domingo, 19 de junho de 2016

O direito à doutrina e o respeito pela liberdade de pensar diferente

A edição de ontem, 18 de junho, do diário online “Zenit – o mundo visto de Roma” dá conta de dois movimentos de cidadania recentemente surgidos em Espanha em torno do cardeal Cañizares, arcebispo de Valencia. Uns, ditos mais à esquerda, querem censurá-lo e levá-lo à prisão; outros estão a lançar, através da plataforma CitizenGo, uma campanha internacional de recolha de assinaturas em defesa do purpurado.
Com efeito, no passado dia 13 de maio, o prelado denunciou, na sua homilia, aquilo que entende por legislações “contrárias à família” e ação concertada de “forças políticas e sociais” que supostamente marcham nesse sentido, especificando três epifenómenos: o império gay, o feminismo radical e a ideologia de género. Sustenta o cardeal que “a situação é tão grave” e de “consequências tão graves para o futuro da sociedade”, que hoje é possível considerar a “estabilidade do matrimónio e da família – bem como o seu apoio e o reconhecimento público – como o primeiro problema social e de atenção aos mais débeis e às periferias existenciais”.
Depois, a 29 do mesmo mês, citando Bento XVI, apelou a que as pessoas não se submetessem a uma ideologia anti-humana ou ao que designou “a última rebelião do homem contra Deus”, insistindo na índole “insidiosa e destrutiva” da ideologia de género, que “os poderes globalistas querem impor por meio de legislações iníquas”, que não devem, na sua ótica, ser obedecidas.
E, enquanto reconheceu “a legítima autonomia da esfera temporal”, advertiu que não podemos submeter-nos a uma mentalidade inspirada no laicismo, incluindo a ideologia de género, caindo gradualmente, de forma mais ou menos consciente, na restrição da liberdade religiosa.
Se o cardeal for condenado pela corte local, poderá ser punido com a pena de prisão até três anos, apenas por ter apontado a falsidade duma ideologia que é apresentada como teoria e denunciado a incoerência dos seus proponentes.
O mencionado diário alerta para a possibilidade de se, o prelado for condenado ou se a sua reputação e integridade física ficarem em risco, o episódio poder replicar-se em outros países. Por outro lado, estranha como “aqueles que tanto falam em tolerância e respeito agora querem criminalizar as palavras do cardeal”.  
Como não podia deixar de ser, o caso merece-me pertinente comentário.
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A homossexualidade foi entendida pelos moralistas como pecado grave em razão da matéria, foi condenada e perseguida pelos Estados e pela Igreja. Depois, passou a ser tolerada e está na iminência de se impor como norma. Por isso, há que ajustar as coisas na sua real medida.  
Foi mal perseguir os homossexuais (masculinos ou femininos), degredando-os ou matando-os? Foi. Havia o direito de os considerar pervertidos ou invertidos? Não. É justo considerá-los doentes? Não sei; queria que os cientistas se pronunciassem. É pecado sentir uma tendência homossexual? Não. É pecado praticar atos homossexuais? Os moralistas dirão que sim, como dirão que o será a prática de atos sexuais a nível individual ou a prática heterossexual em determinados contextos (por exemplo, extramatrimoniais). Mas, para haver pecado grave, são precisas três condições em simultâneo: matéria grave, perfeito conhecimento e advertência e pleno consentimento (se faltar uma, já não há pecado)! A prática homossexual é crime? Não, a menos que seja praticada de forma violenta ou envolva menores – tal como a prática heterossexual e, em sua medida, a falta de pudor ou a importunação.
A Igreja Católica admite o casamento ou mesmo a união de facto de pessoas do mesmo sexo? Evidentemente que não. E tem o direito de defender e ensinar a doutrina fundada nas suas convicções, como deve respeitar ao menos pedagogicamente quem sustenta posições contrárias. Cabe aos Estados dirimir estas questões? É discutível. No entanto há que ter em conta a autonomia das realidades terrenas e que os Estados, embora respeitando os direitos das minorias, não imponham como norma de vida nem privilegiem determinadas opções. Ou seja, os homossexuais têm direito ao respeito, mas não o de se imporem, passada que esteja a fase de conquista de direitos, ou de se exibirem publicamente de forma ostensiva e provocante.  
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Quanto ao feminismo, é de reconhecer a legitimidade e a necessidade da luta que as mulheres desenvolveram ao longo da história pelas suas conquistas pessoais, sociais, profissionais e políticas. Praticamente hoje não há profissão ou ramo de atividade que lhes seja vedado. Porém, não basta a lei, mas, em vez da agressiva insistência em conseguir determinados postos-chave na liderança, devem mobilizar-se e suscitar a mobilização de todos para o ataque à discriminação no trabalho, família, profissão e sociedade. Por outro lado, há ainda muito a fazer para que a mulher ascenda sem surpresa ou estupefação a cargos cimeiros na gestão empresarial, associativa e política. E não se vai lá com as quotas ou por decreto, mas por mérito, por mudança de mentalidades e por harmonização do regime de trabalho com a vida familiar.
E não vamos lá com a pretensa igualdade biológica ou psíquica nem destruindo ou minimizando os símbolos da feminilidade ou mesmo tomando, no feminino, atitudes verdadeiramente machistas. Também não vale continuar-se o apoucamento das mulheres quando conseguem visibilidade notória, como ainda acontece tantas vezes em Portugal (por exemplo, nos casos das últimas eleições legislativas e das presidenciais).
