quarta-feira, 15 de junho de 2016

Sobre a carta “Iuvenescit Ecclesia”

Foi apresentada publicamente, a 14 de junho, a carta da CDF (Congregação para a Doutrina da Fé) intitulada “Iuvenescit Ecclesia” (IE) e dirigida aos bispos da Igreja Católica sobre a relação entre os dons, hierárquicos e carismáticos, para a vida e missão da Igreja. O texto é datado de 15 de maio, solenidade do Pentecostes, mas o seu teor mereceu a aprovação do Papa a 14 de março.
É um documento notável a salientar fundamentadamente a dimensão carismática, que não pode faltar na Igreja e a relacioná-la com a dimensão institucional. Todavia, é conveniente prestar atenção cuidadosa ao seu conteúdo, para que não se pense, por via duma leitura apressada:
- Que os movimentos apostólicos, as agregações de fiéis, os institutos de vida consagrada ou as comunidades eclesiais de base e as de escol sejam uma simples floração (dispensável ou passível de ser ignorada ou olvidada) face à essencialidade da estrutura hierárquica da Igreja (leigos, diáconos, presbíteros e bispos);
- Que tais realidades eclesiais é que são a Igreja da caridade, em contraponto à institucional;
- Que estas resultam da liberdade do Espírito, que sopra donde e para onde quer, esquecendo que a instituição e o povo de Deus hierarquicamente organizado também são obra do Espírito;
- Que estas não tenham de estar em total comunhão com a Igreja institucional, com ela se entrosando na construção da comunhão com Deus e na comunhão das pessoas entre si.   
Por outro lado (e a IE acautela-o), não é lícito a nenhum destes afloramentos eclesiais com existência coessencial à da Igreja institucional arvorarem-se (autorreferenciarem-se) em únicos ou os melhores promotores da evangelização, da santificação ou da prestação da caridade.
***
Evidentemente que a dimensão carismática nunca pode faltar na vida e na missão da Igreja e os dons – hierárquicos e carismáticos – são “coessenciais” à vida da Igreja – coessencialidade que a carta tem presente ao acentuar a relação entre eles. É verdade que os dons hierárquicos são conferidos com e pelo sacramento da Ordem (episcopal, presbiteral, diaconal), enquanto os carismáticos são distribuídos livremente pelo Espírito Santo. Todavia, insisto, os dons hierárquicos também resultam da liberdade do Espírito. Paulo no capítulo 12 da 1.ª epístola aos Coríntios fala na diversidade de dons, de ministérios e de operações. Porém, acentua que à diversidade preside o mesmo Espírito, que gera a unidade. E obviamente, se o carisma é dom concedido a uma pessoa para bem da comunidade, também o ministério o é. Paulo aduz para o seu discurso a metáfora do corpo: um só corpo com muitos membros (cf 1Cor 12,31).
O percurso discursivo da IE (Iuvenescit Ecclesia)
A IE apresenta elementos-chave, tanto da doutrina sobre os carismas, à luz do Novo Testamento, como da reflexão magisterial sobre tais realidades. Depois, a partir de princípios de ordem teológico-sistemática, dá elementos de identidade dos dons hierárquicos e carismáticos, a par de critérios para discernimento dos novos grupos eclesiais. Pode, a IE sintetizar-se assim:
- O carisma de acordo com o Novo Testamento, abordando itens, como: graça e carisma; dons outorgados “ad utilitatem” e o primado da caridade; a variedade dos carismas; o bom exercício dos carismas na comunidade eclesial; e dons hierárquicos e carismáticos.
- A relação entre dons hierárquicos e carismáticos no Magistério recente: o Concílio Vaticano II, nomeadamente as constituições Lumen Gentium e Dei Verbum e os decretos Apostolicam Actuositatem e Presbyterorum Ordinis; o Magistério pós-conciliar, sobretudo as exortações apostólicas Evangelii Nuntiandi, de Paulo VI, Christi Fideles Laici, de João Paulo II, Sacramentum Caritatis, de Bento XVI e Evangelii Gaudium, de Francisco, bem como a carta-encíclica Dominum et Vivificantem, de São João Paulo II.
- Base teológica da relação entre dons hierárquicos e carismáticos, com especial atenção para: o horizonte trinitário e cristológico dos dons do Espírito Santo; a ação do Espírito Santo nos dons hierárquicos e carismáticos.
- A relação entre dons hierárquicos e carismáticos na vida e missão da Igreja, abordando: a Igreja como mistério de comunhão; a identidade dos dons hierárquicos; a identidade dos dons carismáticos; os dons carismáticos compartilhados; o reconhecimento por parte da autoridade eclesiástica; e os critérios para o discernimento dos dons carismáticos.
- Prática eclesial da relação entre dons hierárquicos e dons carismáticos, destacando: a recíproca referência; os dons carismáticos na Igreja universal e particular; os dons carismáticos e os estados de vida do cristão; e formas de reconhecimento dos carismas.
- Por fim, vem a conclusão: Lembrando que a Mãe de Jesus acompanhava os apóstolos aquando da efusão pentecostal do Espírito Santo, a CDF convida a olhar para Maria, “Mãe da Igreja”, modelo de “docilidade plena à ação do Espírito Santo” e de “límpida humildade”: e, confiando na sua intercessão, faz votos para que os carismas abundantemente distribuídos pelo Espírito Santo entre os fiéis sejam por estes acolhidos com docilidade e produzam fruto para a vida e a missão da Igreja e bem do mundo.
***
Destacam-se agora alguns pontos considerados mais pertinentes da IE.
Em especial, a Iuvenescit Ecclesia detém-se em questões teológicas, e não tanto pastorais ou práticas, que derivam da relação entre a instituição eclesial e as novas agregações e novos movimentos, insistindo na harmónica conexão e complementaridade dos dois tipos de dons. “Dons de importância irrenunciável para a vida e missão eclesial”, os carismas autênticos devem ter “abertura missionária”, “necessária obediência aos Pastores” e “imanência eclesial”.
Para a “participação fecunda e ordenada” dos carismas na comunhão da Igreja, não se devem eles subtrair à “obediência à hierarquia eclesial” nem têm “o direito a um ministério autónomo”.
Entretanto, uma indesejada, embora eventualmente tentadora “contraposição ou a justaposição” dos carismas com os dons hierárquicos seria um erro. Na verdade, não se deve opor uma Igreja “da instituição” à pretensa Igreja “da caridade”, porque na Igreja “as instituições essenciais são carismáticas” e os “carismas devem-se ‘institucionalizar’ para terem coerência e continuidade”, visibilidade e eficácia. Assim, as duas dimensões – institucional e carismática – concorrem conjunta e harmoniosamente para presentificar o mistério de Cristo e a sua obra salvífica no mundo.
A carta assegura que a dimensão carismática nunca faltará à Igreja e porfia que as novas realidades alcancem uma “maturidade eclesial” que comporta a sua plena valorização e inserção na vida da Igreja, sempre em comunhão com os Pastores e atenta às suas indicações. A existência de novas realidades eclesiais, de facto, enche o coração da Igreja de “alegria e gratidão”, mas igualmente as chama a “relacionarem-se positivamente com todos os outros dons presentes na vida eclesial”, para que sejam “promovidos com generosidade e acompanhados com vigilante paternidade” pelos Pastores, “de modo que tudo concorra para o bem da Igreja e para a sua missão evangelizadora”.
Como reconhecer um dom carismático autêntico?
A carta evoca o discernimento, tarefa “de pertinência da autoridade eclesiástica”, segundo critérios específicos para discernir se uma agregação eclesial goza de carisma autêntico:
“Ser instrumento de santidade na Igreja; empenhar-se na difusão missionária do Evangelho; confessar plenamente a fé católica; testemunhar uma comunhão real com toda a Igreja, acolhendo com leal disponibilidade os seus ensinamentos doutrinais e pastorais; reconhecer e estimar os outros componentes carismáticos na Igreja; aceitar com humildade os momentos de provação no discernimento; ter frutos espirituais, como caridade, alegria, paz, humanidade; olhar para a dimensão social da evangelização, consciente do facto de que “a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados não pode faltar numa autêntica realidade eclesial”.

Além disso, a IE indica mais dois critérios fundamentais a ter em conta para o reconhecimento jurídico das novas realidades eclesiais, segundo as normas do CIC (Código de Direito Canónico) (can. 294-297; 302; 321-326; 531-746): o primeiro é “o respeito pela peculiaridade carismática de cada agregação eclesial”, evitando “formas jurídicas forçadas” que “anulem a novidade”; o outro critério tem a ver com o “respeito do regime eclesial fundamental”, favorecendo “a inserção real dos dons carismáticos na vida da Igreja”, mas evitando que estes sejam concebidos como uma realidade paralela, sem a referência ordenada aos dons hierárquicos. Além disso, o documento evidencia que a relação entre dons hierárquicos e carismáticos deve levar em consideração a “imprescindível e constitutiva relação entre Igreja universal e Igrejas particulares” – o que significa que os carismas são oferecidos a toda a Igreja, mas a sua dinâmica “não se pode realizar sem estar ao serviço duma diocese concreta”.
Mais: estes dons representam também “uma autêntica possibilidade” para viver e desenvolver a vocação cristã de cada um, seja no matrimónio, seja no celibato sacerdotal ou no ministério ordenado. Neste âmbito, também a vida consagrada “se insere na dimensão carismática da Igreja”, para que a sua espiritualidade possa tornar-se “um recurso significativo” quer para o fiel leigo, quer para o presbítero, ajudando-os a viver a sua vocação específica.
E, falando recorrentemente a IE em novas realidades eclesiais, é de a ligar ao rescrito em que o Papa (segundo informação da assessoria de imprensa do Vaticano, de 20 de maio, a conselho do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos) especificou um cânon do CIC (can. 589), estabelecendo que, a partir de 1 de junho, a ereção dum instituto diocesano de vida consagrada carece de prévia consulta da Santa Sé, sob pena de nulidade. Isto porque a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica está consciente de que um novo instituto destes, mesmo nascido e desenvolvido numa Igreja particular, é dom a toda a Igreja. Portanto, vendo a necessidade de evitar a ereção, a nível diocesano, de novos Institutos sem o suficiente discernimento que verifique a originalidade do carisma, defina as caraterísticas específicas que nele terá a consagração mediante a profissão dos conselhos evangélicos e especifique as possibilidades reais de desenvolvimento.
***
Oxalá, não se insista em criar mais prelaturas pessoais com base em movimentos resultantes da efusão pentecostal, não se peçam isenções da autoridade dos bispos nem se refugiem no fácil acolhimento dos bispos os dissidentes das comunidades religiosas e missionárias. Estabeleçam-se, sim, pontes de diálogo e de cooperação pelo bem da Igreja e salvação dos homens.

2016.06.15 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário