sexta-feira, 10 de junho de 2016

O sacerdote precisa de tempo e reflexão para preparar a homilia – II

Já antes da Evangelii Gaudium (EG), a essencialidade da homilia e sua preparação foram objeto de abordagem em duas exortações apostólicas de Bento XVI: a Sacramentum Caritatis (SC), na sequência do Sínodo sobre a Eucaristia fonte e ápice da vida e da missão da Igreja ; e a Verbum Domini (VD), na sequência do Sínodo sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja.
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No atinente ao seu espírito e finalidade pastoral, deve dizer-se que “a homilia constitui uma atualização da mensagem da Sagrada Escritura, de modo que os fiéis sejam levados a descobrir a presença e a eficácia da Palavra de Deus no momento atual da sua vida” (VD n.º 59). E, como seu foco central homilia, “deve resultar claramente para os fiéis que aquilo que o pregador tem a peito é mostrar Cristo, que deve estar no centro de cada homilia” (VD n.º 59).
O n.º 11 da VD, ao falar da “Cristologia da Palavra”, cita a Encíclica Deus caritas est, frisando:
“No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”.
Como consequência desta centralidade de Cristo, deve-se evitar “atrair a atenção mais para o pregador do que para o coração da mensagem evangélica” (VD n.º 59). Não nos pregamos a nós mesmos – como diz São Paulo –, mas a Jesus Cristo, o Senhor (2Cor 4,5).
É a finalidade (a “causa final” é sempre prima in intentione) duma ação que determina a sua preparação e os meios a mobilizar. E, sendo função da homilia favorecer uma compreensão e eficácia mais ampla da Palavra de Deus na vida dos fiéis (cf SC n.º 46 e VD n.º 59), deve ter-se presente a sua índole “catequética e exortativa” (SC n. 46). A respeito da índole exortativa, a VD menciona a conveniência de, mesmo nas breves homilias diárias, se “oferecerem reflexões apropriadas […], para ajudar os fiéis a acolherem e tornarem fecunda a Palavra escutada” (n.º 59).
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Quanto à preparação da homilia, devem considerar-se a preparação geral, a preparação remota e a preparação próxima.
Em termos gerais, a preparação deve observar o ensinamento de Santo Agostinho (De doctrina christiana, L 4, C 12, n.º 27), nas pegadas de Cícero: o pregador transmitirá o alimento da Palavra de modo a instruir, agradar e convencer (ut doceat, ut delectet, ut flectat). As três dimensões são necessárias para conseguir a finalidade da pregação – fazer chegar a Palavra à vida. Assim:
- A Palavra chega à inteligência (docere), pois, se o povo do Antigo Testamento definhava por falta de conhecimento (cf Os 4,6), também há hoje um enorme défice de doutrina. Pregar sem a preocupação de oferecer doutrina de fé seria tentar construir sobre areia (cf Mt 7,26-27). É, pois, necessário refletir sobre o melhor modo de transmitir doutrina “kerigmaticamente” (como faziam os Padres da Igreja) e sistematicamente, ou seja, com solidez – evitando a homilia que divague, dê interpretações superficiais aos textos litúrgicos e que suscite o sentimento balofo. Na verdade, o sentimento sem doutrina é vento que passa, por mais inflamado que seja.
-  A Palavra chega ao coração (delectare). O coração, em sentido bíblico, é o centro escondido […], o lugar da decisão pessoal no mais profundo das nossas tendências psíquicas, o santuário do diálogo a sós com Deus (cf GS, n.º 16), o lugar da verdade […], o lugar do encontro (cf CIC – Catecismo da Igreja Católica, n.º 2536). É o lugar onde a Palavra vibra, alegra, delicia, “toca”…
- A Palavra chega à vontade (flectere ou movere) para dobrar a vontade acomodada, adormecida ou apegada ao mal, para que aja de acordo com a Palavra concretizando decisões e propósitos. Doutrina que não atinja o coração e a vontade é teoria árida ou divagação interessante. Coração sem doutrina é sentimentalismo passageiro, balofo, descambando para uma forma pós-moderna da “beatice”: oração sentida, emoções “místicas”, procura abusiva de manifestações milagrosas ou extraordinárias, muitas práticas espirituais ruidosas, etc. – mas sem aquisição de virtudes, sem purificação de defeitos, sem entrega ao próximo, contrariando o ditame evangélico: 
Se me amais, cumprireis os meus mandamentos […]. Aquele que não me ama, não guarda as minhas palavras (Jo 14,15.24). Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor (Jo 15,10).”.
