sábado, 4 de junho de 2016

Sobre a alegada falta de gratidão em relação à Alemanha

Em entrevista concedida ao jornal alemão Die Welt, o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa falou sobre a situação portuguesa e sobre a visão que Portugal tem da Alemanha.
O apregoado realismo do Presidente em relação aos principais partidos estendeu-se da direita à esquerda. No quadro da esquerda e tendo em conta a maioria que se gerou no Parlamento por força dos acordos celebrados entre o PS (Partido Socialista) e os partidos que se posicionam à sua esquerda, o Presidente sustentou que o PCP (Partido Comunista Português) e o BE (Bloco de Esquerda) “aceitaram a realidade”. Neste sentido, prevaleceu sobre as ideologias ditas radicais a disposição para o compromisso dos membros dos partidos e a vontade de apoiar um Governo do PS. O Governo é efetivamente minoritário, mas sustentado por um acordo parlamentar de incidência governativa. E este entendimento vem funcionando já há seis meses, sem que se vislumbrem sinais próximos de rutura. “As pessoas antes diziam que seria impossível, que os socialistas e os partidos mais à esquerda nunca se entenderiam, que não aprovariam um programa de Governo e que não aprovariam um Orçamento do Estado. Até agora, conseguiram isto tudo”. São palavras de Rebelo de Sousa.
Ao defender a “geringonça” (termo de Paulo Portas) na predita entrevista ao influente jornal alemão, o Presidente sublinha que, “até agora, PCP e BE aceitaram a realidade” e que “o programa que implementam não está assim tão longe do que o governo conservador fez”. Marcelo diz, aliás, “não ter a certeza” de que possam cair “hoje ou amanhã”. Isto porque bloquistas e comunistas, embora continuem a deixar vir à tona as suas posições de princípio, têm sabido pôr “a disposição para o compromisso” acima “dos ideais” e é desta sabedoria pragmática que vem resultando a forma como Portugal está a ser conduzido pelo Governo entre o compromisso à esquerda e a observância das normas europeias. É por isso que se pode, de certo modo dizer que a condução do país não diverge substancialmente – há exceções – da adotada pelo Governo de Passos Coelho e Paulo Portas.
O Presidente dá exemplos de como a disponibilidade para o compromisso da parte do PCP e do BE supera pragmaticamente as linhas de força dos seus ideários:
“Ambos tinham dúvidas sérias em relação à NATO e uma posição crítica em relação à UE, eram muito críticos no que diz respeito ao mecanismo para o défice”.
Todavia, aproveitar a falta de clareza de resultados subsequente às eleições legislativas de 4 de outubro de 2015 transformou-se na procura dum mecanismo de viabilização dum Governo que viesse a contradizer, ao menos parcialmente, a linha política seguida na legislatura anterior.
Marcelo discorda, por isso, daqueles que, “na oposição”, vaticinam a queda do Governo para “hoje” ou para a “amanhã”, deixando na entrevista ao referido periódico alemão uma profecia de alguma fé na estabilidade política em Portugal, descolando dos que antecipam a queda iminente do executivo: “Eu não tenho tanta certeza”.
Empenhado em serenar os ânimos de Berlim quanto ao rumo de Lisboa, o Presidente da República sublinhou que, por muito que o Primeiro-Ministro socialista diga que é contra a austeridade, “a realidade é como é”: “Podemos sonhar em mudar a UE um dia, quando a situação e os equilíbrios de força forem outros. Mas não é esse o caso” atualmente. É então caso para interrogar o Presidente sobre a sua convicção em sonhar uma Europa diferente, melhor.
Questionado sobre o que levara países como Portugal, a Espanha ou a Grécia a endividarem-se excessivamente, o Presidente pede compreensão:
“Portugal passou em 40 anos de uma economia colonial para uma economia de mercado europeia e ao mesmo tempo construímos uma democracia. Isso custou dinheiro”.
E lembra que foi a Europa que em 2007 aconselhou: “Vamos fazer o que Keynes disse, avançar com investimento público. Foi o que fizemos e o resultado é o valor da dívida”.
