Celebra-se
hoje, 3 de junho e sexta-feira subsequente à oitava da solenidade do Corpus Christi, a solenidade do Sagrado
Coração de Jesus. Trata-se de duas celebrações complementares: enquanto a
celebração do Corpo e Sangue do Senhor, se centra no mistério da presença real
do corpo, sangue alma e divindade de Cristo nas espécies (pão e vinho) consagradas, em resultado da
transubstanciação, segundo e com as palavras de Cristo na Última Ceia, a
celebração do Coração do Redentor acentua o mistério da sua humanidade,
materializada no coração enquanto ícone do amor divino que assume a dimensão
humana e humanitária.
O culto à
humanidade de Cristo através do ícone do coração sempre existiu na Igreja.
Todavia, por circunstâncias históricas em que se aninharam algumas heresias no
seio da Igreja, em que se destaca o Jansenismo, o culto à humanidade de Cristo
enquanto Deus próximo foi-se esvaindo, até que a Igreja houve por bem
recuperá-la e intensificá-la. Para tanto, contribuíram as aparições privadas de
Cristo a mostrar o seu Coração sofrente a Santa Margarida Maria Alacoque, que
despertaram no seio do povo cristão uma consciência mais clarividente e viva do
mistério amoroso de Cristo. Por conseguinte, Clemente XIII aprovou a
festividade do Sagrado Coração de Jesus, em 1765, Pio IX inseriu-a no
calendário da Igreja Universal, em 1856, Leão XIII elevou-a à categoria
litúrgica de festa de 1.ª classe com oitava, em 1889, e Paulo VI, no âmbito da
reforma litúrgica resultante do concílio Vaticano II, inscreveu-a no quadro das
solenidades.
E, assim, Jesus
Cristo passou do altíssimo trono, que o distanciava das pessoas e se tornava
praticamente inacessível, ao altar da proximidade e da convivência e comunhão com
o homem peregrino e pecador; da necessidade de solicitar uma audiência para o
cristão ser atendido pelo Rei passou-se ao dinamismo prazenteiro do
companheirismo da fraternidade em que o Pai é Deus e Cristo, sem deixar de ser
Deus, é predominantemente o Irmão. Era necessário que a dimensão duma das
verdades essenciais do cristianismo – o amor de Deus para com todos e cada um
dos homens – se fizesse vivência de toda a Igreja. Era preciso que o Espírito
de amor que dirige a Igreja permitisse à Igreja, esposa de Cristo, encontrar um
meio de dissipar a heresia. E a devoção ao Coração de Cristo tornou-se o meio
providencial de reação a uma conceção rigorista, por parte do povo de Deus, das
relações entre Deus e o homem – conceção que gerara a ideia pagã de um Deus implacável,
justiceiro e até vingador contra a ideia, que urge acentuar, da economia da
salvação e do mistério da incessante misericórdia divina.
Assim, a
devoção e o culto ao Coração de Cristo, longe de estarem ultrapassados, estão
em franca atualidade, desde que levem à vivência íntima e atuante do mistério
de Cristo, assente genuinamente nas raízes da Liturgia e haurindo da Eucaristia
o seu alimento e vitalidade. Levando-nos a amar Cristo e a compartilhar o Seu
amor pelo Pai e pelos irmãos, este culto do Amor misericordioso terá como
consequência necessária a promoção da solidariedade universal, enquanto
exigência da fraternidade e da obrigação de satisfazer as condições da
dignidade da pessoa humana e da consciência de povo e povo de Deus. Nestes
termos, o mistério do Coração de Jesus Cristo torna-se o caminho para a plena
libertação do homem, contradizendo o arremedo de libertação procurada através
de vias que apenas conduzem à degradação das condições da vida humana.
***
Sendo assim,
há que ter em conta as indicações da Liturgia da Palavra da solenidade neste
Ano C. No livro de Ezequiel (cf Ez 34, 11-16), Deus
revela-Se ao Povo escolhido na imagem do bom Pastor, cheio de bondade, carinho,
compaixão e equidade:
“Eu mesmo cuidarei das minhas ovelhas e me interessarei por elas. Como
o pastor se preocupa com o rebanho, ao encontrar-se entre as ovelhas dispersas,
assim me preocuparei Eu. Reconduzi-lo-ei de todas as partes por que ande
disperso, num dia de nuvens e de trevas. Arrancá-los-ei de entre os povos
e os reunirei dos vários países, para os reconduzir à sua própria terra e os
apascentar nos montes de Israel, nos vales e em todos os lugares habitados da
região. Eu os apascentarei em boas pastagens; o seu pasto será nas montanhas
elevadas de Israel; estarão tranquilas em bons pastos; comerão em férteis
prados, nos montes de Israel. Sou Eu que apascentarei as minhas ovelhas,
sou Eu quem as fará descansar – oráculo do Senhor Deus. Procurarei a que
se tinha perdido, reconduzirei a que se tinha tresmalhado; cuidarei a que está
ferida e tratarei da que está doente. Vigiarei sobre a que está gorda e forte.
A todas apascentarei com justiça.”
E mostra as
relações que os homens devem estabelecer com Ele e entre si mesmos:
“Quanto a vós, minhas ovelhas: vou julgar entre ovelhas e ovelhas – entre
carneiros e bodes. Não era bastante alimentar-vos numa boa pastagem, para
que calqueis ainda aos pés o resto do prado? Parece-vos pouco beber água
límpida, para irdes turvar ainda o resto com os vossos pés? E as minhas
ovelhas devem pastar o que pisastes com os pés e beber o que os vossos pés
turvaram? Por isso, assim fala o Senhor Deus: Eis que julgarei entre a ovelha
gorda e a ovelha magra. Porque feristes com o flanco e com as espáduas, e
investistes com os chifres contra todas as ovelhas fracas até as atirar para
fora, Eu virei em socorro das minhas ovelhas, para que elas sejam poupadas à
pilhagem; vou julgar entre ovelhas e ovelhas.” (Ez 34,17-22).
Por seu
turno, o Evangelho (Lc
15,3-7) coloca em Jesus
a realização desta profecia enquanto procura a ovelha perdida e se contenta
pelo seu achamento, partilha a alegria com os outros e assume em Si a função do
novo David, em consonância com a profecia de Ezequiel:
“Estabelecerei
sobre elas um único pastor, que as apascentará, o meu servo David; será ele que
as levará a pastar e lhes servirá de pastor. Eu,
o Senhor, serei o seu Deus, e o meu servo David será um príncipe no meio delas.”
(Ez 34,23-24).
É de anotar que Deus não ama apenas os homens no seu conjunto: ama cada
um com amor pessoal e intenso como se fora só um. Não ama somente quem se
mantém fiel ao seu amor, mas também o que dele se separa, expondo-se assim a
todos os riscos e perigos que o deserto da vida proporciona. Mais: o pecador
não é apenas recebido de braços abertos, mas procurado, convidado e amorosamente
perseguido por Deus. Cada pecador constitui uma perda. Por isso, qual rosto
misericordioso do Pai, Jesus vem ao nosso encontro, percorre os caminhos da
nossa história, é o nosso Salvador e Redentor e é Nele que percebemos o
mistério do próprio homem.
***
No âmbito do
Ano da Misericórdia, o Papa Francisco presidiu hoje, na Praça de São Pedro, à
celebração eucarística do Sagrado Coração de Jesus, concluindo o Jubileu dos
Sacerdotes, iniciado no dia um deste mês. Na homilia centrou a sua reflexão no Coração do Pastor, que é a própria
misericórdia, revela que o seu amor não tem limites e não se cansa nem se arrepende
jamais. É um Coração inclinado para nós, “concentrado especialmente sobre quem
está mais distante”, pelo que “aponta a agulha da sua bússola para essa pessoa,
por quem revela um amor particular”. E, sem olvidar como raiz do culto ao Coração
de Cristo o lado aberto do divino morto trespassado pela lança, Francisco orienta
a reflexão à luz do Bom Pastor, visível no livro de Ezequiel, mencionado acima,
nas parábolas da misericórdia em São Lucas (Lc 15,1-32) e na metáfora do pastor em São João (Jo 10,1-18), bem como na Oração sacerdotal de Jesus (Jo 17,1-20)
Segundo o
Pontífice, são os sacerdotes chamados a concentrarem-se no coração, na
interioridade, nas raízes mais robustas da vida, no núcleo dos afetos, no centro da pessoa. E é preciso fixar o olhar
em dois corações: o Coração do
Bom Pastor e o coração de
pastores.
O Coração do
Bom Pastor é a própria misericórdia. “Nele
resplandece o amor do Pai” e a certeza de sermos acolhidos e compreendidos como
somos. Nele, com todas as limitações e pecados, saboreia o sacerdote a certeza
de ser escolhido e amado. Fixando-o, renova o sacerdote o primeiro amor: a
memória de quando o Senhor o tocou no mais íntimo e o chamou para O seguir – “a
alegria de, à sua Palavra, ter lançado as redes da vida” e colhido em abundância
(cf Lc 5,5). No Coração do Bom Pastor, “vemos a sua doação incessante,
sem limites”, “encontramos a fonte do amor fiel e manso, que deixa livres e
torna livres”, “descobrimos sempre de novo que Jesus nos ama até ao fim (Jo 13,1), mas “sem nunca se impor”. Inclinado para nós, “concentra-se
sobretudo em quem está mais distante”, revelando por ele “um fraquinho
particular de amor”, pois “quer alcançar a todos e não perder ninguém” (cf Jo 17,10-24).
***
Em face do
Coração amoroso de Jesus, o Papa levanta a questão basilar da vida sacerdotal: para onde está orientado o meu
coração? É a pergunta que
os sacerdotes devem fazer a si próprios muitas vezes, em cada dia. O ministério
aparece frequentemente cheio de muitas e variadas iniciativas (da catequese à liturgia, à caridade,
aos compromissos pastorais e mesmo administrativos). E, no meio de tantas atividades,
permanece o problema da fixação do coração do sacerdote, pois, como diz Jesus, “onde estiver o teu tesouro, aí estará também
o teu coração” (Mt 6,21). Todos sentem em si fraquezas e pecados, mas devem procurar
ir ao fundo, à raiz: onde está a raiz das
fraquezas e pecados, ou onde está o tesouro
que afasta do Senhor o sacerdote. Porém, os sacerdotes sabem que “os tesouros insubstituíveis do Coração
de Jesus são dois: o Pai e nós”. As jornadas de Jesus transcorriam entre a
oração ao Pai e o encontro com as pessoas. Também o coração do pastor de Cristo
hoje só pode conhecer duas direções: o Senhor e as pessoas. O coração
sacerdotal é um coração trespassado pelo amor do Senhor e, por conseguinte,
fixo, não sem si mesmo, mas “em Deus e nos irmãos”:
“Já não é um coração dançarino, que se deixa atrair pela sugestão do momento ou
que corre daqui para ali à procura de consensos e pequenas satisfações; ao
invés, é um coração firme no Senhor, conquistado pelo Espírito Santo, aberto e
disponível para os irmãos. E nisso têm solução os seus pecados.”.
Para ajudar o
coração a inflamar-se na caridade do Bom Pastor, os sacerdotes podem treinar-se
a fazer suas três ações que as Leituras da solenidade sugerem: procurar, incluir e alegrar-se.
Procurar. Segundo Francisco, Ezequiel recorda
que Deus em pessoa procura as suas ovelhas (34,11.16). E o Evangelho diz que o Senhor “vai à procura da que se tinha perdido”
(Lc 15,4), sem temor dos riscos e sem hesitação. Aventura-se
para lá dos lugares de pastagem, fora das horas de trabalho, sem exigir
pagamento de horas extraordinárias, sem pensar muito e sobretudo sem adiar a
busca, sob o pretexto de já ter cumprido o seu dever. O coração do Pastor “está
inquieto enquanto não encontra aquela única ovelha perdida”. Porém, “tendo-a
encontrado, esquece-se do cansaço e carrega-a aos ombros, cheio de alegria”,
sendo que, “umas vezes, terá de sair à sua procura, falar-lhe, convencê-la;
outras, deverá permanecer diante do Sacrário,
lutando com o Senhor por aquela ovelha”. É sair à periferia sem perder o
sentido do centro. Este é o “coração que não privatiza os tempos e os espaços”.
Assim, “o pastor segundo o coração de Deus não defende as comodidades próprias,
não se preocupa por tutelar o seu bom nome”, mas aceita mesmo ser caluniado
como Jesus. “Sem medo das críticas, dispõe-se a arriscar tudo para imitar o
Senhor: “Felizes sereis, quando vos
insultarem e perseguirem…” (Mt 5,11). O pastor segundo Jesus tem o coração livre para
deixar as suas coisas, não fazendo a contabilidade do que possui ou das horas
de serviço: é “um bom Samaritano em busca dos necessitados”. É pastor e não “inspetor
do rebanho”. Não se detém com as deceções nem se rende à fadiga; é obstinado no bem, ungido pela divina
obstinação de que ninguém se extravie. Mantém abertas as portas e sai à procura
de quem já não quer entrar pela porta: está sempre em saída de si mesmo. O
epicentro do seu coração está fora dele: é descentrado de si mesmo, porque
centrado em Jesus.
Incluir. Cristo ama e conhece as suas
ovelhas, dá a vida por elas e nenhuma Lhe é desconhecida (cf Jo 10,11-14). O rebanho é a sua família e vida.
Não é o líder temido pelas ovelhas, mas o Pastor que caminha com elas e as
chama pelo nome (cf Jo 10,3-4). E quer reunir as ovelhas que ainda não habitam com
Ele (cf Jo 10,16). Assim é o sacerdote de Cristo: ungido para o povo,
não para escolher os seus próprios projetos, mas para estar perto do povo
concreto que Deus, através da Igreja, lhe confiou. Ninguém fica excluído do seu
coração, oração e sorriso. Com olhar amoroso e coração de pai acolhe, inclui e,
se tem de corrigir, é para aproximar. Não despreza ninguém, está pronto a sujar
as mãos por todos, dispensando o uso de luvas. Enquanto ministro da comunhão,
que celebra e vive, não espera cumprimentos e elogios, mas é o primeiro a dar a
mão, rejeitando murmurações, juízos e venenos. Escuta pacientemente os
problemas das pessoas e acompanha-lhes os passos, testemunhando e concedendo o perdão
com generosa compaixão. Não ralhando a quem deixa ou perde a estrada, está
pronto a reintegrar e a compor as contendas.
Alegrar-se. Deus está cheio de alegria (Lc 15,5) em resultado do perdão e da vida que ressurge no filho
que respira novamente o ar de casa (Lc 15,32). A alegria do Bom Pastor não é uma alegria por Si, mas a alegria pelos outros e com os outros, a
alegria do amor. E é transformado pela misericórdia que o sacerdote dá gratuitamente. Orando, descobre
o consolo de Deus e experimenta que nada é mais forte que o amor. Permanece interiormente
sereno, sentindo-se feliz por ser canal de misericórdia a aproximar o homem do
Coração de Deus. A sua tristeza é apenas passageira; é-lhe estranha a dureza,
porque é pastor segundo o manso Coração de Deus.
Por fim,
Francisco ensina que os sacerdotes reencontram diariamente a identidade de
pastores na Celebração Eucarística. De cada vez que celebram, farão suas as
palavras de Cristo: Este é o meu corpo que será entregue por vós. É o
sentido da sua vida, são palavras com que, de certo modo, podem renovar diariamente
as promessas da Ordenação sacerdotal e que significam o “sim” concretizado em tantos “sins”
diários, escondidos, muitos dos quais só o Senhor conhece. É o “sim” a doar
a vida em união com Jesus – o “sim”
que é fonte pura da alegria sacerdotal.
***
E São Paulo,
na sua carta aos Romanos (cf
Rm 5,5b-11), ensina-nos
que Deus, apesar das nossas misérias e pecados, nos ama a todos e a cada um com
um amor desinteressado e gratuito. E a maior prova deste amor é Cristo, que é a
grande revelação de Deus-Amor. Jesus, morto para nossa reconciliação com o Pai
e ressuscitado para nossa vida, mostra-nos a ternura que Deus Pai tem pelo
homem. É este amor terno, acolhedor e em busca – que é fruto da iniciativa
divina e não mérito do esforço humano – que Deus derrama em nossos corações
pelo Seu Espírito, que nos une no amor e nos conforta, alimenta e fortalece
pela oração.
Elevado sobre a cruz, com admirável amor deu a sua vida por
nós e do seu lado trespassado fez brotar sangue e água, donde nasceram os
sacramentos da Igreja, para que todos os homens, atraídos ao Coração aberto do Salvador,
pudessem beber com alegria das fontes da salvação (do Prefácio do Sagrado Coração de Jesus).
2016.06.03 – Louro de Carvalho
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