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Mais grave é, do meu ponto de vista, a questão da ideologia de género, ou melhor, da ideologia da ausência de sexo. De acordo com esta teoria, os dois sexos – masculino e feminino – são construções culturais e sociais e, por isso, os chamados papéis de género (que incluem a maternidade, na mulher) decorrem das diferenças de sexos “construídas” social e culturalmente.  
Por exemplo, a feminista Gloria Steinem queixa-se da falsa divisão da natureza humana em feminino e em masculino. E a escritora francesa Simone Beuavoir considerou a gravidez como limitadora da autonomia feminina”, porque, alegadamente, a gravidez cria laços biológicos entre a mulher e as crianças, e por isso, cria um papel de género.
Segundo esta teoria, não existe apenas a mulher e o homem, mas também “outros géneros”; e “qualquer pessoa pode escolher um desses outros géneros” ou mesmo alguns desses “outros géneros” em simultâneo.
Porém, a socióloga alemã Gabriele Kuby, contrariando, considera:
“A ideologia de género é a mais radical rebelião contra Deus que é possível: o ser humano não aceita que é criado homem e mulher, e por isso diz: ‘Eu decido! Esta é a minha liberdade! – contra a experiência, contra a Natureza, contra a Razão, contra a ciência! É a perversão final do individualismo: rouba ao ser humano o que lhe resta da sua identidade, ou seja, o de ser homem ou mulher, depois de se ter perdido a fé, a família e a nação. É uma ideologia diabólica: embora toda a gente tenha uma noção intuitiva de que se trata de uma mentira, a ideologia de género pode capturar o senso comum e tornar-se numa ideologia dominante do nosso tempo.”.
Também o articulista do Zenit diz que esta ideologia não possui nenhuma confirmação científica. Sendo assim, as divisões conceituais de orientação sexual, género, etc., que às vezes circulam nas redes sociais, são artifícios retóricos sem correspondente na realidade. Ademais, os seus pressupostos têm origem numa corrente filosófica autocontraditória, que nega existência das essências, mas reivindica para si uma determinada essência. (vd O.Brga, wikidot – 2016.06.19).
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A este respeito, o Papa Bento XVI, em dezembro de 2012, referiu, num discurso à cúria romana, que o uso do termo “género” pressupõe uma “nova filosofia da sexualidade”:
“De acordo com esta filosofia, o sexo já não é considerado um elemento dado pela Natureza e que o ser humano deve aceitar e estabelecer um sentido pessoal para a sua vida. Em vez disso, o sexo é considerado pela ideologia de género como um papel social escolhido pelo indivíduo. […]. A profunda falsidade desta teoria e a tentativa de uma revolução antropológica que ela contém, são óbvias. As pessoas colocam em causa a ideia segundo a qual têm uma natureza que lhes é dada pela identidade corporal que serve como um elemento definidor do ser humano. Elas negam a sua natureza e decidem que não é algo que lhes foi previamente dado, mas antes que é algo que elas próprias podem construir.”.
Na esteira da ideia bíblica da criação, a essência da criatura humana é ter sido criada “homem e mulher”. Esta dualidade, que é um aspeto essencial do que é o ser humano, como definido por Deus e entendido como algo previamente dado, está a ser agora colocado em causa.
Por seu turno, Francisco – o Pontífice tão aplaudido, mas pouco escutado – tem condenado recorrentemente a ideologia de género, embora respeite as posições adversas. Assim, por exemplo, a 15 de abril de 2015, na sua catequese semanal, mostrou que o avanço dessa ideologia é um sério problema, não somente para os cristãos:
“Pergunto-me, por exemplo, se a chamada teoria do género não é expressão de uma frustração e resignação, com a finalidade de cancelar a diferença sexual por não saber mais como lidar com ela. Neste caso, corremos o risco de retroceder”.  
E advertiu que a difusão de tal ideologia implica a tentativa de cancelar as diferenças naturais entre homens e mulheres, para reconhecer apenas as inclinações sexuais de cada um como definidoras da sua própria identidade sexual. Mas o Papa avisa:
“A eliminação da diferença, com efeito, é um problema, não uma solução. Para resolver os seus problemas de relação, o homem e a mulher devem dialogar mais, escutando-se, conhecendo-se e amando-se mais”.
Francisco outra coisa não faz que reafirmar a doutrina da Igreja Católica. O CIC (Catecismo da Igreja Católica) reconhece que há pessoas com tendências homossexuais e que devem ser acolhidas e respeitadas, mas que esta tendência é “objetivamente desordenada” e “atenta contra a castidade” (CIC, § 2357 e seguintes). Reiterando que as pessoas humanas são, em si mesmas, homens e mulheres, o CIC vai no sentido de que tais tendências desordenadas não podem substituir a sexualidade natural, querida e criada por Deus, o que, aliás, desordena as famílias e destrói a castidade, que é o convite feito pelo CIC a todos os cristãos.
Por outro lado, a declaração do Papa Francisco, estribada no livro do Génesis, que afirma expressamente que Deus “criou o ser humano à sua imagem: criou-os homem e mulher” (Gn 1,27) não pode ser considerada crime em tempo algum ou em lugar algum. Mais: “a diferença sexual está presente em muitas formas de vida. Não só o homem e nem só a mulher são imagem de Deus, mas ambos, como casal, são imagem de Deus Criador”.
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Enfim, o que é de condenar é a homofobia e também a discriminação por via da orientação sexual, ideológica, religiosa, filosófica estética e política. Porém, não podem ser condenados os que avisam sobre a falaciosidade de algumas teorias pretensamente científicas e defendem as suas doutrinas com o necessário respeito pelas posições contrárias. E, se a Lei os importuna, deve-lhes ser reconhecido o deito à objeção de consciência. Direito ao direito!

2016.06.19 – Louro de Carvalho

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