Na solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo, a Liturgia da
Palavra da Missa do Dia (também há a missa a
vigília), parece gravitar em torno do poder das chaves. Mas é necessário ter em
conta o contexto, que é a profissão da fé de Pedro que se adiantou em relação
aos seus companheiros quando Jesus – depois de os ter questionado sobre o que
dizem por aí os outros sobre o Filho do Homem (João
Batista, Elias ou algum dos profetas – responderam eles), os
interrogou: “E vós, quem dizeis que Eu
sou?”. Pedro, como sabemos, diz sem receio: “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”.
Então, segundo este Evangelho, a entrega das chaves é a
contrapartida da fé explícita, como em João (cf
Jo 21,15ss) a entrega a Pedro da tarefa de apascentar os cordeiros e as ovelhas de
Cristo é a contrapartida do amor explícito, total e incondicional ao Senhor (até à morte). Também o poder de ligar e desligar na Terra com a
consequência de ligar/desligar no Céu (poder
das chaves) – confiado aos discípulos (cf Mt
18,18)
– é a contrapartida evangélico-eclesial da prática da correção fraterna na
comunidade/Igreja. E este poder, radicado no dom e força do Espírito Santo, que
os apóstolos recebem, implica o perdão dos pecados (cf Jo 20,19-23). Fé, amor, perdão, e Espírito Santo dão a chave do Reino.
***
“Dar-te-ei as chaves do
Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu e tudo o que
desligares na terra será desligado no Céu” (Mt
16,19).
A que tipo de chaves se refere Cristo quando promete fazer a
sua entrega a Pedro? Chave
é uma parábola-metáfora, imagem de liberdade – como a ave egípcia a levantar
voo, a cunha assíria a romper a dureza da pedra, o 3.º filho de Noé (Jafet) denominado filho do espaço e da
amplidão aberta do céu, o êxodo hebreu a fazer o povo abrir a passagem, galgar
fronteiras, marchar para a aventura do seu destino, ou o Êpheta, dirigido ao
surdo-mudo (a 1.ª palavra que ouve não é pai ou mãe, mas
“abre-te”, “liberta-te”)
– (vd
Cândido de Souza, Palavra, Parábola,
Ed. Santuário: 1990).
E
essa chave foi entregue apenas a Pedro? A leitura isolada do versículo 19 leva
a supor que a entrega foi exclusivamente feita a Pedro. Porém, tendo em conta o
capítulo 18 de Mateus os caps. 20 e 21 de João, é legítimo e salutar sentir com
Santo Agostinho:
“Não
foi apenas um homem, Pedro, que recebeu as chaves do Reino, mas a Igreja
universal. Quando Cristo disse ‘Eu te entrego as chaves’, estava a entregar as
chaves a todos” (cf id et ib; ML,38,1349).
Os
ditames evangélicos são para todos. Não pode o leitor/recetor determinar o que
não é para si. Toda a doutrina do cap. 18 de Mateus é para os discípulos, para
a Igreja: perdão, correção fraterna,
oração, tornar-se como criança, receber uma criança, etc. Não pode o
desligar e o ligar ser prerrogativa exclusiva de poucos, obviamente que Pedro
está à frente e até se adianta a perguntar, a crer, a amar, a missionar.
Ironicamente o cap. 16 de Mateus mostra Jesus a dar as chaves a Pedro (com
o direito e o poder de abrir/fechar).
Pedro é indubitavelmente o maior, o portador das chaves. Mas os discípulos vão
ser esclarecidos no cap. 18. A pergunta dos discípulos obtém como resposta: A
criança. Dela é o Reino. E a chave gerida por Pedro está ao cuidado de todos.
Deus ligará ou desligará consoante os discípulos ligarem ou desligarem. Contra
a exigência das assembleias gregas ou romanas, que vinculavam o valor das
deliberações à participação de centenas e até milhares de pessoas, para a Ecclesia de Cristo bastam dois ou três
para garantir a presença de Jesus e para Deus ratificar o que esses dois ou
três abrem ou fecham na terra. É claro que têm de estar em comunhão com Cristo,
com Pedro e com toda a Ecclesia Dei.
***
E o Papa
Francisco, na sua homilia de hoje, dia 29, dá-nos o sentido das chaves a partir
do binómio “fechamento/abertura”,
baseado na perícopa do Evangelho da Solenidade (Mt 16,13-19). Mas relaciona-a, de pronto, com as perícopas do Livros dos
Atos dos Apóstolos (At
12,1-11) e da 2.ª Carta
a Timóteo (2Tm 4,6-9.17-18), que antecedem a proclamação do
Evangelho. Assim, começando por dizer que, “nesta liturgia, a Palavra de Deus
contém um binómio central “fechamento/abertura”, relaciona com esta imagem o
símbolo das chaves que Jesus promete a Simão Pedro para que este possa “abrir às pessoas a entrada no Reino dos Céus
e não fechá-la como faziam alguns escribas e fariseus
hipócritas, que Jesus censura” (cf Mt 23,13). E, na perícopa dos Atos dos
Apóstolos (12, 1-11), Francisco vislumbra três fechamentos:
“O de Pedro na prisão; o da comunidade
reunida em oração; e – no contexto próximo da nossa perícopa – o da casa de
Maria, mãe de João chamado Marcos, a cuja porta foi bater Pedro depois de ter
sido libertado”.
E a principal via de saída dos fechamentos, segundo o Papa, é a oração. Sem ela, a comunidade
corre o risco de se fechar por via da perseguição e do medo. Pedro que, já no
início da missão que o Senhor lhe confiara, foi lançado na prisão por Herodes, correu
o risco de condenação à morte. Porem, enquanto Pedro estava na prisão, “a
Igreja orava a Deus, instantemente, por ele” (At 12,5). Obviamente, o Senhor responde com o envio do anjo
libertador.
Assim, refere
o Papa, “a oração, como humilde entrega a Deus e à sua santa vontade, é sempre
a via de saída dos nossos fechamentos pessoais e comunitários”.
Também Paulo fala a Timóteo da sua
experiência de libertação, de saída do perigo de ser condenado à morte, porque “o
Senhor esteve ao seu lado e deu-lhe força para poder levar a bom termo a sua
obra de evangelização dos gentios” (cf 2 Tm 4,17). Mas Paulo “fala duma ‘abertura’ muito maior, para
um horizonte infinitamente mais amplo: o da vida eterna, que o espera depois de
ter concluído a ‘corrida’ terrena”.
Quanto a
Pedro, a narração evangélica da sua confissão de fé e consequente entrega da
missão mostra que a vida do pescador galileu, como a vida de cada um de nós, “desabrocha
plenamente quando acolhe, de Deus Pai, a graça da fé”. E Pedro enceta o “caminho
longo e duro” – que o faz “sair de si mesmo, das suas seguranças
humanas, sobretudo do seu orgulho”.
Mas o Papa
acentua e valoriza um pormenor do Livro dos Atos (vdAt 12,12-17):
“Quando Pedro, miraculosamente
liberto, se vê fora da prisão de Herodes, vai ter à casa da mãe de João chamado
Marcos. Bate à porta e, de dentro, vem atender uma empregada chamada Rode, que,
tendo reconhecido a voz de Pedro, em vez de abrir a porta, incrédula, mas cheia
de alegria corre a informar a patroa. A narração, que pode parecer cómica – e pode
ter dado início ao chamado complexo de
Rode –, deixa intuir o clima de medo em que estava a comunidade cristã,
fechada em casa e fechada também às surpresas de Deus”.
Pedro corre
perigo, pois os guardas podem prendê-lo. Mas o medo paralisa, “fecha-nos,
fecha-nos às surpresas de Deus”. Este detalhe, na ótica papal, mostra a
tentação existente na Igreja: a de fechar-se
em si mesma, à vista dos perigos. Porém, a oração faz a brecha determinante
“por onde pode passar a ação de Deus: Lucas diz que, naquela casa, numerosos
fiéis estavam reunidos a orar”
(vd At 12,5). Ora, insiste o Pontífice, a oração
permite que a graça abra a via de saída: do fechamento à abertura, do medo à
coragem, da tristeza à alegria, da divisão à unidade.
***
Voltando ao
conceito de chave e à sua utilidade, importa saber o que é uma chave ou para
que serve. A resposta mais óbvia será abrir
e fechar. Porém, muitos preferem
usá-la para fechar, ao passo que outros preferem que ela abra. A palavra
portuguesa “clave” deriva por via erudita (é alótropa ou divergente de chave) da
latina “clavis”. E é o tipo e a posição da clave na pauta musical o que nos dá
a denominação das notas e das pausas. Já a “autoclave” (do grego autós, mesmo; próprio + latim clave-, chave, pelo francês autoclave) é um recipiente
de fecho automático com fluidos a alta
pressão (tensão) para esterilizar instrumentos – abre, mas predomina a dimensão de
fechamento.
O mundo
ocidental papagueia a liberdade, democracia e participação, mas isto é
privilégio real de poucos (dos endinheirados, dos poderosos e dos oportunistas). “Chave”, para os ocidentais,
significa principalmente “fecho”, enquanto nas línguas semitas significa
sobretudo “abertura”.
“Clavis”, no
latim, provém de “claudere” (fechar, trancar, enclausurar, pôr ferrolho, por um clavus ou cravo). E a semântica é paralela no grego (Klêis),
italiano (Chiave), francês (Clef), espanhol (Llave),
romeno (Cheie), português (Chave), inglês (Key),
alemão (Schlussel), boémio (Klic), polaco (Klucz),
russo (Kljuc).
