Já antes da Evangelii Gaudium (EG), a
essencialidade da homilia e sua preparação foram objeto de abordagem em duas
exortações apostólicas de Bento XVI: a
Sacramentum Caritatis (SC), na sequência do Sínodo sobre a Eucaristia fonte e
ápice da vida e da missão da Igreja ; e a Verbum Domini (VD), na sequência do Sínodo sobre a Palavra
de Deus na vida e na missão da Igreja.
***
No atinente
ao seu espírito e finalidade pastoral, deve dizer-se que “a homilia
constitui uma atualização da mensagem da Sagrada Escritura, de modo que os
fiéis sejam levados a descobrir a presença e a eficácia da Palavra de Deus no momento atual da sua vida” (VD n.º 59). E, como seu foco central homilia, “deve resultar
claramente para os fiéis que aquilo que o pregador tem a peito é mostrar Cristo, que deve estar no centro
de cada homilia” (VD n.º 59).
O n.º 11 da
VD, ao falar da “Cristologia da Palavra”, cita a Encíclica Deus caritas est, frisando:
“No início
do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro
com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta
forma, o rumo decisivo”.
Como consequência
desta centralidade de Cristo, deve-se evitar “atrair a atenção mais para o
pregador do que para o coração da mensagem evangélica” (VD n.º 59). Não nos pregamos a nós mesmos –
como diz São Paulo –, mas a Jesus Cristo, o Senhor
(2Cor 4,5).
É a finalidade (a “causa
final” é sempre prima in intentione) duma ação que determina a sua preparação e os meios a mobilizar. E, sendo função da homilia favorecer
uma compreensão e eficácia mais ampla
da Palavra de Deus na vida dos fiéis (cf SC n.º 46
e VD n.º 59), deve ter-se presente a sua índole “catequética e exortativa” (SC n. 46). A respeito da índole exortativa, a VD menciona a
conveniência de, mesmo nas breves homilias diárias, se “oferecerem reflexões
apropriadas […], para ajudar os fiéis a acolherem e tornarem fecunda a Palavra
escutada” (n.º 59).
***
Quanto à preparação
da homilia, devem considerar-se a preparação geral, a preparação remota
e a preparação próxima.
Em termos gerais, a preparação deve observar
o ensinamento de Santo Agostinho (De doctrina christiana, L 4, C 12,
n.º 27), nas pegadas
de Cícero: o pregador transmitirá o alimento da Palavra de modo a instruir,
agradar e convencer (ut doceat, ut delectet, ut flectat). As três dimensões são
necessárias para conseguir a finalidade da pregação – fazer chegar a Palavra à
vida. Assim:
- A Palavra
chega à inteligência (docere), pois, se o povo do Antigo Testamento definhava por
falta de conhecimento (cf Os 4,6), também há
hoje um enorme défice de doutrina. Pregar sem a preocupação de oferecer doutrina
de fé seria tentar construir sobre areia (cf Mt 7,26-27). É, pois, necessário refletir sobre o melhor modo de
transmitir doutrina “kerigmaticamente” (como faziam os Padres da Igreja) e sistematicamente, ou seja, com solidez – evitando
a homilia que divague, dê interpretações superficiais aos textos litúrgicos e que
suscite o sentimento balofo. Na verdade, o sentimento sem doutrina é vento que
passa, por mais inflamado que seja.
- A
Palavra chega ao coração (delectare). O coração, em sentido bíblico, é o centro escondido
[…], o lugar da decisão pessoal no mais profundo das nossas tendências
psíquicas, o santuário do diálogo a sós com Deus (cf GS, n.º
16), o lugar da verdade […], o lugar
do encontro (cf CIC – Catecismo da Igreja Católica, n.º 2536). É o lugar onde a Palavra vibra, alegra, delicia,
“toca”…
- A Palavra
chega à vontade (flectere ou movere) para dobrar a vontade acomodada, adormecida ou apegada
ao mal, para que aja de acordo com a Palavra concretizando decisões e
propósitos. Doutrina que não atinja o coração e a vontade é teoria árida ou
divagação interessante. Coração sem doutrina é sentimentalismo passageiro,
balofo, descambando para uma forma pós-moderna da “beatice”: oração sentida,
emoções “místicas”, procura abusiva de manifestações milagrosas ou
extraordinárias, muitas práticas espirituais ruidosas, etc. – mas sem aquisição
de virtudes, sem purificação de defeitos, sem entrega ao próximo, contrariando
o ditame evangélico:
“Se me amais, cumprireis os meus mandamentos […]. Aquele que não me ama, não guarda as minhas palavras (Jo
14,15.24). Se guardardes os meus mandamentos,
permanecereis no meu amor (Jo 15,10).”.
