sábado, 28 de maio de 2022

Discutido a alto nível o papel da tomada de decisão dos leigos na Igreja

 

Enquanto a Igreja Católica continua mobilizada para a reflexão sobre a sinodalidade através de um processo de escuta e diálogo, um painel de seis teólogos e canonistas notáveis (alguns deles são cardeais), debateu a natureza da consulta e a tomada de decisões numa Igreja sinodal.

A discussão ocorreu a 20 de maio, no Palazzo Pio do Vaticano, no quadro da apresentação de um novo livro lançado pela editora vaticana sob o título Sinodalidade com ‘Responsabilidade Limitada’ ou de Consultiva a Deliberativa?, da autoria do cardeal Francesco Coccopalmerio, presidente aposentado do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, órgão que interpreta o Direito Canónico e elabora os projetos dos de atos legislativos que se afigurem necessários.  

Coccopalmerio propõe que a sinodalidade seja vista como a comunhão de sacerdotes e fiéis que se esforçam para procurar e discernir juntos o bem da Igreja, de modo que possam ser tomadas as decisões aptas a alcançar esse bem. Preconiza maior discussão sobre a participação dos fiéis leigos, quer processo consultivo na vida da Igreja, quer na fase de tomada de decisões.

Os conferencistas concordam que havia uma diferença entre o processo de tomada de decisão como um exercício conjunto de discernimento, consulta e cooperação, e a autoridade de tomada de decisão, que é da competência do bispo, nos termos do documento aprovado pelo Santo Padre e publicado pela Comissão Teológica Internacional, em 2018, sobre “Sinodalidade na Vida e Missão da Igreja”. Porém, o cardeal Mario Grech, secretário-geral do Sínodo dos Bispos, disse que a reflexão do cardeal Coccopalmerio “não repudia ou ameaça a autoridade”, seja do bispo, seja dos outros membros do clero, seja de qualquer líder da Igreja. Ao invés, pede-se que a autoridade esteja sempre envolvida no processo de expressar, sem falta, a própria opinião e que preste muita atenção para que haja um discernimento autêntico.

Assim, no processo progressivo de tomada de decisão, nunca se trata de ir contra a pessoa de autoridade, nem de suprir a sua ausência ou de a utilizar, mas de pensar e agir sempre juntamente com tal pessoa e com o seu consentimento, disse Grech, explicitando a reflexão do autor.

Este processo de “discernimento comunitário”, em que o clero e os fiéis “estão unidos na escuta comum do Espírito Santo”, não é fácil, disse o cardeal Grech, mas há exemplos análogos, como o de como o Colégio dos Bispos é chamado a exercer sempre a autoridade em conjunto e com o Papa. É, como vincou, um “processo espiritual” que não coloca clérigos e leigos uns contra os outros, mas induz cada pessoa a estar “com” os outros na Igreja com o desejo partilhado de ouvir, deliberar e determinar. É uma Igreja que não funciona como uma monarquia ou um parlamento, mas é uma igreja de leigos e clérigos, unidos na sua identidade batismal comum e que reúne os seus diferentes ministérios e carismas para discernir e planear, acentuou Grech.

Já Mons. Severino Dianich, teólogo e especialista em Eclesiologia, sustentou que é fundamental este género de reflexão. Em Itália e talvez noutras partes do mundo, como frisou, “há um notável sentimento de frustração que deve ser reconhecido” em como os conselhos estão realmente a funcionar, quer os diocesanos quer os paroquiais. Há uma sensação de que “caminhar juntos” significa uma jornada que acontece apenas pela metade, porque, chegada a hora de tomar uma decisão, pode parecer que o bispo ou o padre continua o resto dessa jornada sozinho.

É uma preocupação que teólogos e canonistas devem discutir, disse, especialmente ao abordarem objeções a um maior envolvimento dos leigos, tal como os temores de que isso se transforme “numa luta por posições de poder”. Vendo que é exatamente o oposto, Dianich sublinhou que todos os cristãos são “ricos em carismas”, que são diferentes para clérigos e para leigos, de modo que, quando “um padre decide sozinho, ele é de facto empobrecido”. Ora, o processo deliberativo da comunidade eclesial “nada mais é do que enriquecer o ministério hierárquico” com dons e carismas que podem servir a cada bispo ou sacerdote individualmente.

Adiantando que o Papa Bento XVI reconheceu isso num discurso de 2011 em que discutia a encíclica do Papa São João XXIII Mater et Magistra, o sacerdote citou o texto do Papa emérito, dizendo que os fiéis leigos “não podem ser apenas os seus fruidores e executores passivos, mas constituem os protagonistas da mesma, no momento vital da sua realização, bem como preciosos colaboradores dos Pastores na sua formulação, graças à experiência adquirida no campo e às próprias competências específicas”.

Uma razão pela qual há maior consciência e desejo de que a Igreja seja mais sinodal – disse Mons. Dianich – é a Igreja estar a redescobrir o seu “propósito original fundamental”, que é existir, não para si mesma, mas para evangelizar.

Assim, tornou-se evidente que os evangelizadores mais importantes – além do Papa, dos bispos e dos sacerdotes – são as pessoas “nas periferias e parte da vida quotidiana”. Os fiéis leigos são aqueles que “estão rodeados de pessoas” e encontram diária e diretamente aqueles que ainda não encontraram Jesus e que podem testemunhar imediatamente o Evangelho em ação.

Por fim, o cardeal Coccopalmerio disse que as suas propostas são muito rudimentares e devem ser discutidas para determinar a sua validade com a orientação do Espírito Santo. E, se as ideias não chegarem a lugar algum, “pelo menos terá existido a tentativa de aprender mais sobre a natureza da Igreja”.

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Já em 2016, o porta-voz dos cardeais que assessoram Francisco na reforma da burocracia central da Igreja – e que utilizaram a sua última reunião do ano para se focarem nos papéis dos dicastérios vaticanos que interagem com os governos estrangeiros, supervisionam a Igreja em territórios missionários e consideram quais padres são nomeados bispos e que trabalham com as Igrejas Orientais – salientou que o cardeal Kevin Farrell, do dicastério dedicado a leigos, família e a vida, enfatizou a importância do papel do laicado na Igreja e fez aos cardeais um “convite para relerem” a carta de abril que o Papa endereçou ao cardeal Marc Ouellet no seu papel de presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina. Nela, o Sumo Pontífice reafirmou o direito de os leigos tomarem decisões nas suas vidas, dizendo que os padres devem confiar que o Espírito Santo vem trabalhando neles e que o Espírito “não é só ‘propriedade’ da hierarquia eclesial”.

É importante considerar o contexto. E, a este respeito, é de referir que Greg Burke, diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, disse que o Conselho de Cardeais esteve particularmente focado nas funções da Secretaria de Estado, da Congregação para a Evangelização dos Povos, da Congregação para os Bispos e nas da Congregação para as Igrejas Orientais, mas que surgiriam, na reunião, dois grandes temas como linhas-mestras: o zelo missionário e a sinodalidade.

Por outro lado, segundo Burke, o Conselho dos Cardeais não falou da carta polémica de novembro emitida por quatro cardeais a desafiar a exortação apostólica Amoris laetitia do Papa Francisco sobre a família. Na verdade, como sublinhou o diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, “o Papa foi claro em que o Sínodo se pronunciou, que o Espírito se pronunciou”. Referia-se às assembleias sinodais de 2014 e 2015, que levaram o Sumo Pontífice a escrever o mencionado documento.

Burke revelou também que, durante os encontros, os cardeais receberam atualizações dos dois novos dicastérios vaticanos que Francisco criou a partir da sugestão do grupo: o Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, e o Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral.

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Na verdade, sendo a Igreja o novo Povo de Deus, há que ter em linha de conta que o maior volume de integrantes deste novo povo é constituído pelos leigos, os quais estão, pelo Batismo, habilitados para o exercício da tríplice ação da Igreja: a profecia, a santificação e a caminhada solidária com os irmãos. Por isso, não podem ser assistentes passivos do devir eclesial, nem apenas lugar de consulta: têm, sim, de participar nas decisões relevantes. Para tanto, têm de fazer a sua parte, cuidar da sua formação e capacitação em prol do Reino de Deus, que avança, cresce e se difunde no serviço ao próximo, sem esperar recompensa. Aliás, o Espírito sopra donde e onde quer.

2022.05.28 – Louro de Carvalho

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