terça-feira, 21 de junho de 2016

Doutores da Igreja

Já se abordou o tema ao falar dos “Padres da Igreja”. No entanto, parece que se lhe deve dedicar um pouco mais de atenção. São em número menor que o dos “Padres”, mas a sua eminência de doutrina e/ou de misticismo é verdadeiramente relevante. E, se a designação de Padres da Igreja está reservada historicamente a santos e sábios varões, a designação de Doutor da Igreja tem a correspondente feminina partir de Paulo VI, que proclamou Doutora da Igreja tanto santa Teresa de Ávila como santa Catarina de Sena.
O último doutor da Igreja até ao presente, o 36.º, é São Gregório de Narek (950-1005), que o Papa Francisco proclamou a 12 de abril de 2015, consagrando o legado do místico arménio.
Os Doutores ou as Doutoras da Igreja são pessoas de exemplar santidade que prestaram a sua contribuição histórica para o cristianismo, marcando, através do pensamento, textos ou pregações, a história da Igreja com singular papel e que, por isso, obtiveram o solene reconhecimento pelo Papa ou pelo concílio ecuménico (embora nenhum concílio tenha exercido tal prerrogativa). O título sintetiza, pois, o tratamento dado à pessoa santa que enalteceu de algum modo a Igreja em qualquer época da história. Um doutor é alguém reconhecido pela Igreja (Ecclesiae declaratio) como exemplo eminente de santidade de vida (insignis vitae sanctitas), ortodoxia doutrinal e ciência sagrada (eminens doctrina)”.
Naturalmente, esta honraria – que só é concedida postumamente e, principalmente, após a canonização – é uma concessão muito rara na Igreja Católica. Com pouco mais de 2000 anos de história do cristianismo, contabiliza-se, hoje, apenas um conjunto de 36 indivíduos, entre homens e mulheres, que foram reconhecidos com o título de Doutor ou Doutora da Igreja.
Na relação de Doutores da Igreja, que se iniciou com teólogos ocidentais, aparecem vários Padres da Igreja orientais e mestres doutrinários dos primeiros séculos de cristianismo, mas também grandes teólogos do Ocidente, como Agostinho de Hipona, e outros grandes nomes da história da humanidade, como Tomás de Aquino, e as mulheres Teresa de Ávila, Catarina de Sena e, recentemente, Teresa de Lisieux.
Como foi referido, a honraria é atribuída por variadas razões, conforme a ação praticada que tornou proeminente a pessoa. Alguns foram proeminentes escritores e tratadistas (como Gregório ou Ambrósio); outros foram grandes místicos (como Catarina de Sena, João da Cruz e Teresa de Lisieux); outros foram polemistas, defendendo a Igreja contra heresias (como Agostinho e Bellarmino); e outros foram filósofos e teólogos de renome da Escolástica (como Anselmo, Alberto Magno ou Tomás de Aquino). Porém, todos integravam o corpo “religioso” da Igreja Católica como papas, bispos, presbíteros e diáconos ou religiosos/religiosas. A única exceção é Catarina de Sena, que era leiga. Os latinos foram os primeiros a receber a honraria, em 1298, da parte de Bonifácio VIII, tendo chegado, três séculos depois, a vez dos gregos, em 1568 por decisão de Pio V. A partir daí, a Igreja Católica passou a proclamar doutores em anos diversos, cabendo destacar Tomás de Aquino, Bernardo de Claraval, João da Cruz, Alberto Magno, António de Lisboa (ou de Pádua), Lourenço de Brindisi, Teresa de Ávila (ou Teresa de Jesus), Catarina de Sena, Teresa de Lisieux (ou Teresinha do Menino Jesus), João de Ávila, Hildegarda de Bingen e Gregório de Narek.
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A inclusão de Teresa de Lisieux entre os Doutores da Igreja despertou a atenção do público para o apuramento do conceito. Que significa ser “Doutor(a) da Igreja”? O conceito de Doutor da Igreja difere do de Padre da Igreja, pois este é, segundo o critério da antiguidade, apenas o que deu contributo para a reta formulação dos artigos da fé (SS. Trindade, Encarnação do Verbo, Igreja, Sacramentos...) até ao século VII, no Ocidente, e até ao século VIII, no Oriente. Há  Padres da Igreja que são Doutores: assim, os 4 maiores Padres latinos (Ambrósio, Agostinho, Jerónimo de Strídon e Gregório Magno) e os 4 maiores Padres gregos (Atanásio, Basílio, Gregório de Nazianzo e João Crisóstomo). E são estes 8 os Grandes Doutores.
Para os Padres da Igreja, basta o reconhecimento concreto, não explicitado, da Igreja, ao passo que para os Doutores requer-se a proclamação explícita; para os Padres, não se requer um “saber” extraordinário, ao passo que para um Doutor exige-se um “saber” de grande vulto (mais do que ciência, a sabedoria, a sapiência). Por conseguinte, o que carateriza o Padre da Igreja é principalmente a sua antiguidade; ao invés, o Doutor identifica-se sobretudo pelo saber notório.
