A edição de ontem, 18 de junho, do diário online “Zenit – o mundo visto de Roma” dá conta de dois movimentos de
cidadania recentemente surgidos em Espanha em torno do cardeal Cañizares, arcebispo de Valencia. Uns, ditos mais
à esquerda, querem censurá-lo e levá-lo à prisão; outros estão a lançar, através
da plataforma CitizenGo, uma campanha
internacional de recolha de assinaturas em defesa do purpurado.
Com
efeito, no passado dia 13 de maio, o prelado denunciou, na sua homilia, aquilo
que entende por legislações “contrárias à família” e ação concertada de “forças políticas e sociais”
que supostamente marcham nesse sentido, especificando três epifenómenos: o império
gay, o feminismo
radical e a
ideologia de género. Sustenta o cardeal que “a
situação é tão grave” e de “consequências tão graves para o futuro da sociedade”,
que hoje é possível considerar a “estabilidade do matrimónio e da família – bem
como o seu apoio e o reconhecimento público – como o primeiro problema social e
de atenção aos mais débeis e às periferias existenciais”.
Depois,
a 29 do mesmo mês, citando Bento XVI, apelou a que as pessoas não se submetessem
a uma ideologia anti-humana ou ao que designou “a última rebelião do homem
contra Deus”, insistindo na índole “insidiosa e destrutiva” da
ideologia de género, que “os poderes globalistas querem impor por meio
de legislações iníquas”, que
não devem, na sua ótica, ser obedecidas.
E,
enquanto reconheceu “a legítima autonomia da esfera temporal”, advertiu que não
podemos submeter-nos a uma mentalidade inspirada no
laicismo, incluindo a ideologia de género, caindo gradualmente, de forma mais ou menos
consciente, na restrição
da liberdade religiosa.
Se
o cardeal for condenado pela corte local, poderá ser punido com a pena de prisão até três anos, apenas por ter apontado a
falsidade duma ideologia que é apresentada como teoria e denunciado a incoerência
dos seus proponentes.
O mencionado diário
alerta para a possibilidade de se, o prelado for condenado ou se a sua
reputação e integridade física ficarem em risco, o episódio poder replicar-se em outros países. Por outro lado,
estranha como “aqueles que tanto falam em tolerância e respeito agora querem criminalizar
as palavras do cardeal”.
Como
não podia deixar de ser, o caso merece-me pertinente comentário.
***
A
homossexualidade foi entendida pelos moralistas como pecado grave em razão da matéria,
foi condenada e perseguida pelos Estados e pela Igreja. Depois, passou a ser
tolerada e está na iminência de se impor como norma. Por isso, há que ajustar
as coisas na sua real medida.
Foi
mal perseguir os homossexuais (masculinos ou femininos), degredando-os ou matando-os? Foi. Havia o direito
de os considerar pervertidos ou invertidos? Não. É justo considerá-los doentes?
Não sei; queria que os cientistas se pronunciassem. É pecado sentir uma tendência
homossexual? Não. É pecado praticar atos homossexuais? Os moralistas dirão que
sim, como dirão que o será a prática de atos sexuais a nível individual ou a
prática heterossexual em determinados contextos (por exemplo, extramatrimoniais). Mas, para haver
pecado grave, são precisas três condições em simultâneo: matéria grave, perfeito
conhecimento e advertência e pleno consentimento (se faltar uma, já não
há pecado)!
A prática homossexual é crime? Não, a menos que seja praticada de forma violenta
ou envolva menores – tal como a prática heterossexual e, em sua medida, a falta
de pudor ou a importunação.
A
Igreja Católica admite o casamento ou mesmo a união de facto de pessoas do
mesmo sexo? Evidentemente que não. E tem o direito de defender e ensinar a
doutrina fundada nas suas convicções, como deve respeitar ao menos pedagogicamente
quem sustenta posições contrárias. Cabe aos Estados dirimir estas questões? É discutível.
