sexta-feira, 3 de junho de 2016

Relatório sobre crianças e jovens que vão à escola sem sair de casa

Andreia Lobo comenta, a 1 de junho, no “Educare – portal da educação”, algumas das conclusões do recente relatório sobre crianças e jovens que “vão à escola” sem sair de casa, ou seja, de educandos que estão matriculados numa escola, mas cujas aulas decorrem em casa a cargo dos pais ou de preceptor ou preceptores a quem entregam este encargo. É o ensino individual e doméstico de que se vem falando cada vez com mais frequência, sendo que o número de crianças neta situação educacional vai crescendo no nosso país.
O relatório “Educar em casa: o que podemos aprender” é subscrito por Elena Cordero e Peter Birch e foi publicado, no quadro da Rede Eurydice, em 29 de abril deste ano de 2016.
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Antes de mais, é pertinente esclarecer o que é a Rede Eurydice ou, abreviadamente, Eurydice.
Trata-se duma rede europeia que colige e difunde informação comparativa sobre as políticas e os sistemas educativos europeus, em formato de estudos e análises comparadas sobre várias temáticas atinentes à educação e formação desde a educação de infância ao ensino superior. Foi criada em parceria entre a CE (Comissão Europeia) e os Estados-Membros da UE, em 1980, com o objetivo de trocar informação sobre os sistemas educativos nacionais. É financiada pelo Programa de Aprendizagem ao Longo da Vida e é constituída: pela UNIDADE EUROPEIA, sediada na Agência Executiva para a Educação, o Audiovisual e a Cultura e que coordena o trabalho desenvolvido e produz as publicações; e pelas 40 UNIDADES NACIONAIS, sediadas nos 40 países que participam no referido programa, integradas usualmente nos respetivos ME (Ministérios da Educação) e que, trabalhando em colaboração estreita com peritos na área da educação, recolhem informação a nível nacional, contribuem para a sua análise e validam a versão final dos estudos comparados – sendo ainda responsáveis pela tradução dos estudos nas línguas dos respetivos países.
A Eurydice interage com o Eurostat, o CEDEFOP (Centro Europeu para o Desenvolvimento da Formação Profissional), a ETF (Fundação Europeia para a Formação), a AEDNEE (Agência Europeia para o Desenvolvimento em Necessidades Educativas Especiais) e o CRELL (Centro de Investigação sobre Aprendizagem ao Longo da Vida). E apoia o trabalho colaborativo desenvolvido pela CE com organizações internacionais, tais como a OCDE, o Conselho da Europa e a UNESCO.
A Unidade Portuguesa da Eurydice está sediada na DGEEC (Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência) de acordo com o definido no Decreto-Regulamentar n.º 13/2012, de 20 de janeiro, que estabelece, na alínea q) do seu artigo 2.º, como atribuição da DGEEC: “Assegurar o desempenho das atividades da Unidade Portuguesa da Rede Eurydice”.
Face à variação significativa dos sistemas educativos europeus, a Eurydice constitui-se como uma fonte de informação única sobre a educação na Europa. Com efeito, torna-se essencial, na promoção da cooperação e da mobilidade a nível europeu e internacional, compreender a forma de organização e funcionamento dos sistemas educativos. Assim, esta rede europeia informativa tem como objetivo responder àquela necessidade disponibilizando um retrato exato da situação europeia a nível de educação, abrangendo todos os níveis de escolaridade. Tal inclui: A Eurypedia (Enciclopédia Europeia dos Sistemas Educativos Nacionais), com descrições atualizadas e facilmente comparáveis sobre a organização de 40 sistemas educativos europeus; estudos comparativos sobre matérias incluídas na agenda da cooperação europeia na área da educação; uma série de números-chave, que fornece indicadores sobre vários tópicos, como o uso das novas tecnologias na escola ou a aprendizagem de línguas; e outros factos e indicadores sobre a estrutura e as principais caraterísticas dos sistemas educativos, como calendários escolares e académicos, tempos letivos ao longo da escolaridade obrigatória, salários de professores e de diretores. A Rede Eurydice, visando facilitar a cooperação europeia na área da educação, tem por missão facultar aos responsáveis pelas políticas educativas a nível europeu, nacional e local informação e análises que sustentem a tomada de decisões. A Eurydice recolhe informação sobre leis, regulamentações e políticas nacionais, bem como estatísticas relevantes. Quando apropriado, as análises são complementadas com dados de estudos e dos principais inquéritos internacionais – o que possibilita a identificação de tendências e padrões comuns e assegura a base para uma reflexão pertinente sobre estratégias eficazes na educação. A Eurydice apoia o trabalho desenvolvido no âmbito da Estratégia Europa 2020 e contribui para o relatório do Processo de Bolonha no âmbito do ensino superior.