A sabedoria
sem eloquência (delectare) é pouco
útil; a eloquência sem sabedoria (docere) é oca e nociva; e doutrina e eloquência que não dobrem ou movam a vontade
(flecter,movere) podem entreter e divertir, mas são inúteis (cf De doctrina Christiana, L 2, C 5)
O trabalho de preparação postula três
pré-requisitos: mentalidade profissional:
no mínimo, devemos ter a mentalidade de um bom professor, que prepara as aulas
primorosamente, sendo a falta de “profissionalismo” um sinal de preguiça,
imaturidade ou autoconfiança vaidosa, além de ser demonstração de desrespeito
pelo povo; espírito sobrenatural,
pois, como diz S. Agostinho, o pregador “deve ser orante antes de ser orador” (sit orator antequam dictor) e, “no próprio momento em que vai falar ao povo […],
deve rezar a Deus para que ponha na sua boca boas palavras” (De
doctrina…, L 2, C 16 e L 2, C 31); e cuidado em não contristar o Espírito Santo, já que pregar a Palavra de
Deus sem esforço nem oração é tentar o próprio Espírito Santo.
Ao mesmo
tempo, há que ter em apreço, como fundamental, o entusiasmo interior do pregador em relação aos temas que vai abordar e ao bem que deseja fazer ao
povo, com a ajuda de Deus.
No De Catechizandis rudibus (“A catequese
dos principiantes”), Santo
Agostinho mostra como responde ao diácono Deogratias, que escrevera a
manifestar o seu desânimo e a pedir conselho, porque os seus ouvintes falavam
em surdina e se distraíam enquanto ele falava. Ora, é a oração que deve
preceder, acompanhar e seguir a pregação. E, simultaneamente, postula-se a vibração
interior do pregador – a hilaritas – que o
leva a falar com alegria, satisfação e convicção. Com isto, facilmente se cria
a sintonia com os ouvintes e a sua benevolência:
“Com muito mais
prazer somos ouvidos quando nós mesmos experimentamos prazer no trabalho de
instrução: pois a nossa alegria faz com que a exposição se desenvolva com mais
facilidade e seja cativante” (Cap. II, n.º 4).
Depois, um
pregador empolgado pelo ministério da Palavra torna-se apto para pegar “no ar”
qualquer ideia, frase, episódio, exemplo, que sinta de utilidade à pregação. E,
sem o procurar (melhor, se toma notas e vai fazendo
o seu ficheiro), leituras
bíblicas, teológicas ou de espiritualidade, bem como leituras de obras
literárias de referência, fazem pulular ideias que lhe servirão.
No respeitante à preparação remota, antes de mais, os pregadores devem ter familiaridade e contacto assíduo com o texto sagrado”
(VD n. 59). Sem se esforçar por adquirir o saber sapiencial –
amoroso e orante – da Escritura (lectio divina), o pregador não é capaz de transmitir a Palavra de
Deus com a luz e o calor do Espírito. Pode transmitir ideias e teorias boas,
dar até uma boa aula de exegese e repetir textos ou pensamentos, mas não passa
de gravador ou de papagaio. O psitacismo é inimigo da homilia. A lectio divina não é luxo, mas uma necessidade.
A este
respeito, a VD, no seu n. 87, expõe um sintético “roteiro” da lectio divina, que
é de meditar e aplicar: lectio (que diz o
texto bíblico em si); meditatio (que nos diz o texto bíblico); oratio (que
dizemos ao Senhor
em resposta à sua Palavra); contemplatio (assumir o olhar de Deus ao
contemplar a realidade e descobrir qual é a conversão que o Senhor nos pede); e actio (chegar
à ação, doar-se aos
outros na caridade).