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Esta terminologia específica não era usual na antiguidade, pois a palavra doutor tinha o sentido de doctor (docente, mestre), de modo que eram doutores aqueles que conheciam bem os artigos da fé e os sabiam explanar com clareza. São Paulo parece aludir a este sentido de mestre, quando diz que o Senhor “constituiu apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres na sua Igreja” (cf Ef 4,11; vd 1Cor 12,28; At 13,1). Com o tempo, o título de Doutor tornou-se mais específico; a princípio, era atribuído apenas a Padres da Igreja, isto é, aos Padres que sobressaíram pelo brilho doutrinário. Nenhum mártir foi proclamado doutor da Igreja (poderia ter sido o caso de Cipriano de Cartago, vigoroso defensor da unidade da Igreja). E não o foi porque o martírio é o maior título de glória, que não carece de algum complemento para enaltecer a figura do cristão. Porém, no século XVI, a hierarquia da Igreja abriu mão da nota da antiguidade e passou a designar como Doutores figuras de épocas mais recentes. A primeira proclamação neste sentido foi feita pelo Papa Pio V, a 11 de abril de 1567, em favor de Tomás de Aquino (+ 1274). Outras proclamações ocorreram posteriormente, como se pode ver pelo catálogo do Doutores.
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Além dos Doutores reconhecidos na Igreja inteira, há os que possuem o título apenas em determinado país ou ambiente. Tal é o caso de Leandro de Sevilha (+ 604), doutor na Espanha, e Próspero da Aquitânia (+ após 455), doutor entre os Cónegos Regulares de Latrão.
Alguns Doutores receberam um aposto que carateriza a sua personalidade. Assim: Anselmo de Cantuária, doutor mariano (devoto de Maria Santíssima); Bernardo de Claraval, doutor melífluo (dotado de palavra doce como o mel); António de Lisboa ou Pádua, doutor evangélico (exímio pregador do Evangelho); Tomás de Aquino, doutor angélico ou doutor comum; Boaventura, doutor seráfico; Alberto Magno, doutor universal (grande erudito também nas ciências naturais da época); e Afonso Maria de Ligório, doutor zelosíssimo (sábio moralista).
Embora não sejam Doutores da Igreja nem tendo sido canonizados, muitos dos mais celebrados doutores de teologia e direito da Idade Média receberam um epíteto – epíteto escolástico – que expressa a natureza da sua ciência e ensino. Entre eles, contam-se o Beato João Duns Scoto (doctor subtilis), Beato Tamon Llul (doctor illuminatus), Beato João de Ruysbroeck (doctor divinus ecstaticus), Alexandre de Hales (doctor irrefragabilis); Roger Bacon (doctor mirabilis), Gregório de Rimini (doctor authenticus), John Gerson (doctor christianissimus), Nicolau de Cusa (doctor christianus) e Francisco Suárez (doctor eximius).
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Os 36 Doutores da Igreja
(Lista por nome, função, ano de falecimento, país de origem e principais obras)
1) Hilário (Malleus Arianorum), bispo de Poitiers, 367, França (A Trindade; Comentário aos Salmos; Comentário a S. Mateus) – Pio IX, em 1851;
2) Atanásio (Doctor Incarnationis; Athanasius Contra Mundum), patriarca de Alexandria, 373, Egito (A Encarnação do Verbo; Apologia Contra os Arianos) – por Pio V, em 1568;
3) Efrém, diácono, 373,  Síria (Comentários a Bíblia; Poemas de Nísibe) – por Bento XV, em 1920;
4) Basílio (Magnus), bispo de Cesareia, 379, Turquia (Tratado do Espírito Santo) – por Pio V, em 1568;
5) Cirilo de Jerusalém, bispo-patriarca de Jerusalém, 386, Palestina (Catequeses; Jerusalém) – por Leão XIII, em 1883;
6) Gregório Nazianzeno,  arcebispo de Constantinopla, 389,  Turquia (Homilias; Cartas; Versos) – por Pio V, em 1568;
7) Ambrósio, bispo de Milão, 397, Itália (Comentário do Evangelho de Lucas; Tratado da Virgindade) – por Bonifácio VIII, em 1298;
8) João Crisóstomo (Chrysostomos ou boca de ouro), bispo de Contantinopla, 407, Turquia (O Sacerdócio; Homilias; Cartas) – por Pio V, em 1568;
9) Jerónimo, monge, 420, Jugoslávia (Vulgata) – por Bonifácio VIII, em 1298;
10) Agostinho (Doctor Gratiae), bispo de Hipona, 430, Argélia (Confissões; Cidade de Deus; A Trindade; Cartas) – por Bonifácio VIII, em 1298;
