Saiu
na prova de Português (639)
deste ano de 2016, 1.ª fase; e esta circunstância deixou-me com a tentação de
aprofundar a sua análise, dado que a solicitada para o soneto tinha de ser
naturalmente limitada, dado vir em contexto de prova e conexo com o trecho do
drama épico de Sttau Monteiro. Todavia, tal conexão justifica-se perfeitamente,
uma vez que ambos os textos são marcados pela antítese quase paradoxal que a
vida nos oferece em dose reforçada de injustiça por culpa do homem ou por
capricho do destino.
Em
“Felizmente Há Luar!”, as antíteses
expressam a oposição entre os valores supostamente ensinados aos filhos (valentia,
justiça, lealdade) e
a realidade político-social, na qual vinga quem é cobarde, injusto e desleal,
evidenciando-se a hipocrisia instalada na sociedade, que aparenta defender os
valores axiais, mas promove quem não os pratica. Em Camões, a antítese
perfila-se entre o tempo que dura e a vida que fenece. Se, em “Felizmente Há Luar!”, Matilde de Melo, a
cúmplice íntima do protagonista, passa dum estado de espírito marcado pela
revolta face à sociedade para um estado de espírito nostálgico e fantasioso, em
que afloram as lembranças dos dias felizes e dos sonhos que partilharam, em
Camões, o estado de espírito do poeta é de desilusão e perda de esperança ante
as agruras da vida, embora sem excluir a maldade e a cobardia dos homens.
E,
passando o general Gomes Freire por uma grave situação de injustiça, Matilde
acusa a terra onde vive por ela
proteger e beneficiar os mesquinhos, insignificantes e cobardes – que não
passam de “arbustos” – à custa da aniquilação dos melhores, mais dignos e
justos, como é o caso de Gomes Freire, metaforizado em “as árvores”. No caso do
poeta lírico, a culpa da desilusão, sem deixar de ser a terra, recai sobretudo
na vida e na fraqueza do homem ou, se quisermos no tempo que flui e desgasta.
Não posso deixar de sublinhar que
o exame incidiu sobre aspetos pertinentes do poema: os efeitos da passagem do
tempo na vida do emissor lírico, evocados nas quadras; e a sugestão que o verso
8 sugere, para o sujeito poético, de que toda a esperança acaba por se revelar
ilusória. Quanto ao primeiro aspeto, o sujeito entende o decurso dos anos como
uma longa experiência cada vez mais penosa; assume a consciência da aproximação
do termo dos seus dias; avalia negativamente a sua existência apoiado na
experiência; toma consciência da progressiva perda da qualidade de vida; e encara
toda a esperança e cada uma das esperanças como mera ilusão.
Mas leiamos:
Oh! como se me
alonga, de ano em ano,
a peregrinação
cansada minha!
Como se
encurta e como ao fim caminha
este meu breve
e vão discurso humano!
Vai-se
gastando a idade e cresce o dano;
perde-se-me um
remédio, que inda tinha;
se por
experiência se adivinha,
qualquer
grande esperança é grande engano.
|
Corro após este bem que não se
alcança;
no meio do caminho me falece,
mil vezes caio, e perco a confiança.
Quando ele foge, eu tardo; e, na
tardança,
se os olhos ergo a ver se inda parece,
da vista se me perde e da esperança.
Luís de Camões, Rimas, ed. de Álvaro J.
da Costa
Pimpão, Coimbra, Almedina, 2005, p.
129
|
Vocabulário:
“peregrinação” – percurso; “vão”: inútil; “discurso humano”: passagem pela
vida; “dano”: mal, sofrimento; “se por experiência se adivinha”: se a
experiência permite prever o futuro; “bem”: felicidade; “falece”: falta;
“parece”: aparece.
***
Nesta composição,
Camões utiliza expressões de tempo para ilustrar o decurso temporal da vida
humana. Assim, no 1.º verso, encontramos “de
ano em ano”, com a ideia de movimento, pois a vida vive-se também ela de
ano em ano; já no segundo verso, o poeta alonga-se um pouco mais no tempo e
utiliza o termo “peregrinação” – identificador de percurso, o percurso da vida,
vida que segue um caminho; no 4.º e último verso da 1.ª estrofe (quadra), a utilização da palavra “discurso” (por
“decurso”) mostra-nos que a vida humana é
estruturada – com princípio, meio e fim – e narra a história, própria do indivíduo
que a vive com aventuras, venturas e desventuras, tristezas e alegrias,
facilidades e dificuldades, com todas as dicotomias próprias da vida humana.