Bento XVI,
no n.º 59 da VD, ao falar da homilia a partir das
leituras proclamadas, interroga-se e sentencia: “Que me dizem a mim pessoalmente? Que devo dizer à comunidade…? O
pregador deve deixar-se interpelar primeiro pela Palavra de Deus que
anuncia.”. Só observando os passos do itinerário da lectio divina, estaremos em condições de ser bons instrumentos do
Espírito Santo. De facto, exegese bíblica sem fé e amor, sem a doutrina da fé e
o calor da oração, é como que a sacrílega “dissecação de cadáver” ou a blasfema manipulação da Palavra – manipulação que pode ser ao
serviço duma ideologia (filosófica, política, “teológica”, etc.), ao serviço duma exibição (vaidade de
ser original ou provocante), ao
serviço do comodismo (divagar, repetir sempre o mesmo disco) ou ao serviço de nada (“não dizer coisa com coisa”). É, pois, necessário assumirmos a responsabilidade
de sermos pessoas de estudo contínuo, como o são os bons profissionais – estudo bem definido, sistemático,
que leve a aprofundar, esclarecer e ordenar as ideias – selecionando livros
bons e realmente úteis e evitando “folhear” ou recolher curiosidades. Talvez o
pior inimigo da cultura teológica (como de outras culturas) seja hoje a facilidade de deslizamento cultural pela
tona de múltiplos assuntos, sem coerência, fio condutor, que leva à frivolidade
de espírito, não indo a fundo em nada. É a saturação da informação não
digerida! Uma valiosa ajuda pode constituir a consulta do Catecismo da Igreja
Católica e seu compêndio, como a leitura – de fio a pavio – dos diversos
documentos do Magistério da Igreja, com a subsequente reflexão.
Por outro
lado, tendo em conta que a pregação almeja o bem, o proveito e o crescimento
cristão do povo, não é lícito fazer do povo a “cobaia” dos nossas
experimentações teológicas, das nossas teorias, das nossas ideias pessoais, o
que enviesaria o rumo do bom pastor. Não se pode espoliar o povo do “esplendor,
da segurança e do calor do sol da fé” (cf Escrivá Caminho, n.º 575).
Além disso,
há de considerar-se que “o exemplo é o melhor orador”. A este respeito,
Bento XVI, no n.º 60 da VD, inclui a seguinte citação de São Jerónimo:
“Que as tuas
ações não desmintam as tuas palavras, para que não aconteça que, quando tu
pregares na igreja, alguém comente no seu íntimo: ‘Então porque é que tu não
ages assim?’ […] No sacerdote de Cristo, devem estar de acordo a mente e a
palavra” (Epistula 52,7).
A preparação próxima exige, antes de mais a definição
do que se pretende transmitir ao povo, o que implica fazer duas escolhas, o tipo de homilia e o
tema da homilia.
Quanto à
primeira, pode ser baseada nos textos litúrgicos do dia,
numa circunstância (festa, evento de particular relevo,
etc.), ser uma homilia temática ou ainda uma homilia litúrgico-temática nos
termos da Sacramentum caritatis:
“Considera-se
que é oportuno oferecer prudentemente, a partir do lecionário trienal, homilias
temáticas aos fiéis que tratem, ao longo do ano litúrgico, os grandes temas da
fé cristã, haurindo de quanto está pormenorizadamente proposto pelo Magistério nos
quatro ‘pilares’ do Catecismo da Igreja Católica e
no recente Compêndio: a profissão de fé, a
celebração do mistério cristão, a vida em Cristo, a oração cristã”.