Sobre os refugiados, o Presidente elogiou Angela Merkel pela política de os aceitar no país e por “ter percebido que esta crise é um novo desafio para a Europa”. Crítico da “falta duma estratégia de longo prazo” na atual UE, deixa um aviso “aos amigos nos Balcãs”: “a xenofobia e o populismo não são abordagens viáveis a longo prazo para resolver os problemas”.
O Presidente considerou que “a realidade é como é” e a UE condiciona a ação dos executivos, mas tem agora tantos problemas (refugiados, migrações, Brexit, política de segurança…) que não pode perder um segundo “com problemas que em 2010 ou 2011 pareciam de vida ou de morte”.
Marcelo referiu ainda, na sua oposição às sanções de Bruxelas, que o Governo de Passos Coelho “fez tudo” para cumprir as obrigações:
“Tinham um trabalho muito difícil. Agora falamos apenas duma diferença de 0,4%. Na realidade, não é quase nada quando comparado com o que tínhamos no passado e há que valorizar também a enorme evolução conseguida. Nessa altura, foram por vezes 7% de novo endividamento. Procuramos cumprir as nossas obrigações internacionais e temos a impressão que nunca ninguém foi penalizado. Penalizar os cidadãos portugueses, apesar dos esforços que fizeram, seria verdadeiramente injusto”.
Marcelo referiu, ainda, que muitos dos países que agora fecham as portas aos refugiados devem muito à Europa e à Alemanha:
“Falta à Europa uma estratégia de longo prazo. Sou um europeísta e continuo a acreditar na Europa. Contudo, há cada vez mais europeus – até políticos europeus – que começam a deixar de acreditar na Europa: defendem apenas os seus próprios interesses, e falta-lhes gratidão”.
***
Já em declarações aos jornalistas, à chegada a Berlim, antes duma receção a representantes da comunidade portuguesa, na residência do embaixador de Portugal, e ladeado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, Rebelo de Sousa apontara que discutiria “inevitavelmente” com a chanceler Angela Merkel e com o Presidente Joachim Gauck a questão das eventuais sanções a Portugal, expondo os motivos pelos quais considera que o país não merece tal punição. Joachim Gauck, pelos vistos, mostrou-se compreensivo, mas também indisponível para tratar do assunto, dado não ser este da sua competência constitucional; Merkel, não sendo obviamente a senhora duma decisão europeia, mostrou-se compreensiva e terá dado esperanças ao Presidente português. A ver vamos.
Apesar de saber e ter sublinhado que “é preciso não confundir a competência dos órgãos europeus com o papel dos Estados” e que “há decisões que pertencem a órgãos europeus”, como as sanções no quadro dos procedimentos por défice excessivo, o Presidente admitiu a importância de sensibilizar Berlim, pela sua influência, para o esforço “que foi feito no passado” e que “está a ser feito no presente e vai ser feito no futuro” no nosso país, que é um Estado-Membro da União Europeia e da zona Euro.
É certo que “seria uma indelicadeza para a Comissão, para os comissários europeus e até para o Conselho Europeu” estar querer antecipar em definitivo “aquilo que vai ser uma decisão a nível europeu”. Não obstante, o Chefe de Estado não esquece o papel importante da Alemanha no Conselho e no Ecofin:
“É evidente que é muito importante, como em relação a qualquer outro Estado europeu, e em relação à Alemanha de uma forma muito impressiva, o explicar aquilo que eu tenho a certeza que será importante ser compreendido, que é o esforço e os sacrifícios que os portugueses fizeram, cumprindo os compromissos europeus no passado, e daí o entender-se que esse esforço não deveria merecer qualquer tipo de sanção, e o esforço que está a ser feito para continuar a cumprir os compromissos no presente e no futuro.”.
Quanto às posições assumidas pelo ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, que durante uma reunião dos ministros das Finanças da UE (Ecofin), em Bruxelas, manifestou a sua oposição ao adiamento da decisão de aplicar sanções a Portugal e Espanha da parte da Comissão Europeia, Marcelo entendeu não dever nem querer comentar “especificamente as declarações de um governante alemão”, dado não querer imiscuir-se “em questões de política interna alemã”. Esta parece-me uma resposta evasiva, já que o Ecofin não é uma instância alemã, mas europeia, e o Ministro não falara em nome da Alemanha, mas como membro da instância europeia em causa e pareceu dar força àqueles que no interior da Comissão se mostram mais severos para com os países ibéricos – o que não foram em tempo para com a França por défice elevado e com a Alemanha por superavit excessivo.
Marcelo faz bem ou em não se pronunciar sobre tudo e mais alguma coisa, quando podem estar em causa as relações internacionais do país ou assumir uma atitude apaziguadora. Porém, não necessita de navegar pela ambiguidade ou pela subserviência. E aquela de deixar um obrigado a Berlim e assumir que “há uma falta de gratidão em relação à Alemanha” não é outra coisa senão subserviência, postura de bom aluno, no pior sentido.
É óbvio que, embora haja em tese razões para a aplicar sanções a Portugal e Espanha por incumprimento por défice excessivo, a aplicação em concreto torna-se injustiça atroz, dado o esforço que estes países vêm fazendo e os problemas com que se tem defrontado Portugal. A sua aplicação far-me-ia lembrar o velho princípio summum ius summa iniuria (a aplicação da justiça formal em toda a linha redunda na maior injúria, se não se considerarem algumas circunstâncias). 
Por isso, Marcelo fez bem em falar com a Chancelaria alemã, mas não tinha necessidade de deixar o público agradecimento (a justiça não se agradece) ou de enunciar a dívida de gratidão para com a Alemanha. Se esta investe em Portugal, se é nosso cliente – tal sucede sobretudo no interesse alemão. Quem é que mais lucrou com o descalabro financeiro dos países periféricos?
Sem a Alemanha não teríamos de democracia? É discutível a resposta. Em todo o caso, interessava à Alemanha que Portugal tivesse uma democracia de tipo representativo!
***
Por seu turno, o Primeiro-Ministro, após reunião com Martin Schulz, Presidente do Parlamento Europeu, deixou explícito, em declarações aos jornalistas, que não vai deixar que os portugueses voltem a sofrer “com mais sanções” assim como não deseja o mesmo para outros países: “Não aceitamos sanções para Portugal nem para outros países” – disse. Prometendo ir “encontrar uma solução que permita evitar sanções a Portugal”, explicitou:
 “Do ponto de vista nacional (…) isso [sanções] seria muito injusto para os portugueses e incompreensível após todo o trabalho conjunto que foi desenvolvido com a Comissão. A minha convicção é que com o trabalho conjunto que temos vindo a fazer, iremos encontrar uma solução que permita evitar sanções a Portugal”.
E justificou-se, clarificando com base no ideário do projeto europeu, que anda bem esquecido ou obnubilado pelos interesses de alguns países:
“A União Europeia assenta num princípio de igualdade de Estados. Nós não aceitamos que haja sanções para Portugal, mas também não aceitamos que existam sanções para outros países (…). França está a fazer um esforço para realizar reformas estruturais. Aquilo que nós precisamos de França, Alemanha ou Holanda é que continuem a investir nestas reformas porque isso tinha um efeito de arrastamento muito significativo sobre as outras economias mais fracas (…) Acha que faria sentido eu dizer que a Alemanha devia ser sancionada? Ajudaria, mas não é a solução”.
Sobre a afirmação de Marcelo entrevista ao Die Welt, em que o Presidente afirmou que o programa do atual Governo não é “assim tão distante do de Passos”, assegurou:
“Acho que a mensagem que o Presidente quis transmitir (…) é que este Governo se mantém fiel aos compromissos europeus e mantém como objetivo uma consolidação saudável das nossas finanças públicas, apesar de adotarmos um caminho diverso do caminho seguido pelo anterior governo”.
***
Até quando terá António Costa de tentar interpretar ou reescrever o que Marcelo diz e nós a ver Marcelo a navegar em águas turvas sem acreditar numa alternativa ao anterior quadriénio?

2016.06.04 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário