Andreia Lobo comenta, a 1 de junho, no “Educare – portal da educação”, algumas das conclusões do recente relatório
sobre crianças e jovens que “vão à escola” sem sair de casa, ou seja, de educandos
que estão matriculados numa escola, mas cujas aulas decorrem em casa a cargo
dos pais ou de preceptor ou preceptores a quem entregam este encargo. É o
ensino individual e doméstico de que se vem falando cada vez com mais
frequência, sendo que o número de crianças neta situação educacional vai
crescendo no nosso país.
O
relatório “Educar em casa: o que podemos
aprender” é subscrito por Elena Cordero e Peter Birch e foi publicado, no
quadro da Rede Eurydice, em 29 de
abril deste ano de 2016.
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Antes de mais, é pertinente esclarecer o que é a Rede Eurydice ou, abreviadamente, Eurydice.
Trata-se duma
rede europeia que colige e difunde informação comparativa sobre as políticas e
os sistemas educativos europeus, em formato de estudos e análises comparadas
sobre várias temáticas atinentes à educação e formação desde a educação de
infância ao ensino superior. Foi criada em parceria entre a CE (Comissão
Europeia) e os Estados-Membros da UE, em
1980, com o objetivo de trocar informação sobre os sistemas educativos
nacionais. É financiada pelo Programa de
Aprendizagem ao Longo da Vida e é constituída: pela UNIDADE EUROPEIA, sediada
na Agência Executiva para a Educação, o
Audiovisual e a Cultura e que coordena o trabalho desenvolvido e produz as
publicações; e pelas 40 UNIDADES NACIONAIS, sediadas nos 40 países que
participam no referido programa, integradas usualmente nos respetivos ME (Ministérios
da Educação) e que, trabalhando
em colaboração estreita com peritos na área da educação, recolhem informação a
nível nacional, contribuem para a sua análise e validam a versão final dos
estudos comparados – sendo ainda responsáveis pela tradução dos estudos nas
línguas dos respetivos países.
A Eurydice interage com o Eurostat, o CEDEFOP
(Centro Europeu para o Desenvolvimento da Formação
Profissional), a ETF (Fundação
Europeia para a Formação), a AEDNEE
(Agência
Europeia para o Desenvolvimento em Necessidades Educativas Especiais) e o CRELL (Centro de Investigação sobre
Aprendizagem ao Longo da Vida). E apoia o
trabalho colaborativo desenvolvido pela CE com organizações internacionais,
tais como a OCDE, o Conselho da Europa e a UNESCO.
A Unidade
Portuguesa da Eurydice está sediada
na DGEEC (Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência) de acordo com o definido no Decreto-Regulamentar n.º
13/2012, de 20 de janeiro, que estabelece, na alínea q) do seu artigo 2.º, como
atribuição da DGEEC: “Assegurar o
desempenho das atividades da Unidade Portuguesa da Rede Eurydice”.
Face à
variação significativa dos sistemas educativos europeus, a Eurydice constitui-se como uma fonte de
informação única sobre a educação na Europa. Com efeito, torna-se essencial, na
promoção da cooperação e da mobilidade a nível europeu e internacional, compreender
a forma de organização e funcionamento dos sistemas educativos. Assim, esta
rede europeia informativa tem como objetivo responder àquela necessidade
disponibilizando um retrato exato da situação europeia a nível de educação,
abrangendo todos os níveis de escolaridade. Tal inclui: A Eurypedia (Enciclopédia Europeia dos Sistemas
Educativos Nacionais),
com descrições atualizadas e facilmente comparáveis sobre a organização de 40
sistemas educativos europeus; estudos comparativos sobre matérias incluídas na
agenda da cooperação europeia na área da educação; uma série de números-chave, que fornece indicadores
sobre vários tópicos, como o uso das novas tecnologias na escola ou a
aprendizagem de línguas; e outros factos
e indicadores sobre a estrutura e as principais caraterísticas dos sistemas
educativos, como calendários escolares e académicos, tempos letivos ao longo da
escolaridade obrigatória, salários de professores e de diretores. A Rede Eurydice, visando facilitar a
cooperação europeia na área da educação, tem por missão facultar aos
responsáveis pelas políticas educativas a nível europeu, nacional e local
informação e análises que sustentem a tomada de decisões. A Eurydice recolhe informação sobre leis,
regulamentações e políticas nacionais, bem como estatísticas relevantes. Quando
apropriado, as análises são complementadas com dados de estudos e dos principais
inquéritos internacionais – o que possibilita a identificação de tendências e
padrões comuns e assegura a base para uma reflexão pertinente sobre estratégias
eficazes na educação. A Eurydice
apoia o trabalho desenvolvido no âmbito da Estratégia
Europa 2020 e contribui para o relatório do Processo de Bolonha no âmbito do ensino superior.