Ao nível da
evocação da densidade denotativa, o termo “peregrinação”, o que indubitavelmente
melhor identifica o percurso da vida, permite relacionar com ela a palavra “discurso”,
de densidade conotativa, já que podemos interpretar o fluxo (sem refluxo) de tempo da vida do homem de forma algo fantasiosa,
isto é, um tanto imaginada porque tem menos força nessa identificação e pode
levar a interpretações diversas. Mas “peregrinação” tem ainda uma carga
conotativa de caminhada religiosa dando à vida o estatuto de percurso de
purificação santificante.
Ao longo de
todo o soneto está patente, como vimos, um movimento temporal, relacionado com
a vida humana – movimento que se exprime (além das expressões “de ano em ano”
e do vocábulo “peregrinação”) em
expressões como “Como se encurta”, “este meu breve”, “a idade”, “corro”, “no
meio do caminho”. Todas as expressões que significam claramente movimento nos
levam a uma interpretação no sentido de que a vida tem um início e um fim e de que
é curta – sendo que, neste caso, o fim se aproxima a passos largos, fazendo
surgir vários sintomas: “mil vezes caio, e perco a confiança” e “da vista se me
perde e da esperança”. Já não existe esperança na mente e no coração do eu
poético, depois de ele passar por tantas coisas diferentes no decorrer do
tempo.
***
Na há duvida de que
sujeito poético sente indizível desalento em relação à vida, marcado, desde
logo pela interjeição, pelas frases exclamativas, pela musicalidade nasal das aliterações
e das assonâncias e pelas tónicas em “u”. Por outro lado, a vida vem na 1.ª
quadra referida por peregrinação e
por discurso. E, como peregrinação,
alonga-se devido ao sofrimento, aos males, aos problemas, aos infortúnios – ao passo
que, enquanto decurso (a palavra discurso,
além de significar luxo, percurso, implica disfunção, corte), a vida
encurta-se, pois, o tempo que resta para a refazer dos erros e infortúnios se
torna cada vez mais escasso. O tempo faz com que a vida se aproxime do fim. Ao
fim e ao cabo, é ele, como Cronos, o
grande fator de avanço e sobretudo de mudança, o mais das vezes, como aqui,
para pior. Também a utilização da palavra “discurso” para significar a breve e
vã passagem do tempo, a levar à perda da confiança, sugere a referência
metaliterária: “este
meu breve e vão discurso humano” é efetivamente um percurso vital, mas também o
processo da escrita. É certo que o poeta ainda
acalentou a ideia de que a esperança pudesse, por força do regresso da energia
juvenil, vir a remediar, a emendar a sua vida e a purgá-la dos erros, mas até
esse remédio se esvaiu (2.ª quadra), embora o
emissor lírico tenha persistido e insistido na luta e na busca do bem desejado (“Corro após este bem”, v. 9; “os olhos
ergo”, v. 13).
***
Mais analiticamente:
O poema pertence à forma fixa “soneto” (2 quadras e 2 tercetos), é lírico e os seus 14 versos são decassílabos heroicos (acento rítmico nas 6.ª e 10.ª sílabas métricas): por exemplo, “Oh!| Co|mo| se|
me a|lon|ga,| de a|no em| a|no”. O esquema rimático:
abba / abba / cdc / cdc. A rima é interpolada (a__a) e emparelhada (bb) nas
quadras e cruzada nos tercetos.
O poema pode
dividir-se em duas partes lógicas ou ser marcado por dois momentos: dum lado as
quadras, com as frases exclamativas (1.ª quadra) e declarativas, na 2.ª quadra, organizadas
predominantemente em parataxe; do outro, os tercetos, com a manifestação das
ações e desilusões do eu lírico. No 1.º momento – iniciado com “Oh!
como se me alonga, de ano em ano, /a peregrinação cansada minha!” – o poeta
sente o cansaço de viver em busca da felicidade. Mas, apesar de ter cada vez
menos esperança de encontrar o que busca, lamenta que o fim da vida se aproxime.
O que é deveras doloroso é a frustração de ter lutado por algo que não alcançou
e sentir que toda a sua vida foi em vão. No
2.º momento – iniciado em “Corro após
este bem que não se alcança”, continuado em “no meio do caminho me
falece, /mil vezes caio, e perco a confiança” e complementado pelo 2.º
terceto – o poeta dá conta de que a sua vida consiste numa busca incessante da
felicidade e da esperança, que se perdem e cuja perda cria a desilusão e o
desencanto. Nas quadras, o balanço do eu realiza-se de forma densa,
revelando pesado desânimo e pessimismo em relação à vida. Nos tercetos, o ritmo
é rápido, concretizado com vocábulos com menor número de sílabas e de sentido
dinâmico. Contudo, o último verso “Da
vista se me perde e da esperança” recupera a lentidão rítmica inicial com a
palavra “esperança, pois que a sua conotação positiva é anulada pela forma
verbal “perde”.
