sexta-feira, 17 de junho de 2016

O soneto de Camões “Oh! como se me alonga, de ano em ano”

Saiu na prova de Português (639) deste ano de 2016, 1.ª fase; e esta circunstância deixou-me com a tentação de aprofundar a sua análise, dado que a solicitada para o soneto tinha de ser naturalmente limitada, dado vir em contexto de prova e conexo com o trecho do drama épico de Sttau Monteiro. Todavia, tal conexão justifica-se perfeitamente, uma vez que ambos os textos são marcados pela antítese quase paradoxal que a vida nos oferece em dose reforçada de injustiça por culpa do homem ou por capricho do destino.
Em “Felizmente Há Luar!”, as antíteses expressam a oposição entre os valores supostamente ensinados aos filhos (valentia, justiça, lealdade) e a realidade político-social, na qual vinga quem é cobarde, injusto e desleal, evidenciando-se a hipocrisia instalada na sociedade, que aparenta defender os valores axiais, mas promove quem não os pratica. Em Camões, a antítese perfila-se entre o tempo que dura e a vida que fenece. Se, em “Felizmente Há Luar!”, Matilde de Melo, a cúmplice íntima do protagonista, passa dum estado de espírito marcado pela revolta face à sociedade para um estado de espírito nostálgico e fantasioso, em que afloram as lembranças dos dias felizes e dos sonhos que partilharam, em Camões, o estado de espírito do poeta é de desilusão e perda de esperança ante as agruras da vida, embora sem excluir a maldade e a cobardia dos homens.
E, passando o general Gomes Freire por uma grave situação de injustiça, Matilde acusa a terra onde vive por ela proteger e beneficiar os mesquinhos, insignificantes e cobardes – que não passam de “arbustos” – à custa da aniquilação dos melhores, mais dignos e justos, como é o caso de Gomes Freire, metaforizado em “as árvores”. No caso do poeta lírico, a culpa da desilusão, sem deixar de ser a terra, recai sobretudo na vida e na fraqueza do homem ou, se quisermos no tempo que flui e desgasta.
Não posso deixar de sublinhar que o exame incidiu sobre aspetos pertinentes do poema: os efeitos da passagem do tempo na vida do emissor lírico, evocados nas quadras; e a sugestão que o verso 8 sugere, para o sujeito poético, de que toda a esperança acaba por se revelar ilusória. Quanto ao primeiro aspeto, o sujeito entende o decurso dos anos como uma longa experiência cada vez mais penosa; assume a consciência da aproximação do termo dos seus dias; avalia negativamente a sua existência apoiado na experiência; toma consciência da progressiva perda da qualidade de vida; e encara toda a esperança e cada uma das esperanças como mera ilusão.
Mas leiamos:
Oh! como se me alonga, de ano em ano,
a peregrinação cansada minha!
Como se encurta e como ao fim caminha
este meu breve e vão discurso humano!

Vai-se gastando a idade e cresce o dano;
perde-se-me um remédio, que inda tinha;
se por experiência se adivinha,
qualquer grande esperança é grande engano.

Corro após este bem que não se alcança;
no meio do caminho me falece,
mil vezes caio, e perco a confiança.

Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança,
se os olhos ergo a ver se inda parece,
da vista se me perde e da esperança.