A sabedoria sem eloquência (delectare) é pouco útil; a eloquência sem sabedoria (docere) é oca e nociva; e doutrina e eloquência que não dobrem ou movam a vontade (flecter,movere) podem entreter e divertir, mas são inúteis (cf De doctrina Christiana, L 2, C 5)
O trabalho de preparação postula três pré-requisitos: mentalidade profissional: no mínimo, devemos ter a mentalidade de um bom professor, que prepara as aulas primorosamente, sendo a falta de “profissionalismo” um sinal de preguiça, imaturidade ou autoconfiança vaidosa, além de ser demonstração de desrespeito pelo povo; espírito sobrenatural, pois, como diz S. Agostinho, o pregador “deve ser orante antes de ser orador” (sit orator antequam dictor) e, “no próprio momento em que vai falar ao povo […], deve rezar a Deus para que ponha na sua boca boas palavras” (De doctrina…, L 2, C 16 e L 2, C 31); e cuidado em não contristar o Espírito Santo, já que pregar a Palavra de Deus sem esforço nem oração é tentar o próprio Espírito Santo.
Ao mesmo tempo, há que ter em apreço, como fundamental,  o entusiasmo interior do pregador em relação aos temas que vai abordar e ao bem que deseja fazer ao povo, com a ajuda de Deus.
No  De Catechizandis rudibus (“A catequese dos principiantes”), Santo Agostinho mostra como responde ao diácono Deogratias, que escrevera a manifestar o seu desânimo e a pedir conselho, porque os seus ouvintes falavam em surdina e se distraíam enquanto ele falava. Ora, é a oração que deve preceder, acompanhar e seguir a pregação. E, simultaneamente, postula-se a vibração interior do pregador – a hilaritas – que o leva a falar com alegria, satisfação e convicção. Com isto, facilmente se cria a sintonia com os ouvintes e a sua benevolência:
“Com muito mais prazer somos ouvidos quando nós mesmos experimentamos prazer no trabalho de instrução: pois a nossa alegria faz com que a exposição se desenvolva com mais facilidade e seja cativante” (Cap. II, n.º 4).
Depois, um pregador empolgado pelo ministério da Palavra torna-se apto para pegar “no ar” qualquer ideia, frase, episódio, exemplo, que sinta de utilidade à pregação. E, sem o procurar (melhor, se toma notas e vai fazendo o seu ficheiro), leituras bíblicas, teológicas ou de espiritualidade, bem como leituras de obras literárias de referência, fazem pulular ideias que lhe servirão.
No respeitante à preparação remota, antes de mais, os pregadores devem ter familiaridade e contacto assíduo com o texto sagrado” (VD n. 59). Sem se esforçar por adquirir o saber sapiencial  – amoroso e orante – da Escritura (lectio divina), o pregador não é capaz de transmitir a Palavra de Deus com a luz e o calor do Espírito. Pode transmitir ideias e teorias boas, dar até uma boa aula de exegese e repetir textos ou pensamentos, mas não passa de gravador ou de papagaio. O psitacismo é inimigo da homilia. A lectio divina não é luxo, mas uma necessidade.  
A este respeito, a VD, no seu n. 87, expõe um sintético “roteiro” da lectio divina, que é de meditar e aplicar: lectio (que diz o texto bíblico em si); meditatio (que nos diz o texto bíblico); oratio (que dizemos ao Senhor em resposta à sua Palavra); contemplatio (assumir o olhar de Deus ao contemplar a realidade e descobrir qual é a conversão que o Senhor nos pede); e actio (chegar à ação, doar-se aos outros na caridade).
Bento XVI, no n.º 59 da VD, ao falar da homilia a partir das leituras proclamadas, interroga-se e sentencia: “Que me dizem a mim pessoalmente? Que devo dizer à comunidade…? O pregador deve  deixar-se interpelar primeiro pela Palavra de Deus que anuncia.”. Só observando os passos do itinerário da lectio divina, estaremos em condições de ser bons instrumentos do Espírito Santo. De facto, exegese bíblica sem fé e amor, sem a doutrina da fé e o calor da oração, é como que a sacrílega “dissecação de cadáver” ou a blasfema manipulação da Palavra – manipulação que pode ser ao serviço duma ideologia (filosófica, política, “teológica”, etc.), ao serviço duma exibição (vaidade de ser original ou provocante), ao serviço do comodismo (divagar, repetir sempre o mesmo disco) ou ao serviço de nada (“não dizer coisa com coisa”). É, pois, necessário assumirmos a responsabilidade de sermos pessoas de estudo contínuo, como o são os bons profissionais – estudo bem definido, sistemático, que leve a aprofundar, esclarecer e ordenar as ideias – selecionando livros bons e realmente úteis e evitando “folhear” ou recolher curiosidades. Talvez o pior inimigo da cultura teológica (como de outras culturas) seja hoje a facilidade de deslizamento cultural pela tona de múltiplos assuntos, sem coerência, fio condutor, que leva à frivolidade de espírito, não indo a fundo em nada. É a saturação da informação não digerida! Uma valiosa ajuda pode constituir a consulta do Catecismo da Igreja Católica e seu compêndio, como a leitura – de fio a pavio – dos diversos documentos do Magistério da Igreja, com a subsequente reflexão. 
Por outro lado, tendo em conta que a pregação almeja o bem, o proveito e o crescimento cristão do povo, não é lícito fazer do povo a “cobaia” dos nossas experimentações teológicas, das nossas teorias, das nossas ideias pessoais, o que enviesaria o rumo do bom pastor. Não se pode espoliar o povo do “esplendor, da segurança e do calor do sol da fé” (cf Escrivá Caminho, n.º 575).
Além disso, há de considerar-se que  “o exemplo é o melhor orador”. A este respeito, Bento XVI, no n.º 60 da VD, inclui a seguinte citação de São Jerónimo:
“Que as tuas ações não desmintam as tuas palavras, para que não aconteça que, quando tu pregares na igreja, alguém comente no seu íntimo: ‘Então porque é que tu não ages assim?’ […] No sacerdote de Cristo, devem estar de acordo a mente e a palavra” (Epistula 52,7).
A preparação próxima exige, antes de mais a definição do que se pretende transmitir ao povo, o que implica fazer duas escolhas, o tipo de homilia e o tema da homilia.
Quanto à primeira, pode ser baseada nos textos litúrgicos do dia, numa circunstância (festa, evento de particular relevo, etc.), ser uma homilia temática ou ainda uma homilia litúrgico-temática nos termos da Sacramentum caritatis:
“Considera-se que é oportuno oferecer prudentemente, a partir do lecionário trienal, homilias temáticas aos fiéis que tratem, ao longo do ano litúrgico, os grandes temas da fé cristã, haurindo de quanto está pormenorizadamente proposto pelo Magistério nos quatro ‘pilares’ do Catecismo da Igreja Católica e no recente Compêndio: a profissão de fé, a celebração do mistério cristão, a vida em Cristo, a oração cristã”.