***
Como tema,
pode indicar-se: o confessional balanço da vida sintetizado na “desilusão de
viver”, materializada pelo desconcerto pessoal no decurso da passagem do tempo
e na perda da confiança, apesar de o poeta insistentemente correr pela
felicidade que lhe foge, mas, porque ele cai e tarda, ela se esvai. É a
reflexão da vida que suscita no poeta sentimentos contraditórios: o cansaço de viver
e pena de caminhar para o fim; e, ao mesmo tempo, a contraditória lamentação
pelo prolongamento e pela brevidade da vida. Passa o tempo, as mágoas crescem e
desvanecem-se as últimas esperanças.
Como assunto,
pode verificar-se a abordagem da esperança que o sujeito poético teve ao longo
da sua vida e as respetivas consequências:
“Corro após
este bem que não se alcança; /No meio do caminho me falece, /Mil vezes caio, e
perco a confiança. /Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança, /Se os olhos
ergo a ver se inda parece, /Da vista se me perde e da esperança”.
Temos aqui o
sentido trágico da vida. Com efeito,
os poetas maneiristas (de entre eles Camões), confrontados com a crise generalizada que se abate sobre o homem e sobre
a sociedade pós-renascentista, passam a integrar obsessivamente o sentimento
trágico da vida, a postura melancólica e saturniana e a contemplação da morte.
Esta postura existencial, subjacente à lírica maneirista, tem larga conexão com
a convicção dos poetas acerca da predestinação do homem para a dor e sofrimento,
para uma vida transitória e infeliz, que apenas serve como doloroso hiato entre
o berço e a tumba. Transcorrida toda ela em dores e agonias, a vida só os
presenteia com tormentos físicos, morais e espirituais. Daí, o lamentoso canto
camoniano, em que o eu tece reflexões sobre a sua dolorosa trajetória existencial.
No soneto, é nítido o sentimento trágico da vida, tipicamente maneirista, como peregrinação
do poeta pelo mundo, em que o fim da vida se vem aproximando, trazendo-lhe a
sensação de ter vivido inutilmente. Regida pela ditadura tirânica de Cronos, que a todos e a tudo metamorfoseia
e destrói em seu fluir contínuo, a vida é encarada pelo poeta como uma vã e
espinhosa via crucis. É uma caminhada
neste mundo de enganos e vale de lágrimas, sempre à espera da esperança que
nunca chega. Com o passar dos anos, vem o cansaço, cresce o desgosto; e o poeta
perde a esperança, chegando à velhice despojado da confiança e perdido.
***
Toda a sorte
vital do poeta é marcada pela já aludida musicalidade das assonâncias e das
aliterações de pendor nasal, mas também pelo uso de vocabulário de conotação negativista
(o complexo
verbal “vai-se gastando”; os verbos “caio”, “perco”, “perde”, “tardo”, “falece”;
os nomes “fim”, “tardança”; os adjetivos “breve”, “vão”; o quantificador
numeral “mil”; …) e por
outros recursos estilísticos, como a antítese quase paradoxal em alonga /encurta, gastar /crescer, idade/dano,
ele/eu, foge/tardo, (a)parece/perde; a adjetivação expressiva, concretizada
pela duplicação (“breve e vão”), pela
anteposição do adjetivo ao nome (“grande engano”), pela repetida utilização do mesmo adjetivo (“grande
esperança”,
“grande engano”); a hipérbole
(“mil vezes
caio” – vida cheia de obstáculos, dificuldades que o “eu”, persistentemente,
tenta ultrapassar/vencer); a metáfora
(“no meio do
caminho” – percurso de vida); a
perífrase (“vai-se gastando”; “este meu breve e vão discurso humano”); e a alteração da ordem das palavras pela anástrofe
(por exemplo “minha”,
determinante possessivo posposto ao nome “peregrinação”).
***
Enfim, este soneto é um notável balanço da vida do poeta que, amaldiçoando o dia em que nasceu – “que
deitou ao Mundo a vida mais desgraçada que jamais se viu” – morreu pobre, doente, sem amigos e com a
Pátria decrépita, mas encarou a vida até ao fim!
2016.06.16 – Louro de carvalho
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