segunda-feira, 6 de junho de 2016

Hino à polivalência ou aproveitamento da experiência governativa?

A notícia da ida de Paulo Portas – ex-trabalhador de jornal, ex-deputado, ex-presidente do CDS/PP, ex-Ministro do Estado e da Defesa Nacional, ex-Ministro do Estado e dos Negócios Estrangeiros e ex-Vice-Primeiro-Ministro com a coordenação da área económica – aliada ao anúncio de outras atividades levanta a questão enunciada em epígrafe. Com efeito, não sei se mais devo sublinhar e admirar a polivalência de capacidades, competências, conhecimento e valor do candidato a um passo de estar dentro de tudo e mais alguma coisa, se a apetência de empresas como a Mota-Engil para a captura oportuna da experiência governativa de políticos com nome feito na praça pública e da sua capacidade de manipulação dos cordelinhos da teia de contactos e interesses.
O certo é que o ex-líder do CDS-PP vai ser consultor da construtora Mota-Engil e, como era de esperar, o nomeado diz que não há qualquer incompatibilidade com as funções que já desempenhou no governo. Pois, ele agora já não é governante, mas o jurista bem sabe que não está em causa apenas a lei e o direito, mas também e sobretudo algo relacionado com a ética e o decoro. Ninguém acredita que o ora pré-gestor ou pré-consultor deite fora a lista de contactos conseguidos durante a sua governança ou faça tábua rasa dos conhecimentos adquiridos então.
***
Depois de, em dezembro de 2015, ter anunciado a saída da presidência do CDS e de se ter despedido da liderança do partido no congresso de abril, Paulo Portas fez, na passada semana, a sua última intervenção como deputado, vindo a deixar oficialmente o Parlamento no próximo dia 7, momento em que entregará a declaração de renúncia ao mandato. O lugar vago será preenchido na Assembleia da República por Filipe Anacoreta Correia, o nome que se segue na lista e o seu crítico mais visível no partido nos últimos anos.
Como responsável pelo novo conselho internacional da Mota-Engil, o ex-governante será encarregado de reunir um conjunto de personalidades para formar este órgão de aconselhamento estratégico da que é uma das maiores empresas do país, com 28 mil trabalhadores e uma presença internacional cada vez mais forte. E o principal foco deste novo órgão de consulta da Mota-Engil será o mercado da América Latina, onde a construtora vê mais e melhores hipóteses de crescimento.
Paulo Portas vai assumir ainda um cargo no conselho estratégico da Mota-Engil, liderado pelo seu presidente, António Mota, e que já integra um outro ex-governante e ex-estratega político, o socialista Jorge Coelho, assim como contou na sua composição com outros elementos de destaque como Seixas da Costa ou Murteira Nabo.
No seu mandato de vice-primeiro-ministro do Governo liderado por Pedro Passos Coelho, Paulo Portas encabeçou, de facto, várias missões empresariais da AICEP e do Governo, com destaque para duas visitas oficiais ao México, em 2014, nas quais foi dado grande relevo aos projetos da Mota-Engil naquele país latino-americano. Naquela atividade do governante, no âmbito da diplomacia económica, participou efetivamente a Mota-Engil. Contudo, Paulo Portas nega qualquer incompatibilidade entre o novo exercício de funções empresariais e aquele envolvimento governativo por entender que nunca teve a tutela direta das obras públicas ou do setor da construção (mas tutelou a internacionalização via AICEP e a área económica). Por outro lado, alega que as empresas, tal como a Mota-Engil, que participaram nas missões empresariais promovidas pelo Governo se inscreveram “através da AICEP”, não indo a convite seu e que lutara “por eles [Mota-Engil] lá fora” como lutara “por ‘n’ outras empresas”.
***
O jurista e ex-líder do CDS adiciona esta nova função ao cargo de vice-presidente da CCIP (Câmara de Comércio e Indústria de Portugal), sendo no âmbito da missão da CCIP que Portas se vai estrear em breve numa viagem a Cuba, seguindo-se, ainda no ano corrente, viagens ao Brasil e ao México.
Mas há mais: se há meses que o futuro de Portas, após a larga temporada de política partidária ativa, estava envolto em tabu, não é segredo que vai ter um espaço semanal de comentário na TVI, com estreia marcada para setembro, mas apenas para abordar temas internacionais e não de política nacional. Não se sabe em que dia o programa vai ser transmitido, nem em que modalidade, mas sabe-se que terá um “formato inovador e interativo”. O ex-líder do CDS considera o programa como um grande desafio que tem pela frente: “Sinto-me muito bem. E com um grande desafio pela frente. É muito bom, aos 53 anos, refazer uma vida.”.
Antes, será o enviado da TVI ao Reino Unido para comentar o referendo à permanência na União Europeia, a 23 de junho, assim como irá a Madrid para comentar as eleições espanholas, que decorrerão a 26 de junho. Portas marcará ainda presença nos EUA, para as convenções dos democratas e dos republicanos, e em Angola, para o congresso do MPLA.
E ainda lhe sobra tempo e energia para dar aulas na Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, cumprir uma agenda de conferências em universidades e desempenhar funções na formação de novos quadros do partido.
***
O Bloco de Esquerda já reagiu à nomeação de Portas para presidente do Conselho Internacional da Mota-Engil. Pedro Filipe Soares, líder da bancada parlamentar desta formação partidária, diz que este é “mais um daqueles casos” em que um “ex-governante salta para um cargo de uma empresa privada” para potenciar a rede de contactos que construiu enquanto membro do Executivo, dando azo, mais uma vez, a “que o interesse privado” saia beneficiado em detrimento do interesse público.
Em relação às alegações de falta de incompatibilidades aduzidas pelo ex-líder partidário e ex-membro do Governo, Pedro Filipe Soares e o Bloco têm outro entendimento: “[Portas] está claramente a utilizar agora os contactos que fez quando andou pelo mundo a fazer negócios em nome do Estado e a promover os vistos Gold“. O político bloquista não deixa de lembrar pertinentemente que o principal investimento dos vistos dourados estava concentrado, precisamente, no setor imobiliário, setor no qual a construtora Mota-Engil tem natural interesse.
Além disso, Pedro Filipe Soares lembra que a Mota-Engil “pertence ao conglomerado de empresas de construção que renegociou com o Governo anterior as Parcerias Público-Privadas”. Por isso, os bloquistas não têm dúvidas: “Não há almoços grátis”.

