papel do laicado na Igreja e fez aos cardeais um “convite para relerem” a carta
de abril que o Papa endereçou ao cardeal Marc Ouellet no seu
papel de presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina. Nela, o Sumo Pontífice
reafirmou o direito de os leigos tomarem decisões nas suas vidas, dizendo que
os padres devem confiar que o Espírito Santo vem trabalhando neles e que o
Espírito “não é só ‘propriedade’ da hierarquia eclesial”.
É importante considerar o contexto. E,
a este respeito, é de referir que Greg Burke, diretor da Sala de Imprensa da
Santa Sé, disse que o Conselho de Cardeais esteve particularmente focado nas
funções da Secretaria de Estado, da Congregação para a Evangelização dos Povos,
da Congregação para os Bispos e nas da Congregação para as Igrejas Orientais,
mas que surgiriam, na reunião, dois grandes temas como linhas-mestras: o zelo
missionário e a sinodalidade.
Por outro lado, segundo Burke, o Conselho dos Cardeais não falou
da carta polémica de novembro emitida por quatro cardeais a desafiar a
exortação apostólica Amoris laetitia do Papa Francisco
sobre a família. Na verdade, como sublinhou o diretor da Sala de
Imprensa da Santa Sé, “o Papa foi claro em que o Sínodo se
pronunciou, que o Espírito se pronunciou”. Referia-se às assembleias sinodais
de 2014 e 2015, que levaram o Sumo Pontífice a escrever o mencionado documento.
Burke revelou
também que, durante os encontros, os cardeais receberam atualizações dos dois
novos dicastérios vaticanos que Francisco criou a partir da
sugestão do grupo: o Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, e o Dicastério para o
Desenvolvimento Humano Integral.
***
Na verdade, sendo a Igreja o novo
Povo de Deus, há que ter em linha de conta que o maior volume de integrantes
deste novo povo é constituído pelos leigos, os quais estão, pelo Batismo,
habilitados para o exercício da tríplice ação da Igreja: a profecia, a santificação
e a caminhada solidária com os irmãos. Por isso, não podem ser assistentes
passivos do devir eclesial, nem apenas lugar de consulta: têm, sim, de
participar nas decisões relevantes. Para tanto, têm de fazer a sua parte,
cuidar da sua formação e capacitação em prol do Reino de Deus, que avança,
cresce e se difunde no serviço ao próximo, sem esperar recompensa. Aliás, o
Espírito sopra donde e onde quer.
2022.05.28 –
Louro de Carvalho
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