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Fixando-nos no relatório, começamos por verificar que são várias as razões que levam os pais a preferir que os filhos aprendam em casa. Por um lado, a convicção de que são os responsáveis pela educação dos filhos, pelo que decidem tomá-la a peito por si ou por gente da sua confiança; por outro, pretendem contornar a degradação educativa a que alegadamente terá chegado a escola pública e/ou o sistema negocial por que passa muito da escola privada – a que se adicionam motivos de segurança e de receio de desencaminhamento dos filhos.
A isto havia de responder-se, desde logo, que, mesmo confiando os filhos à escola pública ou à escola privada, os pais não deixam de ter a primeira responsabilidade e a última palavra sobre a educação dos filhos, participando na vida da escola (sobretudo pela permuta de informação e pela cooperação com a escola) exigindo aos poderes públicos que dotem o sistema público de educação – e que urjam o mesmo do privado – de rigorosos critérios de qualidade sustentável e reforcem os mecanismos de proteção e segurança dos alunos e obstem ao possível desencaminhamento com uma sólida formação cívica e ética. Por outro lado, os países que aderem ao Programa de Aprendizagem ao Longo da Vida devem questionar-se sobre como estão organizados e como funcionam os seus sistemas educativos para poderem introduzir os convenientes mecanismos de melhoria. Na verdade, o ensino individual e doméstico implica um atraso ou estabelece uma dificuldade significativa relativamente à socialização das crianças, obstando à formação atempada de cidadãos autónomos. Pode inclusivamente constituir manifestação de um certo egoísmo que se replica no ato educativo e dar a falsa ideia da autossuficiência da família.
Tal não significa a não validade desta modalidade de ensino, se devidamente concebida, estruturada e avaliada. No passado, algumas personalidades famosas, como Virginia Woolf, Agatha Christie, Thomas Edison e Pierre Curie, viram os seus pais fazer esta opção. As suas vidas, trabalho e realizações mundiais confirmam que “aprender em casa pode ser tão benéfico quanto a aprendizagem na escola”. 
No entanto, não precisamos de ser tão radicais como o pedagogo Ivan Illich, o paladino das pedagogias não diretivas e defensor da “autoaprendizagem”, que acreditava que “o direito de aprender é limitado pela obrigação de frequentar a escola”. Ora, segundo o que se deduz da leitura da Constituição, a liberdade de aprender e de ensinar (CRP, art.º 43.º/1) implica o direito de acesso à escola e o dever de a frequentar. Dificilmente uma família possui a capacidade de por si responder às exigências educativas hodiernas. Por isso, o Estado tem de criar “uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população” (CRP, art.º 75.º/1), garantir “o direito de criação de escolas particulares e cooperativas” (CRP, art.º 43.º/4) e reconhecer e fiscalizar “o ensino particular e cooperativo, nos temos da lei” (CRP, art.º 75.º/2).
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O relatório da Eurydice sobre o tema refere que é preciso saber mais sobre a experiência de educar em casa e que os Estados-Membros devem também questionar-se sobre os sistemas de ensino. Se um adulto europeu provavelmente passou muito tempo na escola, uma criança que tenha entre 1 e 3 anos passará ainda mais. Segundo a Comissão Europeia, quase todas as crianças de 4 anos frequentam a educação pré-escolar e os cuidados para a infância, em percentagens muito próximas dos 95% definidos nas metas europeias de 2020. 
Do início da escola para o seu fim, muitos países europeus têm vindo a aumentar, desde a década de 80, o número de anos de escolaridade obrigatória. Porém, enquanto as reformas educacionais empurram para a escolaridade mais cedo e por mais tempo, alguns fazem a escolha deliberada de educar os filhos em casa – alerta o Eurydice.  E pesquisas realizadas sobretudo nos EUA mostram que as crianças que hoje são educadas em casa têm desempenhos tão bons, senão melhores, que as que frequentam a escola. 
Embora falte uma recolha de dados consistentes, há evidências de que o fenómeno da educação em casa ou ensino doméstico está em aumento. Nos EUA, cerca de 1,8 milhões de crianças (3% da população em idade escolar) foram educadas em casa em 2012, quando em 2003 eram pouco mais de 1 milhão. No Reino Unido, houve um aumento de 65% (mais de 10 mil novas crianças em ensino doméstico) nos últimos 6 anos. Em Portugal, dados do ME apontavam em 2013 para a existência de 338 crianças e jovens a frequentar a modalidade de ensino doméstico e individual, sobretudo no 1.º e 2.º ciclos. Quatro anos antes eram apenas 82.