O líder parlamentar do Bloco considerou “politicamente criticável” a ida do ex-Vice-Primeiro-Ministro para a Mota-Engil, reprovando a “porta giratória” entre Governo e privado, e pretende que o antigo governante prove que não há incompatibilidade, pois, segundo o bloquista:

“A notícia de que Paulo Portas vai agora para um alto cargo da Mota-Engil é mais um exemplo daquilo que todos nós criticamos na política e que não deveria acontecer que é o saltar de um Governo para os privados, com um estalar de dedos e poucos meses depois de sair do Governo”.
O mesmo líder da bancada parlamentar recordou que, nos cargos que teve recentemente no Governo, Paulo Portas “foi sempre responsável pela internacionalização da economia e agora está, com esse conjunto de contactos, de relacionamento, a oferecê-los ao dispor da Mota-Engil”, considerando “politicamente criticável a escolha de Paulo Portas cerca de meio ano depois de sair do Governo”. E referiu ainda:
“Mas há dois outros aspetos a realçar: um primeiro que tem que ver com o facto de a própria Mota Engil ter tido relações com o Estado, mas um segundo com a necessidade de provar – e creio que esse ónus está do lado de Paulo Portas – que de facto, mesmo perante a lei vigente, não há aqui um aspeto de incompatibilidade no decurso da sua atuação”.
Os bloquistas, na sequência da nomeação de Maria Luís Albuquerque para consultora da Arrow Global tentaram apertar a malha a deputados e a ex-governantes que migram para o setor privado. Por conseguinte, esperam que esta nomeação de Portas relance o debate e que acelere a discussão na comissão eventual criada para o efeito, mostrando a sua determinação política: “Temos de acabar com os alçapões que permitem sempre os abusos à lei”.
Neste sentido, Pedro Filipe Soares insistiu na necessidade de a lei “ser absolutamente clara para acabar com quaisquer alçapões que permitam este tipo de situações, em que se salta do público para o privado”, realçando que o BE já tem, em especialidade, na Assembleia da República iniciativas legislativas para aumentar a defesa do interesse público e reforçar o regime de incompatibilidades. Assim:
“Queremos que quem sai do Governo seja obrigado, de forma mais clara a um período de nojo, não possa saltar depois para empresas privadas para fazer aquela conhecida porta giratória que nós tanto criticamos e que tão caro tem saído aos contribuintes do nosso país”.
***
Sobre tudo isto, é de lamentar que estas situações estejam a entrar na rotina da cena pública.
Antes de mais, é preciso considerar que não é apenas a lei o regulador da relação social; há também a ética, o bom senso, o respeito e a cortesia – sobretudo quando tantos foram tão barbaramente esbulhados dos seus rendimentos! De facto, há muitos que vivem acima das possibilidades dos outros. É vergonhoso que, face ao sacrifício dos seus compatriotas, por exemplo, António Mexia se queixe da magreza de seu vencimento!
No atinente à lei, é conveniente que ela seja clara e justa. Com efeito, não pode tolher a atividade profissional e social de quem exerceu um cargo público, mas deve impor, em alguns casos, um tempo de recato considerável para que inequivocamente se possa concluir que não há contaminação entre as antigas e as atuais funções.
E há casos em que as suspeitas são perfeitamente legítimas e não havia necessidade de arriscar o escândalo. Portas e Albuquerque até poderiam ser úteis no Parlamento e encontrar aí forma de sobreviver durante mais algum tempo. Recordo Jorge Coelho, que foi presidente executivo da Mota-Engil, mas após um razoável compasso de espera.
Até quando é que o grande objetivo do cidadão há de consistir em vir a ser ex-governante?

2016.06.06 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário