Já se abordou o tema ao falar dos “Padres da Igreja”. No
entanto, parece que se lhe deve dedicar um pouco mais de atenção. São em número
menor que o dos “Padres”, mas a sua eminência de doutrina e/ou de misticismo é
verdadeiramente relevante. E, se a designação de Padres da Igreja está reservada historicamente a santos e sábios
varões, a designação de Doutor da Igreja tem a correspondente feminina partir
de Paulo VI, que proclamou Doutora da
Igreja tanto santa Teresa de Ávila como santa Catarina de Sena.
O último doutor da Igreja até ao presente, o 36.º, é São
Gregório de Narek (950-1005), que o Papa Francisco proclamou a
12 de abril de 2015, consagrando o legado do místico arménio.
Os Doutores ou as Doutoras da
Igreja são
pessoas de exemplar santidade que prestaram a sua contribuição histórica para o
cristianismo, marcando, através do pensamento, textos ou pregações, a história
da Igreja com singular papel e que, por isso, obtiveram o solene reconhecimento
pelo Papa ou pelo concílio ecuménico (embora
nenhum concílio tenha exercido tal
prerrogativa). O título sintetiza, pois, o tratamento
dado à pessoa santa que enalteceu de algum modo a Igreja em qualquer época da
história. Um doutor é alguém
reconhecido pela Igreja (Ecclesiae declaratio) como exemplo eminente de santidade de vida (insignis vitae sanctitas), ortodoxia doutrinal e ciência
sagrada (eminens doctrina)”.
Naturalmente,
esta honraria – que só é concedida postumamente e, principalmente, após a
canonização – é uma concessão muito rara na Igreja Católica. Com pouco mais de
2000 anos de história do cristianismo, contabiliza-se, hoje, apenas um conjunto
de 36 indivíduos, entre homens e mulheres, que foram reconhecidos com o título
de Doutor ou Doutora da Igreja.
Na relação de
Doutores da Igreja, que se iniciou
com teólogos ocidentais, aparecem vários Padres
da Igreja orientais e mestres doutrinários dos primeiros séculos de
cristianismo, mas também grandes teólogos do Ocidente, como Agostinho de Hipona, e outros
grandes nomes da história da humanidade, como Tomás de Aquino, e as mulheres Teresa de Ávila, Catarina de Sena e,
recentemente, Teresa de Lisieux.
Como foi
referido, a honraria é atribuída por variadas razões, conforme a ação praticada
que tornou proeminente a pessoa. Alguns foram proeminentes escritores e
tratadistas (como Gregório ou Ambrósio); outros foram grandes místicos (como Catarina de Sena, João da Cruz e
Teresa de Lisieux); outros
foram polemistas, defendendo a Igreja contra heresias (como Agostinho e Bellarmino); e outros foram filósofos e teólogos
de renome da Escolástica (como Anselmo, Alberto Magno ou Tomás de Aquino). Porém, todos integravam o corpo “religioso”
da Igreja Católica como papas, bispos, presbíteros e diáconos ou religiosos/religiosas.
A única exceção é Catarina de Sena,
que era leiga. Os latinos foram os primeiros a receber a honraria, em 1298, da
parte de Bonifácio VIII, tendo chegado, três séculos depois, a vez dos gregos,
em 1568 por decisão de Pio V. A partir daí, a Igreja Católica passou a proclamar
doutores em anos diversos, cabendo destacar Tomás de Aquino, Bernardo de Claraval, João da Cruz,
Alberto Magno, António de Lisboa (ou de Pádua), Lourenço de Brindisi, Teresa de Ávila (ou Teresa de Jesus), Catarina de Sena, Teresa de Lisieux (ou Teresinha do Menino Jesus), João de Ávila, Hildegarda de Bingen e Gregório de Narek.
***
A inclusão de Teresa de Lisieux entre os Doutores da Igreja
despertou a atenção do público para o apuramento do conceito. Que significa ser
“Doutor(a) da Igreja”? O conceito de Doutor
da Igreja difere do de Padre da
Igreja, pois este é, segundo o critério da antiguidade, apenas o que deu contributo para a reta formulação dos
artigos da fé (SS.
Trindade, Encarnação do Verbo, Igreja, Sacramentos...) até ao século VII, no Ocidente, e
até ao século VIII, no Oriente. Há Padres
da Igreja que são Doutores: assim,
os 4 maiores Padres latinos (Ambrósio, Agostinho, Jerónimo de Strídon e Gregório Magno) e os 4 maiores Padres gregos (Atanásio, Basílio, Gregório de Nazianzo
e João Crisóstomo). E
são estes 8 os Grandes Doutores.
Para os Padres da
Igreja, basta o reconhecimento concreto, não explicitado, da Igreja, ao
passo que para os Doutores requer-se a
proclamação explícita; para os Padres,
não se requer um “saber” extraordinário, ao passo que para um Doutor exige-se um “saber” de grande
vulto (mais do que
ciência, a sabedoria, a sapiência). Por conseguinte, o que carateriza o Padre da Igreja é principalmente a sua antiguidade; ao invés, o Doutor identifica-se sobretudo pelo
saber notório.
***
Esta terminologia específica não era usual na antiguidade,
pois a palavra doutor tinha o sentido
de doctor (docente, mestre), de modo que eram doutores aqueles
que conheciam bem os artigos da fé e os sabiam explanar com clareza. São Paulo
parece aludir a este sentido de mestre, quando diz que o Senhor “constituiu apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres na sua Igreja” (cf Ef 4,11; vd 1Cor 12,28; At 13,1). Com o tempo, o título de Doutor tornou-se mais específico; a
princípio, era atribuído apenas a Padres
da Igreja, isto é, aos Padres que
sobressaíram pelo brilho doutrinário. Nenhum mártir foi proclamado doutor da Igreja (poderia ter sido o caso de Cipriano
de Cartago, vigoroso defensor da unidade da Igreja). E não o foi porque o martírio é o
maior título de glória, que não carece de algum complemento para enaltecer a
figura do cristão. Porém, no século XVI, a hierarquia da Igreja abriu mão da
nota da antiguidade e passou a designar como Doutores figuras de épocas mais recentes. A primeira proclamação
neste sentido foi feita pelo Papa Pio V, a 11 de abril de 1567, em favor de
Tomás de Aquino (+ 1274). Outras proclamações ocorreram
posteriormente, como se pode ver pelo catálogo do Doutores.
***
Além dos Doutores reconhecidos na Igreja inteira, há os que
possuem o título apenas em determinado país ou ambiente. Tal é o caso de
Leandro de Sevilha (+ 604), doutor na Espanha, e Próspero da
Aquitânia (+ após 455), doutor entre os Cónegos Regulares
de Latrão.
Alguns Doutores
receberam um aposto que carateriza a sua personalidade. Assim: Anselmo de
Cantuária, doutor mariano (devoto de Maria Santíssima); Bernardo de Claraval, doutor
melífluo (dotado de
palavra doce como o mel);
António de Lisboa ou Pádua, doutor
evangélico (exímio
pregador do Evangelho);
Tomás de Aquino, doutor angélico ou doutor comum; Boaventura, doutor seráfico; Alberto Magno, doutor universal (grande erudito também nas ciências
naturais da época); e Afonso
Maria de Ligório, doutor zelosíssimo
(sábio moralista).
Embora não
sejam Doutores da Igreja nem tendo
sido canonizados, muitos dos mais celebrados doutores de teologia e direito da Idade Média receberam um epíteto – epíteto escolástico – que expressa a
natureza da sua ciência e ensino. Entre eles, contam-se o Beato João Duns Scoto (doctor subtilis), Beato Tamon Llul (doctor illuminatus), Beato João de Ruysbroeck (doctor divinus ecstaticus), Alexandre de
Hales (doctor
irrefragabilis); Roger Bacon (doctor mirabilis), Gregório
de Rimini (doctor
authenticus), John Gerson (doctor christianissimus), Nicolau
de Cusa (doctor
christianus) e
Francisco Suárez (doctor eximius).
***
Os 36 Doutores da Igreja
(Lista por nome, função, ano de falecimento, país de origem e principais
obras)
1) Hilário (Malleus Arianorum), bispo de
Poitiers, 367, França (A Trindade; Comentário aos Salmos; Comentário a S. Mateus) – Pio IX,
em 1851;
2) Atanásio (Doctor Incarnationis; Athanasius Contra Mundum), patriarca
de Alexandria, 373, Egito (A Encarnação
do Verbo; Apologia Contra os Arianos) – por Pio
V, em 1568;
3) Efrém, diácono, 373, Síria (Comentários
a Bíblia; Poemas de Nísibe) – por
Bento XV, em 1920;
4) Basílio (Magnus), bispo de
Cesareia, 379, Turquia (Tratado do
Espírito Santo) – por Pio V, em 1568;
5) Cirilo de Jerusalém, bispo-patriarca de Jerusalém, 386, Palestina (Catequeses; Jerusalém) – por Leão XIII, em 1883;
6) Gregório Nazianzeno, arcebispo de Constantinopla, 389,
Turquia (Homilias; Cartas; Versos) – por Pio V, em 1568;
7) Ambrósio, bispo de Milão, 397, Itália (Comentário
do Evangelho de Lucas; Tratado da
Virgindade) – por Bonifácio VIII, em 1298;
8) João Crisóstomo (Chrysostomos ou boca de ouro), bispo de
Contantinopla, 407, Turquia (O Sacerdócio; Homilias; Cartas) – por Pio V, em 1568;
9) Jerónimo, monge, 420, Jugoslávia (Vulgata) – por
Bonifácio VIII, em 1298;
10) Agostinho (Doctor Gratiae), bispo de
Hipona, 430, Argélia (Confissões; Cidade de Deus; A Trindade; Cartas) – por
Bonifácio VIII, em 1298;
11) Cirilo de Alexandria, arcebispo de Alexandria, 444, Egito (Comentário de S. João; Contra Nestório) – por Leão
XIII, em 1883;
12) Pedro Crisólogo (Chrysologos ou palavra de ouro), bispo de
Ravena, 450, Itália (Homilias) – por
Bento XIII, em 1729;
13) Leão Magno (Magnus Doctor
Ecclesiae), papa, 461, Itália (Homilias; Cartas) – por Bento XIV, em 1754;
14) Gregório, o Grande (Magnus), papa,
604, Itália (Moral; Diálogos) – por Bonifácio VIII, em 1298;
15) Isidoro de Sevilha, bispo de Sevilha, 636, Espanha (Etimologias) – por Inocêncio XIII, em 1722;
16) Beda (Doctor
Anglorum), o Venerável, monge, 735, Inglaterra (História
Eclesiástica dos Anglos) – por Leão XIII, em 1899;
17) João Damasceno (Doctor
Assumptionis), monge, 749, Síria (Contra os
Iconoclastas) – por Leão XIII, em 1883;
18) Pedro Damião, cardeal-bispo de Óstia, 1072, Itália (O Livro de Sodoma;
Vida de S. Romualdo; Sermões) – por Leão
XII, em 1823;
19) Anselmo (Doctor Magnificus; Doctor Marianus), arcebispo de Cantuária, 1109,
Inglaterra (Monologion; Proslogion; A Verdade; Cartas) – por
Clemente XI, em 1720;
20) Bernardo de Claraval (Doctor
Mellifluus), abade, 1153, França (A Graça; Para Eugénio III; Sermões sobre o Cântico dos Cânticos) – por Pio VIII, em 1830;
21) António de Lisboa ou de Pádua (Doctor
Evangelicus), presbítero e frade, 1231, Portugal (Sermões) – por Pio XII, em 1946;
22) Tomás de Aquino (Doctor Angelicus; Doctor Communis; Doctor
Universalis), presbítero e frade, 1274, Itália (Suma Teológica; Contra Gentiles; Com. de
Pedro Lombardo) – por Pio V, em 1568;
23) Boaventura (Doctor Seraphicus), cardeal-bispo
de Albano, 1274 Itália (Apologia dos
Pobres; Itinerário do Espírito a Deus) – por
Sisto V, em 1588;
24) Alberto Magno (Doctor Universalis
Magnus), bispo de Ratisbona, 1280, Alemanha (38 vol.s sobre Ciência, Teologia,
Filosofia, Bíblia) – por Pio
XI, em 1931;
25) Catarina de Sena, da ordem terceira dos pregadores, 1380, Itália (Diálogo;
Cartas) – por Paulo VI, em 1970;
26) Teresa de Ávila, monja, 1582, Espanha (Autobiografia; Caminho da Perfeição; Castelo Interior ou As Moradas) – por Paulo VI, em 1970;
27) João da Cruz (Doctor Mysticus), presbítero
e frade, 1591, Espanha (Cântico
Espiritual; Subida do Carmelo; Noite Obscura) – por Pio
XI, em 1926;
28) Pedro Canísio (Malleus Hereticus),
presbítero, 1597, Alemanha (Catecismo) – por Pio
XI, em 1925;
29) Lourenço de Brindisi (Doctor Apostolicus), frade, 1619, Itália (Comentário do Génesis; Sermões) – por João XXIII, em 1959;
30) Roberto Belarmino, cardeal-arcebispo de Cápua, 1621, Itália (Controvérsias) – por Pio XI, em 1931;
31) Francisco de Sales, bispo de Genebra, 1622, França (Introdução à vida devota; Tratado do Amor de Deus) – por Pio
IX, em 1887;
32) Afonso Maria de Ligório (Doctor
Zelantissimus), bispo, 1787, Itália (Prática de
amar a Jesus Cristo; A oração) – por Pio
IX, em 1871;
33) Teresa de Lisieux, monja, 1897, França (Autobiografia) – por João
Paulo II, em 1997;
34) João de Ávila, presbítero, 1569, Espanha (Audi, filia; Epistolário Espiritual para todos os Estados;
O Conhecimento de Si Mesmo; Tratado sobre o Sacerdócio) – por
Bento XVI, em 2012;
35) Hildegarda de Bingen, Abadessa, 1179, Alemanha (Trilogia Liber
scivias Domini, Liber Vitae Meritorum, Liber Divinorum
Operum) – por Bento XVI, em 2012;
36) Gregório de Narek, Monge, 1005, Arménia (O Livro das
Lamentações ou Narek) – Por Francisco, em 2015.
***
Tendo a proclamação de Teresa de Lisieux suscitado especial interesse
para a noção de Doutor/a da Igreja, cabe relevar-lhe o campo da Espiritualidade
(Ascética e Mística), plasmada nos escritos, em que desenvolve
as palavras do Senhor dirigidas aos fiéis, convidando-os a tornarem-se
crianças espiritualmente (cf
Mt 18,3s; Sl 131/130,2) vivendo como filhos bem-amados no colo de Deus. A monja
deduziu daqueles dizeres tocantes conclusões, que explanou com simplicidade na
autobiografia “História de uma Alma”
e em escritos paralelos, incluindo poesias – obras de edificação da Igreja que
justificam o título conferido por João Paulo II a 19 de outubro de 1997.
2015.06.21
– Louro de Carvalho
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