Os investigadores do Eurydice reúnem os principais argumentos que levam os pais a fazer esta opção, não muito diferentes dos acima indicados. Alguns tomam-na, porque acreditam que as escolas minam a criatividade e a liberdade dos filhos; outros alegam que as escolas não são suficientemente rigorosas, sobretudo no atinente à educação religiosa; e outros argumentam com o bullying como um dos motivos para defender o ensino doméstico. E, no caso das comunidades itinerantes, frequentar a escola pode simplesmente ser algo que não combina com o seu estilo de vida. Além disso, os subscritores do relatório lembram:
“Muitos defensores iniciais da educação em casa estavam preocupados com a tendência secular da educação pública, enquanto ativistas posteriores, como John Holt e ainda o mais radical Ivan Ilich, viam a educação em casa como a única solução viável para uma experiência mais natural, independente e gratificante com a aprendizagem”.
Cordero e Birch também sabem que as ações terroristas a que a Europa tem assistido “levaram a tensão entre a liberdade individual e as responsabilidades sociais para posições extremas”. 
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Em termos normativos, tanto as políticas públicas como a legislação que regula o ensino doméstico variam muito nos Estados-membros da União Europeia. Em alguns países, como Portugal ou o Reino Unido (ainda pertence à UE), os pais têm o direito inequívoco de optar por ensinar os filhos em casa; noutros, como a Alemanha, esta modalidade de educação é ilegal.
A legislação nesta área revela, segundo os investigadores, “uma tensão entre as liberdades pessoais e o bem comum”. Um grupo de cristãos reivindicava o direito de manter os filhos fora das escolas privadas ou estatais por razões religiosas. No entanto, a resposta do Tribunal Europeu de Direitos Humanos aprovou a visão de que os pais não têm o direito exclusivo de educar. Mais adiantou que a exposição a contradições e a pontos de vista plurais é do interesse das crianças. E reforçou a nota de que o Estado, na matéria, tem o interesse primordial em evitar o “surgimento de sociedades paralelas com base em convicções filosóficas separadas”.
Os opositores da educação em casa questionam a qualidade e o tipo de educação, defendendo que esta se torna dependente dos pontos de vista e das competências dos pais. E lembram que os meios socioeconómicos da família têm grande influência e que o ónus de educar os filhos cai provavelmente sobre as mulheres, criando uma arola à igualdade de género.
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Cordero e Birch sustentam que precisamos de saber muito mais sobre educação, já que “o debate sobre ensino em casa é muitas vezes ideológico, mas muito pouco se sabe sobre o seu impacto”. Reconhecem que “há uma surpreendente falta de dados sobre a percentagem, não negligenciável, de crianças que são educadas em casa”. Tal facto (ou não facto) impede a real compreensão sobre como funciona a educação doméstica e se oferece benefícios ou se configura uma ameaça social.
O ensino doméstico, segundo os investigadores, “poderia ser um modelo a considerar para uma série de situações práticas que as escolas não são capazes de resolver” – por exemplo, no caso de a criança ou o jovem não poder frequentar assiduamente a escola devido a problemas de saúde, distância ou mobilidade relacionada com o trabalho dos pais. 
Mais: uma melhor compreensão da educação em casa pode ajudar no desenvolvimento duma boa alternativa sistémica, se tivermos em conta o impacto potencial da tendência para a urbanização das sociedades – com mais de 80% da população a viver em cidades – que pode levar ao aumento da pressão financeira sobre o modelo de escola, sobretudo em zonas rurais.
Porém, “alguns decisores políticos podem sentir que a limitação do ensino doméstico poderá ajudar a criar sociedades mais coesas”, dizem os relatores, sustentando que “numa era de políticas baseadas em evidências” será necessária uma abordagem alternativa que permita “saber mais sobre a experiência de ensino em casa e questionar as nossas próprias suposições sobre os nossos sistemas de ensino”.
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Enfim, é preciso saber mais sobre a educação e sobre a educação em casa. E penso que a hipótese do ensino individual e doméstico deveria ser estudada com vista ao recurso a este quando a força das circunstâncias o impuser. Do meu ponto de vista, esta modalidade de ensino traz, em princípio, mais desvantagens que vantagens para o perfil de cidadão que se pretende formar. E, se os pais são os primeiros educadores (com toda a carga de deveres e súmula de direitos a exercer), não são os educadores exclusivos nem são os donos da educação e dos filhos.

2016.06.02 – Louro de Carvalho

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