        Luís de Camões, Rimas, ed. de Álvaro J. da Costa
        Pimpão, Coimbra, Almedina, 2005, p. 129
Vocabulário: “peregrinação” – percurso; “vão”: inútil; “discurso humano”: passagem pela vida; “dano”: mal, sofrimento; “se por experiência se adivinha”: se a experiência permite prever o futuro; “bem”: felicidade; “falece”: falta; “parece”: aparece.
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Nesta composição, Camões utiliza expressões de tempo para ilustrar o decurso temporal da vida humana. Assim, no 1.º verso, encontramos “de ano em ano”, com a ideia de movimento, pois a vida vive-se também ela de ano em ano; já no segundo verso, o poeta alonga-se um pouco mais no tempo e utiliza o termo “peregrinação” – identificador de percurso, o percurso da vida, vida que segue um caminho; no 4.º e último verso da 1.ª estrofe (quadra), a utilização da palavra “discurso” (por “decurso”) mostra-nos que a vida humana é estruturada – com princípio, meio e fim – e narra a história, própria do indivíduo que a vive com aventuras, venturas e desventuras, tristezas e alegrias, facilidades e dificuldades, com todas as dicotomias próprias da vida humana.
Ao nível da evocação da densidade denotativa, o termo “peregrinação”, o que indubitavelmente melhor identifica o percurso da vida, permite relacionar com ela a palavra “discurso”, de densidade conotativa, já que podemos interpretar o fluxo (sem refluxo) de tempo da vida do homem de forma algo fantasiosa, isto é, um tanto imaginada porque tem menos força nessa identificação e pode levar a interpretações diversas. Mas “peregrinação” tem ainda uma carga conotativa de caminhada religiosa dando à vida o estatuto de percurso de purificação santificante.
Ao longo de todo o soneto está patente, como vimos, um movimento temporal, relacionado com a vida humana – movimento que se exprime (além das expressões “de ano em ano” e do vocábulo “peregrinação”) em expressões como “Como se encurta”, “este meu breve”, “a idade”, “corro”, “no meio do caminho”. Todas as expressões que significam claramente movimento nos levam a uma interpretação no sentido de que a vida tem um início e um fim e de que é curta – sendo que, neste caso, o fim se aproxima a passos largos, fazendo surgir vários sintomas: “mil vezes caio, e perco a confiança” e “da vista se me perde e da esperança”. Já não existe esperança na mente e no coração do eu poético, depois de ele passar por tantas coisas diferentes no decorrer do tempo.
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Na há duvida de que sujeito poético sente indizível desalento em relação à vida, marcado, desde logo pela interjeição, pelas frases exclamativas, pela musicalidade nasal das aliterações e das assonâncias e pelas tónicas em “u”. Por outro lado, a vida vem na 1.ª quadra referida por peregrinação e por discurso. E, como peregrinação, alonga-se devido ao sofrimento, aos males, aos problemas, aos infortúnios – ao passo que, enquanto decurso (a palavra discurso, além de significar luxo, percurso, implica disfunção, corte), a vida encurta-se, pois, o tempo que resta para a refazer dos erros e infortúnios se torna cada vez mais escasso. O tempo faz com que a vida se aproxime do fim. Ao fim e ao cabo, é ele, como Cronos, o grande fator de avanço e sobretudo de mudança, o mais das vezes, como aqui, para pior. Também a utilização da palavra “discurso” para significar a breve e vã passagem do tempo, a levar à perda da confiança, sugere a referência metaliterária: “este meu breve e vão discurso humano” é efetivamente um percurso vital, mas também o processo da escrita. É certo que o poeta ainda acalentou a ideia de que a esperança pudesse, por força do regresso da energia juvenil, vir a remediar, a emendar a sua vida e a purgá-la dos erros, mas até esse remédio se esvaiu (2.ª quadra), embora o emissor lírico tenha persistido e insistido na luta e na busca do bem desejado (Corro após este bem”, v. 9; “os olhos ergo”, v. 13).
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Mais analiticamente:
O poema pertence à forma fixa “soneto” (2 quadras e 2 tercetos), é lírico e os seus 14 versos são decassílabos heroicos (acento rítmico nas 6.ª e 10.ª sílabas métricas): por exemplo, Oh!| Co|mo| se| me a|lon|ga,| de a|no em| a|no. O esquema rimático: abba / abba / cdc / cdc. A rima é interpolada (a__a) e emparelhada (bb) nas quadras e cruzada nos tercetos.