Em
contraponto, no hebreu, “chave” (MA.PTÉAĤ) origina-se do verbo PATÁH, abrir. Nesta língua há uma série de sons
paralelos: Pat, Pet, Pit, Pot, Put; Fat, Fet, Fit, Fot, Fut; Bat, Bet, Bit,
Bot, But; Bad, Bed, Bid, Bod, Bud; Pas, Pes, Pis, Pos, Pus; Pats, Pets, Pits,
Pots, Puts (até parece
brincadeira). O
denominador comum da semântica destes sons é “abrir”. Assim: patah, significa “abrir, romper, tornar
patente”; pataĤ, “livrar, soltar, manifestar, abrir, fender, começar” (implica rutura); pat, significa “naco, pedaço, fatia, migalha”; patar, “quebrar, romper, abrir, cortar, livrar, soltar, rasgar, fazer
brecha, explicar, interpretar”; pétah,
“porta, entrada, abertura, declaração, explicação”; e ma.ptêaĤ, “instrumento que abre, que anda e desanda – chave”. Os
sons que se relacionam com a palavra “chave”, no hebreu, e com o seu sentido
fundamental de “abrir” exprimem: abertura
física (do chão, do
solo), dando origem a
palavras como arar, cortar (a terra), arado, sulcar,
sulco, brecha, campo ou arada (por onde passou o arado – padân); abertura do espírito
(para conhecimento), com palavras como declaração,
explicação, interpretação; instrumentos
utilizados para abrir (com
palavras como martelo, arado, chave - patísh); abertura social e
psicológica (com
palavras como libertação, rompimento, das cadeias, abertura das correntes – pedút).
Jafet, o 3.º filho de Noé, é o filho da liberdade. E o memorial judeo-cristão
tem a “Páscoa” (Pêssah), “libertação” ou “salvação” (pedút) e “Abre-te” (Êpheta).
São termos que pertencem à família etimológica de chave, ma.ptêaĤ; porta, pêaĤ; e abertura,
pêtsa’.
Em suma,
temos conceitos importantíssimos: chave, libertação, abertura, porta, arado,
brecha, sulco, declaração, interpretação, hermenêutica, explicação, espaço,
vastidão, amplidão, rompimento das cadeias, alicerce, fundamento, útero, casca,
casulo, ferida, fratura, fragmento, fração, fatia, segmento, viagem, passagem,
saída, êxodo, páscoa. Tudo, menos claustrofilia!
Os sons deste
quadro – abrir, romper – encontram-se nas línguas clássicas do Oriente e do
Ocidente: egípcio, sumério, acádico, grego, latim, chinês e algumas línguas
indígenas. Assim, a título de exemplo: Em assírio-babilónio, a ideia de abrir ou romper exprime-se com o ícone de uma cunha (sons: bad, bit, but, batu, pitu), de uma cruz (abrir
ao meio) ou de uma tesoura (cortar); em egípcio, abrir exprime-se
pelo hieróglifo do martelo e do braço armado com um punhal (indicando assim também céu, espaço, imensidão – que abre os
olhos) e ainda com o
hieróglifo da ave a abrir as asas e a
levantar voo – rica imagem para o “spatium”; em chinês, utiliza-se put, pernas que se abrem para caminhar
como a ave abre as asas para voar. Em egípcio, PA exprime ação, admiração, estupefação, movimento, surpresa; e
indica também uma exclamação – Ah! Oh! – e funciona como o definido “o” e os demonstrativos
“o” e “este” ou nome “pai” e “ave” e verbo “voar”.
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Cristo, ao
abrir a boca e os ouvidos do surdo-mudo emprestou à palavra Êpheta ou Effathá toda a força etimológica do
mundo semita (vd Mc
7,32-35). Por isso, as
traduções – grega e latina – da Bíblia a conservam. O som Êpheta contém a ideia de libertação das cadeias e da prisão, o fim
do exílio e da escravidão ou do trabalho forçado. Neste caso, ao libertar de
uma deficiência física, tem o significado concomitante de palavra iluminadora do
mestre e do profeta a abrir a boca ou o livro para explicar, interpretar,
esclarecer. Por outro lado, indica a abertura para a vastidão do mundo e do céu
que se abre para os olhos possibilitando a liberdade de fruir do mundo ou das
alturas. É o milagre da liberdade e da caminhada, é a rutura com a limitação, o
passado. É, contra a asfixia egoísta e, às vezes, institucionalizada, a proclamação
da santa agorafilia!
***
Por isso, a
chave entregue por Cristo a Pedro e a todos os demais, que permanecem e
caminham em comunhão com ele, é um ÊPHETA,
um mandato de Liberdade, um grito de Salvação, um Arado para tornar a Terra arada segundo coração de Deus, o Punhal da Misericórdia, as Asas do voo, o Bordão desbravador de caminhos não andados que esperam a Redenção,
o Cantil do peregrino que lhe mata a
sede como aos demais, o glorioso Castiçal
da flama olímpica do Deus Libertador a mobilizar em torno de Si todos os homens
e todas as mulheres de boa vontade!
2016.06.29 – Louro de Carvalho
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