No entanto há que ter em conta a autonomia das realidades terrenas e que os
Estados, embora respeitando os direitos das minorias, não imponham como norma
de vida nem privilegiem determinadas opções. Ou seja, os homossexuais têm direito
ao respeito, mas não o de se imporem, passada que esteja a fase de conquista de
direitos, ou de se exibirem publicamente de forma ostensiva e provocante.
***
Quanto
ao feminismo, é de reconhecer a legitimidade e a necessidade da luta que as mulheres
desenvolveram ao longo da história pelas suas conquistas pessoais, sociais,
profissionais e políticas. Praticamente hoje não há profissão ou ramo de
atividade que lhes seja vedado. Porém, não basta a lei, mas, em vez da
agressiva insistência em conseguir determinados postos-chave na liderança,
devem mobilizar-se e suscitar a mobilização de todos para o ataque à
discriminação no trabalho, família, profissão e sociedade. Por outro lado, há
ainda muito a fazer para que a mulher ascenda sem surpresa ou estupefação a
cargos cimeiros na gestão empresarial, associativa e política. E não se vai lá
com as quotas ou por decreto, mas por mérito, por mudança de mentalidades e por
harmonização do regime de trabalho com a vida familiar.
E
não vamos lá com a pretensa igualdade biológica ou psíquica nem destruindo ou
minimizando os símbolos da feminilidade ou mesmo tomando, no feminino, atitudes
verdadeiramente machistas. Também não vale continuar-se o apoucamento das
mulheres quando conseguem visibilidade notória, como ainda acontece tantas
vezes em Portugal (por exemplo, nos casos das últimas eleições legislativas e das
presidenciais).
***
Mais
grave é, do meu ponto de vista, a questão da ideologia de género, ou
melhor, da ideologia da ausência de sexo. De acordo com esta
teoria, os dois sexos – masculino e feminino – são construções culturais e
sociais e, por isso, os chamados “papéis de género” (que incluem a
maternidade, na mulher) decorrem das diferenças de sexos “construídas” social e culturalmente.
Por
exemplo, a feminista Gloria Steinem queixa-se da “falsa divisão da natureza humana em feminino e em masculino”. E a escritora francesa Simone Beuavoir considerou a gravidez como “limitadora da autonomia feminina”, porque, alegadamente, “a gravidez cria laços biológicos entre a
mulher e as crianças, e por isso, cria um papel de género”.
Segundo
esta teoria, não existe apenas a mulher e o homem, mas também “outros géneros”;
e “qualquer pessoa pode escolher um desses outros géneros” ou mesmo alguns
desses “outros géneros” em simultâneo.
Porém,
a socióloga alemã Gabriele Kuby, contrariando, considera:
“A ideologia de género é
a mais radical rebelião contra Deus que é possível: o ser humano não aceita que
é criado homem e mulher, e por isso diz: ‘Eu
decido! Esta é a minha liberdade!’ – contra a experiência, contra a Natureza, contra a
Razão, contra a ciência! É a perversão final do individualismo: rouba ao ser
humano o que lhe resta da sua identidade, ou seja, o de ser homem ou mulher,
depois de se ter perdido a fé, a família e a nação. É uma ideologia diabólica:
embora toda a gente tenha uma noção intuitiva de que se trata de uma mentira, a
ideologia de género pode capturar o senso comum e tornar-se numa ideologia
dominante do nosso tempo.”.
Também
o articulista do Zenit diz que esta ideologia não possui nenhuma confirmação
científica. Sendo assim, as divisões conceituais de orientação sexual, género,
etc., que às vezes circulam nas redes sociais, são artifícios retóricos sem correspondente
na realidade. Ademais, os seus pressupostos têm origem numa corrente filosófica
autocontraditória, que nega existência das essências, mas reivindica para si
uma determinada essência. (vd O.Brga, wikidot – 2016.06.19).
***
A
este respeito, o Papa Bento XVI, em dezembro de 2012, referiu, num discurso à
cúria romana, que o uso do termo “género” pressupõe uma “nova filosofia da
sexualidade”:
“De acordo com esta
filosofia, o sexo já não é considerado um elemento dado pela Natureza e que o
ser humano deve aceitar e estabelecer um sentido pessoal para a sua vida. Em
vez disso, o sexo é considerado pela ideologia de género como um papel social
escolhido pelo indivíduo. […]. A profunda falsidade desta teoria e a tentativa
de uma revolução antropológica que ela contém, são óbvias. As pessoas colocam
em causa a ideia segundo a qual têm uma natureza que lhes é dada pela
identidade corporal que serve como um elemento definidor do ser humano. Elas negam
a sua natureza e decidem que não é algo que lhes foi previamente dado, mas
antes que é algo que elas próprias podem construir.”.
Na
esteira da ideia bíblica da criação, a essência da criatura humana é ter sido
criada “homem e mulher”. Esta dualidade, que é um aspeto essencial do que é o
ser humano, como definido por Deus e entendido como algo previamente dado, está
a ser agora colocado em causa.
Por
seu turno, Francisco – o Pontífice tão aplaudido, mas pouco escutado – tem condenado
recorrentemente a ideologia de género, embora respeite as posições adversas. Assim,
por exemplo, a 15 de abril de 2015, na sua catequese semanal, mostrou que o
avanço dessa ideologia é um sério problema, não somente para os cristãos:
“Pergunto-me, por exemplo, se a chamada teoria do género não é expressão
de uma frustração e resignação, com a finalidade de cancelar a diferença sexual
por não saber mais como lidar com ela. Neste caso, corremos o risco de
retroceder”.
E
advertiu que a difusão de tal ideologia implica a tentativa de cancelar
as diferenças naturais entre homens e mulheres, para
reconhecer apenas as inclinações sexuais de cada um como definidoras da sua
própria identidade sexual. Mas o Papa avisa:
“A eliminação da diferença, com efeito, é um problema, não uma solução.
Para resolver os seus problemas de relação, o homem e a mulher devem dialogar
mais, escutando-se, conhecendo-se e amando-se mais”.
Francisco outra coisa não faz que reafirmar a doutrina da Igreja Católica.
O CIC (Catecismo da Igreja Católica) reconhece que há pessoas com tendências homossexuais e que devem ser
acolhidas e respeitadas, mas que esta tendência é “objetivamente desordenada”
e “atenta contra a castidade” (CIC, § 2357 e
seguintes). Reiterando que as
pessoas humanas são, em si mesmas, homens e mulheres, o CIC vai no sentido de
que tais tendências desordenadas não podem substituir a sexualidade natural,
querida e criada por Deus, o que, aliás, desordena as famílias e destrói a castidade,
que é o convite feito pelo CIC a todos os cristãos.
Por outro lado, a declaração do Papa Francisco, estribada no livro do
Génesis, que afirma expressamente que Deus “criou o ser humano à sua imagem:
criou-os homem e mulher” (Gn 1,27) não pode ser considerada crime em tempo algum ou em lugar
algum. Mais: “a diferença sexual está presente em muitas
formas de vida. Não só o homem e nem só a mulher são imagem de Deus, mas ambos,
como casal, são imagem de Deus Criador”.
***
Enfim, o que é de condenar é a homofobia e também a discriminação por via
da orientação sexual, ideológica, religiosa, filosófica estética e política. Porém,
não podem ser condenados os que avisam sobre a falaciosidade de algumas teorias
pretensamente científicas e defendem as suas doutrinas com o necessário respeito
pelas posições contrárias. E, se a Lei os importuna, deve-lhes ser reconhecido
o deito à objeção de consciência. Direito ao direito!
2016.06.19 – Louro de Carvalho
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