Quanto à segunda escolha, deve considerar-se que a boa homilia deve ser breve (segundo a máxima latina: Esto brevis et placebis, sê breve e agradarás). Essa brevidade pode não permitir comentar todas as leituras ou outros textos litúrgicos do dia. Por isso, há que fazer escolhas: pode bastar um ou dois versículos do Evangelho ou da 1.ª e 2.ª leitura (aos domingos, a 1.ª leitura costuma estar em sintonia temática com o Evangelho). Torna-se conveniente ter em mente o povo concreto a quem se vai falar, colocar-se no lugar do auditório, como se ele estivesse à frente (lendo as suas dificuldades, necessidades espirituais, cultura religiosa, capacidade de entender…), para definir melhor o tipo e o tema de homilia que mais lhe convêm.
Definido o tema, é necessário “enriquecê-lo” e “ordená-lo”. Enriquece-se procurando algumas “fontes” (Bíblia comentada, livros, revistas materiais da Internet) que forneçam ideias, exemplos, citações breves e incisivas para a pregação,  de modo a contornar a preguiça ou o excesso de autoconfiança, que levam ao confuso improviso e ao vazio da exposição. A seguir, é preciso “ordenar” as ideias que a desenvolver, dando-lhes uma sequência lógica, sem divagações “laterais” que desviem do “tema” central, ideias passíveis de seguimento fácil, simples e inteligente.  Depois de uma boa homilia, qualquer fiel atento  deverá ser capaz de responder cabalmente a duas perguntas: “De que falou o pregador?” (a resposta genérica “do Evangelho” não é suficiente); e “Que conclusões pessoais seriam de tirar?” (ainda que não tenha tirado nenhuma, deve tê-las vislumbrado).
Sendo melhor para uma comunicação direta com o povo e cheia de calor humano a homilia não lida, há que ter em conta também a responsabilidade social para com aqueles que não estão presentes e que também podem ter acesso à mensagem, via comunicação social. Por isso, em muitos casos, a homilia deve ser escrita, por segurança e para não correr o risco de ser distorcida por terceiros. Porém, há que, nesta circunstância, investir ainda mais na maleabilidade discursiva e no domínio do papel, para que não fique diminuída a fluência e a capacidade de abrasar os corações. E, não se podendo colocar barreiras à ação do Espírito, que sopra onde quer (Jo 3,8) e nos pode conduzir para fora do esquema previamente preparado, temos de O invocar e de n’ Ele confiar, para que aceite, corrobore e secunde o nosso empenhamento.
É de recordar a importância que os oradores clássicos atribuíram ao exórdio ou modo de começar o discurso. Não havendo regras fixas, o exórdio pode ser variadíssimo: uma citação bíblica, um exemplo, uma pergunta… Pode mesmo omitir-se e começar o discurso ex abrupto. O importante é que se desperte a atenção do ouvinte e que este se sinta interpelado. E reveste-se, ainda, de grande utilidade prever a ideia ou frase com que se pretende terminar. Um epílogo com bom remate ajuda a boa impressão que deixa no auditório a homilia, bem como qualquer pregação. Não suceda que o pregador repita umas cinco ou mais vezes “e por último” ou “e para finalizar” ou “uma última ideia”. Como dizia um grande pregador e bispo, algumas vezes é muito difícil dar com a vida eterna. Fazendo alusão ao símbolo dos apóstolos, que termina com o credo “na vida eterna”, e ao símbolo niceno-constantinoplitano, que termina com o credo “na vida do mundo que há de vir”, testemunhava a dificuldade em fazer o certo epílogo da pregação, sobretudo se não foi preparada com o tempo devido. 
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Preparar as homilias com empenho e entusiasmo, elaborá-las com cuidado e mestria e proferi-las com ardor e clareza é algo que Deus pede e de que o povo precisa. Mas não olvidamos que nem o que planta é alguma coisa nem o que rega, mas só Deus que faz crescer (1 Cor 3,7). (Reler também EG 135-159).
Porém, o pregador estudioso e orante não poderá dispensar-se de improvisar, sempre que seja necessário, escudando-se na desculpa de que não teve tempo ou de que não contava.
Por outro lado, compreende-se o afã e a demora homilética de pastores que aproveitam o ensejo quando têm pela frente crentes que raramente comparecem nas ações eclesiais.  
2016.06.10 – Louro de Carvalho

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