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Fixando-nos no relatório, começamos
por verificar que são várias as razões que levam os pais a preferir que os
filhos aprendam em casa. Por um lado, a convicção de que são os responsáveis
pela educação dos filhos, pelo que decidem tomá-la a peito por si ou por gente
da sua confiança; por outro, pretendem contornar a degradação educativa a que
alegadamente terá chegado a escola pública e/ou o sistema negocial por que
passa muito da escola privada – a que se adicionam motivos de segurança e de
receio de desencaminhamento dos filhos.
A isto havia de responder-se, desde
logo, que, mesmo confiando os filhos à escola pública ou à escola privada, os
pais não deixam de ter a primeira responsabilidade e a última palavra sobre a
educação dos filhos, participando na vida da escola (sobretudo
pela permuta de informação e pela cooperação com a escola) exigindo aos poderes públicos que dotem o sistema
público de educação – e que urjam o mesmo do privado – de rigorosos critérios
de qualidade sustentável e reforcem os mecanismos de proteção e segurança dos
alunos e obstem ao possível desencaminhamento com uma sólida formação cívica e
ética. Por outro lado, os países que aderem ao Programa de Aprendizagem ao Longo da Vida devem questionar-se sobre
como estão organizados e como funcionam os seus sistemas educativos para poderem
introduzir os convenientes mecanismos de melhoria. Na verdade, o ensino
individual e doméstico implica um atraso ou estabelece uma dificuldade
significativa relativamente à socialização das crianças, obstando à formação
atempada de cidadãos autónomos. Pode inclusivamente constituir manifestação de
um certo egoísmo que se replica no ato educativo e dar a falsa ideia da
autossuficiência da família.
Tal não
significa a não validade desta modalidade de ensino, se devidamente concebida,
estruturada e avaliada. No passado, algumas personalidades famosas, como Virginia
Woolf, Agatha Christie, Thomas Edison e Pierre Curie, viram os seus pais fazer
esta opção. As suas vidas, trabalho e realizações mundiais confirmam que
“aprender em casa pode ser tão benéfico quanto a aprendizagem na escola”.
No entanto, não precisamos de ser
tão radicais como o pedagogo Ivan Illich, o paladino das pedagogias não
diretivas e defensor da “autoaprendizagem”, que acreditava que “o direito de
aprender é limitado pela obrigação de frequentar a escola”. Ora, segundo o que
se deduz da leitura da Constituição, a liberdade de aprender e de ensinar (CRP, art.º 43.º/1) implica o direito de acesso à escola e o dever de a
frequentar. Dificilmente uma família possui a capacidade de por si responder às
exigências educativas hodiernas. Por isso, o Estado tem de criar “uma rede de
estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população”
(CRP, art.º 75.º/1), garantir “o direito de criação de escolas particulares e cooperativas”
(CRP, art.º 43.º/4) e reconhecer e fiscalizar “o ensino particular e cooperativo,
nos temos da lei” (CRP, art.º 75.º/2).
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O relatório da Eurydice sobre o tema refere que é preciso saber mais sobre a
experiência de educar em casa e que os Estados-Membros devem também
questionar-se sobre os sistemas de ensino. Se um adulto europeu provavelmente
passou muito tempo na escola, uma criança que tenha entre 1 e 3 anos passará
ainda mais. Segundo a Comissão Europeia, quase todas as crianças de 4 anos
frequentam a educação pré-escolar e os cuidados para a infância, em
percentagens muito próximas dos 95% definidos nas metas europeias de 2020.
Do início da escola para o seu fim, muitos países europeus
têm vindo a aumentar, desde a década de 80, o número de anos de escolaridade
obrigatória. Porém, enquanto as reformas educacionais empurram para a
escolaridade mais cedo e por mais tempo, alguns fazem a escolha deliberada de
educar os filhos em casa – alerta o Eurydice. E pesquisas realizadas sobretudo nos
EUA mostram que as crianças que hoje são educadas em casa têm desempenhos tão
bons, senão melhores, que as que frequentam a escola.
Embora falte uma recolha de dados consistentes, há evidências
de que o fenómeno da educação em casa ou ensino doméstico está em aumento. Nos
EUA, cerca de 1,8 milhões de crianças (3% da
população em idade escolar) foram educadas em casa em 2012, quando em 2003 eram pouco
mais de 1 milhão. No Reino Unido, houve um aumento de 65% (mais de 10 mil novas crianças em ensino doméstico) nos últimos 6
anos. Em Portugal, dados do ME
apontavam em 2013 para a existência de 338 crianças e jovens a frequentar a
modalidade de ensino doméstico e individual, sobretudo no 1.º e 2.º ciclos. Quatro
anos antes eram apenas 82.