Quanto à
segunda escolha, deve considerar-se que a boa homilia deve ser breve (segundo a
máxima latina: Esto brevis et placebis,
sê breve e agradarás). Essa
brevidade pode não permitir comentar todas as leituras ou outros textos
litúrgicos do dia. Por isso, há que fazer escolhas: pode bastar um ou dois
versículos do Evangelho ou da 1.ª e 2.ª leitura (aos domingos, a 1.ª leitura costuma
estar em sintonia temática com o Evangelho). Torna-se
conveniente ter em mente o povo concreto a quem se vai falar, colocar-se no
lugar do auditório, como se ele estivesse à frente (lendo as suas
dificuldades, necessidades espirituais, cultura religiosa, capacidade de
entender…), para definir melhor o tipo e o tema de homilia que mais
lhe convêm.
Definido o
tema, é necessário “enriquecê-lo” e “ordená-lo”. Enriquece-se procurando algumas “fontes” (Bíblia
comentada, livros, revistas materiais da Internet) que forneçam ideias, exemplos, citações breves e incisivas para a
pregação, de modo a contornar a preguiça ou o excesso de autoconfiança,
que levam ao confuso improviso e ao vazio da exposição. A seguir, é preciso
“ordenar” as ideias que a desenvolver, dando-lhes uma sequência lógica, sem
divagações “laterais” que desviem do “tema” central, ideias passíveis de
seguimento fácil, simples e inteligente. Depois de uma boa homilia,
qualquer fiel atento deverá ser capaz de responder cabalmente a duas perguntas: “De
que falou o pregador?” (a resposta genérica “do Evangelho” não é suficiente); e “Que conclusões
pessoais seriam de tirar?” (ainda que não tenha tirado nenhuma, deve tê-las
vislumbrado).
Sendo melhor
para uma comunicação direta com o povo e cheia de calor humano a homilia não
lida, há que ter em conta também a responsabilidade social para com aqueles que
não estão presentes e que também podem ter acesso à mensagem, via comunicação
social. Por isso, em muitos casos, a homilia deve ser escrita, por segurança e
para não correr o risco de ser distorcida por terceiros. Porém, há que, nesta
circunstância, investir ainda mais na maleabilidade discursiva e no domínio do
papel, para que não fique diminuída a fluência e a capacidade de abrasar os
corações. E, não se podendo colocar barreiras à ação do Espírito, que sopra onde quer (Jo 3,8) e nos pode conduzir para fora do esquema previamente preparado, temos de
O invocar e de n’ Ele confiar, para que aceite, corrobore e secunde o nosso
empenhamento.
É de
recordar a importância que os oradores clássicos atribuíram ao exórdio ou modo de começar o discurso. Não havendo regras
fixas, o exórdio pode ser variadíssimo: uma citação bíblica, um exemplo, uma
pergunta… Pode mesmo omitir-se e começar o discurso ex abrupto. O importante é que se desperte a atenção do
ouvinte e que este se sinta interpelado. E reveste-se, ainda, de grande
utilidade prever a ideia ou frase com que se pretende terminar. Um epílogo com
bom remate ajuda a boa impressão que deixa no auditório a homilia, bem como qualquer
pregação. Não suceda que o pregador repita umas cinco ou mais vezes “e por último” ou “e para finalizar” ou “uma
última ideia”. Como dizia um grande pregador e bispo, algumas vezes é muito
difícil dar com a vida eterna. Fazendo alusão ao símbolo dos apóstolos, que
termina com o credo “na vida eterna”, e ao símbolo niceno-constantinoplitano,
que termina com o credo “na vida do mundo que há de vir”, testemunhava a
dificuldade em fazer o certo epílogo da pregação, sobretudo se não foi
preparada com o tempo devido.
***
Preparar as
homilias com empenho e entusiasmo, elaborá-las com cuidado e mestria e
proferi-las com ardor e clareza é algo que Deus pede e de que o povo precisa. Mas
não olvidamos que nem o que planta é alguma coisa nem o que
rega, mas só Deus que faz crescer (1 Cor 3,7). (Reler também EG 135-159).
Porém, o
pregador estudioso e orante não poderá dispensar-se de improvisar, sempre que
seja necessário, escudando-se na desculpa de que não teve tempo ou de que não
contava.
Por outro
lado, compreende-se o afã e a demora homilética de pastores que aproveitam o
ensejo quando têm pela frente crentes que raramente comparecem nas ações
eclesiais.
2016.06.10 – Louro de Carvalho
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