11) Cirilo de Alexandria, arcebispo de Alexandria, 444, Egito (Comentário de S. João; Contra Nestório) – por Leão XIII, em 1883;
12) Pedro Crisólogo (Chrysologos ou palavra de ouro), bispo de Ravena, 450, Itália (Homilias) – por Bento XIII, em 1729;
13) Leão Magno (Magnus Doctor Ecclesiae), papa, 461, Itália (Homilias; Cartas) – por Bento XIV, em 1754;
14) Gregório, o Grande (Magnus), papa, 604, Itália (Moral; Diálogos) – por Bonifácio VIII, em 1298;
15) Isidoro de Sevilha, bispo de Sevilha, 636, Espanha (Etimologias) – por Inocêncio XIII, em 1722;
16) Beda (Doctor Anglorum), o Venerável, monge, 735, Inglaterra (História Eclesiástica dos Anglos) – por Leão XIII, em 1899;
17) João Damasceno (Doctor Assumptionis), monge, 749, Síria (Contra os Iconoclastas) – por Leão XIII, em 1883;
18) Pedro Damião, cardeal-bispo de Óstia, 1072, Itália (O Livro de Sodoma; Vida de S. Romualdo; Sermões) – por Leão XII, em 1823;
19) Anselmo (Doctor Magnificus; Doctor Marianus), arcebispo de Cantuária, 1109,  Inglaterra (Monologion; Proslogion; A Verdade; Cartas) – por Clemente XI, em 1720;
20) Bernardo de Claraval (Doctor Mellifluus), abade, 1153, França (A Graça; Para Eugénio III; Sermões sobre o Cântico dos Cânticos) – por Pio VIII, em 1830;
21) António de Lisboa ou de Pádua (Doctor Evangelicus), presbítero e frade, 1231, Portugal (Sermões) – por Pio XII, em 1946;
22) Tomás de Aquino (Doctor Angelicus; Doctor Communis; Doctor Universalis), presbítero e frade, 1274, Itália (Suma Teológica; Contra Gentiles; Com. de Pedro Lombardo) – por Pio V, em 1568;
23) Boaventura (Doctor Seraphicus), cardeal-bispo de Albano, 1274 Itália (Apologia dos Pobres; Itinerário do Espírito a Deus) – por Sisto V, em 1588;
24) Alberto Magno (Doctor Universalis Magnus), bispo de Ratisbona, 1280, Alemanha (38 vol.s sobre Ciência, Teologia, Filosofia, Bíblia) – por Pio XI, em 1931;
25) Catarina de Sena, da ordem terceira dos pregadores, 1380, Itália (Diálogo; Cartas) – por Paulo VI, em 1970;
26) Teresa de Ávila, monja, 1582, Espanha (Autobiografia; Caminho da Perfeição; Castelo Interior ou As Moradas) – por Paulo VI, em 1970;
27) João da Cruz (Doctor Mysticus), presbítero e frade, 1591, Espanha (Cântico Espiritual; Subida do Carmelo; Noite Obscura) – por Pio XI, em 1926;
28) Pedro Canísio (Malleus Hereticus), presbítero, 1597, Alemanha (Catecismo) – por Pio XI, em 1925;
29) Lourenço de Brindisi (Doctor Apostolicus), frade, 1619,  Itália (Comentário do Génesis; Sermões) – por João XXIII, em 1959;
30) Roberto Belarmino, cardeal-arcebispo de Cápua, 1621, Itália (Controvérsias) – por Pio XI, em 1931;
31) Francisco de Sales, bispo de Genebra, 1622, França (Introdução à vida devota; Tratado do Amor de Deus) – por Pio IX, em 1887;
32) Afonso Maria de Ligório (Doctor Zelantissimus), bispo, 1787, Itália (Prática de amar a Jesus Cristo; A oração) – por Pio IX, em 1871;
33) Teresa de Lisieux, monja, 1897, França (Autobiografia) – por João Paulo II, em 1997;
34) João de Ávila, presbítero, 1569, Espanha (Audi, filia; Epistolário Espiritual para todos os Estados; O Conhecimento de Si Mesmo; Tratado sobre o Sacerdócio) – por Bento XVI, em 2012;
35) Hildegarda de Bingen, Abadessa, 1179, Alemanha (Trilogia Liber scivias DominiLiber Vitae Meritorum, Liber Divinorum Operum) – por Bento XVI, em 2012;
36) Gregório de Narek, Monge, 1005, Arménia (O Livro das Lamentações ou Narek) – Por Francisco, em 2015.
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Tendo a proclamação de Teresa de Lisieux suscitado especial interesse para a noção de Doutor/a da Igreja, cabe relevar-lhe o campo da Espiritualidade (Ascética e Mística), plasmada nos escritos, em que desenvolve as palavras do Senhor dirigidas aos fiéis, convi­dando-os a tornarem-se crianças espiritualmente (cf Mt 18,3s; Sl 131/130,2) vivendo como filhos bem-amados no colo de Deus. A monja dedu­ziu daqueles dizeres tocantes conclusões, que explanou com simplicidade na autobiografia “História de uma Alma” e em escritos paralelos, incluindo poesias – obras de edificação da Igreja que justificam o título conferido por João Paulo II a 19 de outubro de 1997.
“Omnes sancti Doctores, / Orate pro nobis” (in “Litaniae Sanctorum).


2015.06.21 – Louro de Carvalho

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