Os investigadores do Eurydice
reúnem os principais argumentos que levam os pais a fazer esta opção, não
muito diferentes dos acima indicados. Alguns tomam-na, porque acreditam que as
escolas minam a criatividade e a liberdade dos filhos; outros alegam que as
escolas não são suficientemente rigorosas, sobretudo no atinente à educação
religiosa; e outros argumentam com o
bullying como um dos motivos para
defender o ensino doméstico. E, no caso das comunidades itinerantes, frequentar
a escola pode simplesmente ser algo que não combina com o seu estilo de vida. Além disso, os subscritores do relatório
lembram:
“Muitos defensores iniciais da educação em casa estavam
preocupados com a tendência secular da educação pública, enquanto ativistas
posteriores, como John Holt e ainda o mais radical Ivan Ilich, viam a educação
em casa como a única solução viável para uma experiência mais natural,
independente e gratificante com a aprendizagem”.
Cordero e Birch também sabem que as ações terroristas a que a
Europa tem assistido “levaram a tensão entre a liberdade individual e as responsabilidades
sociais para posições extremas”.
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Em termos normativos, tanto as políticas públicas como a
legislação que regula o ensino doméstico variam muito nos Estados-membros da
União Europeia. Em alguns países,
como Portugal ou o Reino Unido (ainda
pertence à UE), os pais têm o direito inequívoco de optar por ensinar os
filhos em casa; noutros, como a Alemanha, esta modalidade de educação é ilegal.
A legislação nesta área revela, segundo os investigadores, “uma
tensão entre as liberdades pessoais e o bem comum”. Um grupo de cristãos
reivindicava o direito de manter os filhos fora das escolas privadas ou
estatais por razões religiosas. No
entanto, a resposta do Tribunal Europeu de Direitos Humanos aprovou a visão de
que os pais não têm o direito exclusivo de educar. Mais adiantou que a
exposição a contradições e a pontos de vista plurais é do interesse das
crianças. E reforçou a nota de que o Estado, na matéria, tem o interesse
primordial em evitar o “surgimento de sociedades paralelas com base em
convicções filosóficas separadas”.
Os opositores da educação em casa questionam a qualidade e o
tipo de educação, defendendo que esta se torna dependente dos pontos de vista e
das competências dos pais. E lembram que os meios socioeconómicos da família
têm grande influência e que o ónus de educar os filhos cai provavelmente sobre
as mulheres, criando uma arola à igualdade de género.
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Cordero e Birch sustentam que precisamos de saber muito mais
sobre educação, já que “o debate sobre ensino em casa é muitas vezes
ideológico, mas muito pouco se sabe sobre o seu impacto”. Reconhecem que “há
uma surpreendente falta de dados sobre a percentagem, não negligenciável, de
crianças que são educadas em casa”. Tal facto (ou
não facto) impede a real compreensão sobre como funciona a educação doméstica e
se oferece benefícios ou se configura uma ameaça social.
O ensino doméstico, segundo os investigadores, “poderia ser
um modelo a considerar para uma série de situações práticas que as escolas não
são capazes de resolver” – por exemplo, no caso de a criança ou o jovem não
poder frequentar assiduamente a escola devido a problemas de saúde, distância
ou mobilidade relacionada com o trabalho dos pais.
Mais: uma melhor
compreensão da educação em casa pode ajudar no desenvolvimento duma boa
alternativa sistémica, se tivermos em conta “o
impacto potencial da tendência para a urbanização das sociedades – com mais de
80% da população a viver em cidades – que pode levar ao aumento da pressão
financeira sobre o modelo de escola, sobretudo em zonas rurais.
Porém, “alguns decisores políticos podem sentir que a
limitação do ensino doméstico poderá ajudar a criar sociedades mais coesas”,
dizem os relatores, sustentando que “numa era de políticas baseadas em
evidências” será necessária uma abordagem alternativa que permita “saber mais
sobre a experiência de ensino em casa e questionar as nossas próprias
suposições sobre os nossos sistemas de ensino”.
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Enfim, é preciso saber mais sobre a educação e sobre a educação em casa.
E penso que a hipótese do ensino individual e doméstico deveria ser estudada
com vista ao recurso a este quando a força das circunstâncias o impuser. Do meu
ponto de vista, esta modalidade de ensino traz, em princípio, mais desvantagens
que vantagens para o perfil de cidadão que se pretende formar. E, se os pais
são os primeiros educadores (com
toda a carga de deveres e súmula de direitos a exercer),
não são os educadores exclusivos nem são os donos da educação e dos filhos.
2016.06.02 – Louro de Carvalho
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