Foi
apresentada publicamente, a 14 de junho, a carta da CDF (Congregação para a Doutrina da Fé) intitulada “Iuvenescit Ecclesia” (IE) e
dirigida aos bispos da Igreja Católica sobre a relação entre os dons,
hierárquicos e carismáticos, para a vida e missão da Igreja. O texto é datado
de 15 de maio, solenidade do Pentecostes, mas o seu teor mereceu a aprovação do
Papa a 14 de março.
É um
documento notável a salientar fundamentadamente a dimensão carismática, que não pode faltar na Igreja e a
relacioná-la com a dimensão institucional. Todavia, é conveniente prestar
atenção cuidadosa ao seu conteúdo, para que não se pense, por via duma leitura
apressada:
- Que os
movimentos apostólicos, as agregações de fiéis, os institutos de vida
consagrada ou as comunidades eclesiais de base e as de escol sejam uma simples
floração (dispensável ou
passível de ser ignorada ou olvidada) face à essencialidade da estrutura hierárquica da Igreja (leigos, diáconos, presbíteros e
bispos);
- Que tais
realidades eclesiais é que são a Igreja da caridade, em contraponto à
institucional;
- Que estas
resultam da liberdade do Espírito, que sopra donde e para onde quer, esquecendo
que a instituição e o povo de Deus hierarquicamente organizado também são obra
do Espírito;
- Que estas
não tenham de estar em total comunhão com a Igreja institucional, com ela se
entrosando na construção da comunhão com Deus e na comunhão das pessoas entre
si.
Por outro
lado (e a IE acautela-o), não é lícito a nenhum destes
afloramentos eclesiais com existência coessencial à da Igreja institucional
arvorarem-se (autorreferenciarem-se) em únicos ou os melhores promotores
da evangelização, da santificação ou da prestação da caridade.
***
Evidentemente
que a dimensão carismática nunca pode faltar na vida e na missão da Igreja e os
dons – hierárquicos e carismáticos – são “coessenciais” à vida da Igreja –
coessencialidade que a carta tem presente ao acentuar a relação entre eles. É
verdade que os dons hierárquicos são conferidos com e pelo sacramento da Ordem
(episcopal, presbiteral,
diaconal), enquanto os
carismáticos são distribuídos livremente pelo Espírito Santo. Todavia, insisto,
os dons hierárquicos também resultam da liberdade do Espírito. Paulo no
capítulo 12 da 1.ª epístola aos Coríntios fala na diversidade de dons, de
ministérios e de operações. Porém, acentua que à diversidade preside o mesmo
Espírito, que gera a unidade. E obviamente, se o carisma é dom concedido a uma
pessoa para bem da comunidade, também o ministério o é. Paulo aduz para o seu
discurso a metáfora do corpo: um só corpo com muitos membros (cf 1Cor 12,31).
O percurso discursivo
da IE (Iuvenescit Ecclesia)
A IE apresenta elementos-chave, tanto da doutrina
sobre os carismas, à luz do Novo Testamento, como da reflexão magisterial sobre
tais realidades. Depois, a partir de princípios de ordem teológico-sistemática,
dá elementos de identidade dos dons hierárquicos e carismáticos, a par de critérios
para discernimento dos novos grupos eclesiais. Pode, a IE sintetizar-se assim:
- O carisma de acordo com o Novo
Testamento, abordando
itens, como: graça e carisma; dons
outorgados “ad utilitatem” e o primado da caridade; a variedade dos
carismas; o bom exercício dos carismas na comunidade eclesial; e dons
hierárquicos e carismáticos.
- A relação entre dons hierárquicos
e carismáticos no Magistério recente:
o
Concílio Vaticano II, nomeadamente as constituições Lumen Gentium e Dei
Verbum e os decretos Apostolicam Actuositatem e Presbyterorum
Ordinis; o Magistério pós-conciliar, sobretudo as exortações apostólicas Evangelii
Nuntiandi, de Paulo VI, Christi Fideles Laici, de João Paulo II, Sacramentum
Caritatis, de Bento XVI e Evangelii Gaudium, de Francisco, bem como
a carta-encíclica Dominum et Vivificantem, de São João Paulo II.
- Base teológica da relação entre
dons hierárquicos e carismáticos, com especial atenção para: o horizonte trinitário e
cristológico dos dons do Espírito Santo; a ação do Espírito Santo nos dons
hierárquicos e carismáticos.
- A relação entre dons hierárquicos e carismáticos na vida e missão da
Igreja,
abordando: a Igreja como mistério de comunhão; a identidade dos dons hierárquicos; a
identidade dos dons carismáticos; os dons carismáticos compartilhados; o
reconhecimento por parte da autoridade eclesiástica; e os critérios para o
discernimento dos dons carismáticos.
- Prática eclesial da relação entre
dons hierárquicos e dons carismáticos, destacando: a recíproca referência; os dons carismáticos na
Igreja universal e particular; os dons carismáticos e os estados de vida do
cristão; e formas de reconhecimento dos carismas.
- Por fim, vem a conclusão: Lembrando que a Mãe de Jesus acompanhava os apóstolos
aquando da efusão pentecostal do Espírito Santo, a CDF convida a olhar para
Maria, “Mãe da Igreja”, modelo de “docilidade plena à ação do Espírito Santo” e
de “límpida humildade”: e, confiando na sua intercessão, faz votos para que os
carismas abundantemente distribuídos pelo Espírito Santo entre os fiéis sejam
por estes acolhidos com docilidade e produzam fruto para a vida e a missão da
Igreja e bem do mundo.
***
Destacam-se
agora alguns pontos considerados mais pertinentes da IE.