O poema pode dividir-se em duas partes lógicas ou ser marcado por dois momentos: dum lado as quadras, com as frases exclamativas (1.ª quadra) e declarativas, na 2.ª quadra, organizadas predominantemente em parataxe; do outro, os tercetos, com a manifestação das ações e desilusões do eu lírico. No 1.º momento – iniciado com “Oh! como se me alonga, de ano em ano, /a peregrinação cansada minha!” – o poeta sente o cansaço de viver em busca da felicidade. Mas, apesar de ter cada vez menos esperança de encontrar o que busca, lamenta que o fim da vida se aproxime. O que é deveras doloroso é a frustração de ter lutado por algo que não alcançou e sentir que toda a sua vida foi em vão. No 2.º momento – iniciado em “Corro após este bem que não se alcança”, continuado em no meio do caminho me falece, /mil vezes caio, e perco a confiança” e complementado pelo 2.º terceto – o poeta dá conta de que a sua vida consiste numa busca incessante da felicidade e da esperança, que se perdem e cuja perda cria a desilusão e o desencanto. Nas quadras, o balanço do eu realiza-se de forma densa, revelando pesado desânimo e pessimismo em relação à vida. Nos tercetos, o ritmo é rápido, concretizado com vocábulos com menor número de sílabas e de sentido dinâmico. Contudo, o último verso “Da vista se me perde e da esperança” recupera a lentidão rítmica inicial com a palavra “esperança, pois que a sua conotação positiva é anulada pela forma verbal “perde”.
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Como tema, pode indicar-se: o confessional balanço da vida sintetizado na “desilusão de viver”, materializada pelo desconcerto pessoal no decurso da passagem do tempo e na perda da confiança, apesar de o poeta insistentemente correr pela felicidade que lhe foge, mas, porque ele cai e tarda, ela se esvai. É a reflexão da vida que suscita no poeta sentimentos contraditórios: o cansaço de viver e pena de caminhar para o fim; e, ao mesmo tempo, a contraditória lamentação pelo prolongamento e pela brevidade da vida. Passa o tempo, as mágoas crescem e desvanecem-se as últimas esperanças.
Como assunto, pode verificar-se a abordagem da esperança que o sujeito poético teve ao longo da sua vida e as respetivas consequências:
“Corro após este bem que não se alcança; /No meio do caminho me falece, /Mil vezes caio, e perco a confiança. /Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança, /Se os olhos ergo a ver se inda parece, /Da vista se me perde e da esperança”.
Temos aqui o sentido trágico da vida. Com efeito, os poetas maneiristas (de entre eles Camões), confrontados com a crise generalizada que se abate sobre o homem e sobre a sociedade pós-renascentista, passam a integrar obsessivamente o sentimento trágico da vida, a postura melancólica e saturniana e a contemplação da morte. Esta postura existencial, subjacente à lírica maneirista, tem larga conexão com a convicção dos poetas acerca da predestinação do homem para a dor e sofrimento, para uma vida transitória e infeliz, que apenas serve como doloroso hiato entre o berço e a tumba. Transcorrida toda ela em dores e agonias, a vida só os presenteia com tormentos físicos, morais e espirituais. Daí, o lamentoso canto camoniano, em que o eu tece reflexões sobre a sua dolorosa trajetória existencial. No soneto, é nítido o sentimento trágico da vida, tipicamente maneirista, como peregrinação do poeta pelo mundo, em que o fim da vida se vem aproximando, trazendo-lhe a sensação de ter vivido inutilmente. Regida pela ditadura tirânica de Cronos, que a todos e a tudo metamorfoseia e destrói em seu fluir contínuo, a vida é encarada pelo poeta como uma vã e espinhosa via crucis. É uma caminhada neste mundo de enganos e vale de lágrimas, sempre à espera da esperança que nunca chega. Com o passar dos anos, vem o cansaço, cresce o desgosto; e o poeta perde a esperança, chegando à velhice despojado da confiança e perdido.
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Toda a sorte vital do poeta é marcada pela já aludida musicalidade das assonâncias e das aliterações de pendor nasal, mas também pelo uso de vocabulário de conotação negativista (o complexo verbal “vai-se gastando”; os verbos “caio”, “perco”, “perde”, “tardo”, “falece”; os nomes “fim”, “tardança”; os adjetivos “breve”, “vão”; o quantificador numeral “mil”; …) e por outros recursos estilísticos, como a antítese quase paradoxal em alonga /encurta, gastar /crescer, idade/dano, ele/eu, foge/tardo, (a)parece/perde; a adjetivação expressiva, concretizada pela duplicação (“breve e vão”), pela anteposição do adjetivo ao nome (grande engano”), pela repetida utilização do mesmo adjetivo (“grande esperança”, “grande engano”); a hipérbole (“mil vezes caio” – vida cheia de obstáculos, dificuldades que o “eu”, persistentemente, tenta ultrapassar/vencer); a metáfora (“no meio do caminho” – percurso de vida); a perífrase (“vai-se gastando”; “este meu breve e vão discurso humano”); e a alteração da ordem das palavras pela anástrofe (por exemplo “minha”, determinante possessivo posposto ao nome “peregrinação”).
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Enfim, este soneto é um notável balanço da vida do poeta que, amaldiçoando o dia em que nasceu – “que 
deitou ao Mundo a vida mais desgraçada que jamais se viu” – morreu pobre, doente, sem amigos e com a 
Pátria decrépita, mas encarou a vida até ao fim!

2016.06.16 – Louro de carvalho

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