Em especial, a Iuvenescit
Ecclesia detém-se em questões teológicas, e não tanto pastorais ou
práticas, que derivam da relação entre a instituição eclesial e as novas
agregações e novos movimentos, insistindo na harmónica conexão e
complementaridade dos dois tipos de dons. “Dons de importância irrenunciável
para a vida e missão eclesial”, os carismas autênticos devem ter “abertura
missionária”, “necessária obediência aos Pastores” e “imanência eclesial”.
Para a “participação fecunda e ordenada” dos carismas
na comunhão da Igreja, não se devem eles subtrair à “obediência à hierarquia
eclesial” nem têm “o direito a um ministério autónomo”.
Entretanto, uma indesejada, embora eventualmente tentadora
“contraposição ou a justaposição” dos carismas com os dons hierárquicos seria
um erro. Na verdade, não se deve opor uma Igreja “da instituição” à pretensa Igreja
“da caridade”, porque na Igreja “as instituições essenciais são carismáticas” e
os “carismas devem-se ‘institucionalizar’ para terem coerência e continuidade”,
visibilidade e eficácia. Assim, as duas dimensões – institucional e carismática
– concorrem conjunta e harmoniosamente para presentificar o mistério de Cristo
e a sua obra salvífica no mundo.
A carta assegura que a dimensão carismática nunca
faltará à Igreja e porfia que as novas realidades alcancem uma “maturidade
eclesial” que comporta a sua plena valorização e inserção na vida da Igreja,
sempre em comunhão com os Pastores e atenta às suas indicações. A existência de
novas realidades eclesiais, de facto, enche o coração da Igreja de “alegria e
gratidão”, mas igualmente as chama a “relacionarem-se positivamente com todos
os outros dons presentes na vida eclesial”, para que sejam “promovidos com
generosidade e acompanhados com vigilante paternidade” pelos Pastores, “de modo
que tudo concorra para o bem da Igreja e para a sua missão evangelizadora”.
Como reconhecer um dom carismático autêntico?
A carta evoca o discernimento, tarefa “de pertinência
da autoridade eclesiástica”, segundo critérios específicos para discernir se uma
agregação eclesial goza de carisma autêntico:
“Ser
instrumento de santidade na Igreja; empenhar-se na difusão missionária do
Evangelho; confessar plenamente a fé católica; testemunhar uma comunhão real
com toda a Igreja, acolhendo com leal disponibilidade os seus ensinamentos
doutrinais e pastorais; reconhecer e estimar os outros componentes carismáticos
na Igreja; aceitar com humildade os momentos de provação no discernimento; ter
frutos espirituais, como caridade, alegria, paz, humanidade; olhar para a
dimensão social da evangelização, consciente do facto de que “a preocupação
pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados não pode faltar numa
autêntica realidade eclesial”.
Além disso,
a IE indica mais dois critérios
fundamentais a ter em conta para o reconhecimento jurídico das novas realidades
eclesiais, segundo as normas do CIC (Código de Direito Canónico) (can. 294-297; 302; 321-326; 531-746): o primeiro é “o respeito pela peculiaridade
carismática de cada agregação eclesial”, evitando “formas jurídicas forçadas”
que “anulem a novidade”; o outro critério tem a ver com o “respeito do regime
eclesial fundamental”, favorecendo “a inserção real dos dons carismáticos na
vida da Igreja”, mas evitando que estes sejam concebidos como uma realidade
paralela, sem a referência ordenada aos dons hierárquicos. Além disso, o
documento evidencia que a relação entre dons hierárquicos e carismáticos deve
levar em consideração a “imprescindível e constitutiva relação entre Igreja
universal e Igrejas particulares” – o que significa que os carismas são
oferecidos a toda a Igreja, mas a sua dinâmica “não se pode realizar sem estar
ao serviço duma diocese concreta”.
Mais: estes
dons representam também “uma autêntica possibilidade” para viver e desenvolver
a vocação cristã de cada um, seja no matrimónio, seja no celibato sacerdotal ou
no ministério ordenado. Neste âmbito, também a vida consagrada “se insere na
dimensão carismática da Igreja”, para que a sua espiritualidade possa tornar-se
“um recurso significativo” quer para o fiel leigo, quer para o presbítero,
ajudando-os a viver a sua vocação específica.
E, falando
recorrentemente a IE em novas realidades eclesiais, é de a ligar ao rescrito em
que o Papa (segundo informação da assessoria de imprensa do Vaticano, de 20 de maio, a
conselho do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos) especificou um cânon do CIC (can. 589), estabelecendo que, a partir de 1 de junho, a ereção
dum instituto diocesano de vida consagrada carece de prévia consulta da Santa
Sé, sob pena de nulidade. Isto porque a Congregação para os Institutos de Vida
Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica está consciente de que um novo
instituto destes, mesmo nascido e desenvolvido numa Igreja particular, é dom a
toda a Igreja. Portanto, vendo a necessidade de evitar a ereção, a nível diocesano,
de novos Institutos sem o suficiente
discernimento que verifique a originalidade do carisma, defina as caraterísticas específicas que
nele terá a consagração mediante a profissão dos conselhos evangélicos e especifique as possibilidades reais de
desenvolvimento.
***
Oxalá,
não se insista em criar mais prelaturas pessoais com base em movimentos
resultantes da efusão pentecostal, não se peçam isenções da autoridade dos
bispos nem se refugiem no fácil acolhimento dos bispos os dissidentes das
comunidades religiosas e missionárias. Estabeleçam-se, sim, pontes de diálogo e
de cooperação pelo bem da Igreja e salvação dos homens.
2016.06.15 – Louro de Carvalho
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