quinta-feira, 30 de junho de 2016

A promessa da entrega das chaves do Reino dos Céus


Na solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo, a Liturgia da Palavra da Missa do Dia (também há a missa a vigília), parece gravitar em torno do poder das chaves. Mas é necessário ter em conta o contexto, que é a profissão da fé de Pedro que se adiantou em relação aos seus companheiros quando Jesus – depois de os ter questionado sobre o que dizem por aí os outros sobre o Filho do Homem (João Batista, Elias ou algum dos profetas – responderam eles), os interrogou: “E vós, quem dizeis que Eu sou?”. Pedro, como sabemos, diz sem receio: “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”.
Então, segundo este Evangelho, a entrega das chaves é a contrapartida da fé explícita, como em João (cf Jo 21,15ss) a entrega a Pedro da tarefa de apascentar os cordeiros e as ovelhas de Cristo é a contrapartida do amor explícito, total e incondicional ao Senhor (até à morte). Também o poder de ligar e desligar na Terra com a consequência de ligar/desligar no Céu (poder das chaves) – confiado aos discípulos (cf Mt 18,18) – é a contrapartida evangélico-eclesial da prática da correção fraterna na comunidade/Igreja. E este poder, radicado no dom e força do Espírito Santo, que os apóstolos recebem, implica o perdão dos pecados (cf Jo 20,19-23). Fé, amor, perdão, e Espírito Santo dão a chave do Reino.
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Dar-te-ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu” (Mt 16,19).
A que tipo de chaves se refere Cristo quando promete fazer a sua entrega a Pedro? Chave é uma parábola-metáfora, imagem de liberdade – como a ave egípcia a levantar voo, a cunha assíria a romper a dureza da pedra, o 3.º filho de Noé (Jafet) denominado filho do espaço e da amplidão aberta do céu, o êxodo hebreu a fazer o povo abrir a passagem, galgar fronteiras, marchar para a aventura do seu destino, ou o Êpheta, dirigido ao surdo-mudo (a 1.ª palavra que ouve não é pai ou mãe, mas “abre-te”, “liberta-te”) – (vd Cândido de Souza, Palavra, Parábola, Ed. Santuário: 1990).
E essa chave foi entregue apenas a Pedro? A leitura isolada do versículo 19 leva a supor que a entrega foi exclusivamente feita a Pedro. Porém, tendo em conta o capítulo 18 de Mateus os caps. 20 e 21 de João, é legítimo e salutar sentir com Santo Agostinho:
“Não foi apenas um homem, Pedro, que recebeu as chaves do Reino, mas a Igreja universal. Quando Cristo disse ‘Eu te entrego as chaves’, estava a entregar as chaves a todos” (cf id et ib; ML,38,1349).
Os ditames evangélicos são para todos. Não pode o leitor/recetor determinar o que não é para si. Toda a doutrina do cap. 18 de Mateus é para os discípulos, para a Igreja: perdão, correção fraterna, oração, tornar-se como criança, receber uma criança, etc. Não pode o desligar e o ligar ser prerrogativa exclusiva de poucos, obviamente que Pedro está à frente e até se adianta a perguntar, a crer, a amar, a missionar. Ironicamente o cap. 16 de Mateus mostra Jesus a dar as chaves a Pedro (com o direito e o poder de abrir/fechar). Pedro é indubitavelmente o maior, o portador das chaves. Mas os discípulos vão ser esclarecidos no cap. 18. A pergunta dos discípulos obtém como resposta: A criança. Dela é o Reino. E a chave gerida por Pedro está ao cuidado de todos. Deus ligará ou desligará consoante os discípulos ligarem ou desligarem. Contra a exigência das assembleias gregas ou romanas, que vinculavam o valor das deliberações à participação de centenas e até milhares de pessoas, para a Ecclesia de Cristo bastam dois ou três para garantir a presença de Jesus e para Deus ratificar o que esses dois ou três abrem ou fecham na terra. É claro que têm de estar em comunhão com Cristo, com Pedro e com toda a Ecclesia Dei.
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E o Papa Francisco, na sua homilia de hoje, dia 29, dá-nos o sentido das chaves a partir do binómio fechamento/abertura”, baseado na perícopa do Evangelho da Solenidade (Mt 16,13-19). Mas relaciona-a, de pronto, com as perícopas do Livros dos Atos dos Apóstolos (At 12,1-11) e da 2.ª Carta a Timóteo (2Tm 4,6-9.17-18), que antecedem a proclamação do Evangelho. Assim, começando por dizer que, “nesta liturgia, a Palavra de Deus contém um binómio central “fechamento/abertura”, relaciona com esta imagem o símbolo das chaves que Jesus promete a Simão Pedro para que este possa “abrir às pessoas a entrada no Reino dos Céus e não fechá-la como faziam alguns escribas e fariseus hipócritas, que Jesus censura” (cf Mt 23,13). E, na perícopa dos Atos dos Apóstolos (12, 1-11), Francisco vislumbra três fechamentos:
“O de Pedro na prisão; o da comunidade reunida em oração; e – no contexto próximo da nossa perícopa – o da casa de Maria, mãe de João chamado Marcos, a cuja porta foi bater Pedro depois de ter sido libertado”.
E a principal via de saída dos fechamentos, segundo o Papa, é a oração. Sem ela, a comunidade corre o risco de se fechar por via da perseguição e do medo. Pedro que, já no início da missão que o Senhor lhe confiara, foi lançado na prisão por Herodes, correu o risco de condenação à morte. Porem, enquanto Pedro estava na prisão, “a Igreja orava a Deus, instantemente, por ele” (At 12,5). Obviamente, o Senhor responde com o envio do anjo libertador.
Assim, refere o Papa, “a oração, como humilde entrega a Deus e à sua santa vontade, é sempre a via de saída dos nossos fechamentos pessoais e comunitários”.
Também Paulo fala a Timóteo da sua experiência de libertação, de saída do perigo de ser condenado à morte, porque “o Senhor esteve ao seu lado e deu-lhe força para poder levar a bom termo a sua obra de evangelização dos gentios” (cf 2 Tm 4,17). Mas Paulo “fala duma ‘abertura’ muito maior, para um horizonte infinitamente mais amplo: o da vida eterna, que o espera depois de ter concluído a ‘corrida’ terrena”.
Quanto a Pedro, a narração evangélica da sua confissão de fé e consequente entrega da missão mostra que a vida do pescador galileu, como a vida de cada um de nós, “desabrocha plenamente quando acolhe, de Deus Pai, a graça da fé”. E Pedro enceta o “caminho longo e duro” – que o faz “sair de si mesmo, das suas seguranças humanas, sobretudo do seu orgulho”.
Mas o Papa acentua e valoriza um pormenor do Livro dos Atos (vdAt 12,12-17):
“Quando Pedro, miraculosamente liberto, se vê fora da prisão de Herodes, vai ter à casa da mãe de João chamado Marcos. Bate à porta e, de dentro, vem atender uma empregada chamada Rode, que, tendo reconhecido a voz de Pedro, em vez de abrir a porta, incrédula, mas cheia de alegria corre a informar a patroa. A narração, que pode parecer cómica – e pode ter dado início ao chamado complexo de Rode –, deixa intuir o clima de medo em que estava a comunidade cristã, fechada em casa e fechada também às surpresas de Deus”.
Pedro corre perigo, pois os guardas podem prendê-lo. Mas o medo paralisa, “fecha-nos, fecha-nos às surpresas de Deus”. Este detalhe, na ótica papal, mostra a tentação existente na Igreja: a de fechar-se em si mesma, à vista dos perigos. Porém, a oração faz a brecha determinante “por onde pode passar a ação de Deus: Lucas diz que, naquela casa, numerosos fiéis estavam reunidos a orar” (vd At 12,5). Ora, insiste o Pontífice, a oração permite que a graça abra a via de saída: do fechamento à abertura, do medo à coragem, da tristeza à alegria, da divisão à unidade.
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Voltando ao conceito de chave e à sua utilidade, importa saber o que é uma chave ou para que serve. A resposta mais óbvia será abrir e fechar. Porém, muitos preferem usá-la para fechar, ao passo que outros preferem que ela abra. A palavra portuguesa “clave” deriva por via erudita (é alótropa ou divergente de chave) da latina “clavis”. E é o tipo e a posição da clave na pauta musical o que nos dá a denominação das notas e das pausas. Já a “autoclave” (do grego autós, mesmo; próprio + latim clave-, chave, pelo francês autoclave) é um recipiente de fecho automático com fluidos a alta pressão (tensão) para esterilizar instrumentos – abre, mas predomina a dimensão de fechamento.
O mundo ocidental papagueia a liberdade, democracia e participação, mas isto é privilégio real de poucos (dos endinheirados, dos poderosos e dos oportunistas). “Chave”, para os ocidentais, significa principalmente “fecho”, enquanto nas línguas semitas significa sobretudo “abertura”.
“Clavis”, no latim, provém de “claudere” (fechar, trancar, enclausurar, pôr ferrolho, por um clavus ou cravo). E a semântica é paralela no grego (Klêis), italiano (Chiave), francês (Clef), espanhol (Llave), romeno (Cheie), português (Chave), inglês (Key), alemão (Schlussel), boémio (Klic), polaco (Klucz), russo (Kljuc).
Em contraponto, no hebreu, “chave” (MA.PTÉAĤ) origina-se do verbo PATÁH, abrir. Nesta língua há uma série de sons paralelos: Pat, Pet, Pit, Pot, Put; Fat, Fet, Fit, Fot, Fut; Bat, Bet, Bit, Bot, But; Bad, Bed, Bid, Bod, Bud; Pas, Pes, Pis, Pos, Pus; Pats, Pets, Pits, Pots, Puts (até parece brincadeira). O denominador comum da semântica destes sons é “abrir”. Assim: patah, significa “abrir, romper, tornar patente”; pataĤ, “livrar, soltar, manifestar, abrir, fender, começar” (implica rutura); pat, significa “naco, pedaço, fatia, migalha”; patar, “quebrar, romper, abrir, cortar, livrar, soltar, rasgar, fazer brecha, explicar, interpretar”; pétah, “porta, entrada, abertura, declaração, explicação”; e ma.ptêaĤ, “instrumento que abre, que anda e desanda – chave”. Os sons que se relacionam com a palavra “chave”, no hebreu, e com o seu sentido fundamental de “abrir” exprimem: abertura física (do chão, do solo), dando origem a palavras como arar, cortar (a terra), arado, sulcar, sulco, brecha, campo ou arada (por onde passou o arado – padân); abertura do espírito (para conhecimento), com palavras como declaração, explicação, interpretação; instrumentos utilizados para abrir (com palavras como martelo, arado, chave - patísh); abertura social e psicológica (com palavras como libertação, rompimento, das cadeias, abertura das correntes – pedút). Jafet, o 3.º filho de Noé, é o filho da liberdade. E o memorial judeo-cristão tem a “Páscoa” (Pêssah), “libertação” ou “salvação” (pedút) e “Abre-te” (Êpheta). São termos que pertencem à família etimológica de chave, ma.ptêaĤ; porta, pêaĤ; e abertura, pêtsa’.
Em suma, temos conceitos importantíssimos: chave, libertação, abertura, porta, arado, brecha, sulco, declaração, interpretação, hermenêutica, explicação, espaço, vastidão, amplidão, rompimento das cadeias, alicerce, fundamento, útero, casca, casulo, ferida, fratura, fragmento, fração, fatia, segmento, viagem, passagem, saída, êxodo, páscoa. Tudo, menos claustrofilia!
Os sons deste quadro – abrir, romper – encontram-se nas línguas clássicas do Oriente e do Ocidente: egípcio, sumério, acádico, grego, latim, chinês e algumas línguas indígenas. Assim, a título de exemplo: Em assírio-babilónio, a ideia de abrir ou romper exprime-se com o ícone de uma cunha (sons: bad, bit, but, batu, pitu), de uma cruz (abrir ao meio) ou de uma tesoura (cortar); em egípcio, abrir exprime-se pelo hieróglifo do martelo e do braço armado com um punhal (indicando assim também céu, espaço, imensidão – que abre os olhos) e ainda com o hieróglifo da ave a abrir as asas e a levantar voo – rica imagem para o “spatium”; em chinês, utiliza-se put, pernas que se abrem para caminhar como a ave abre as asas para voar. Em egípcio, PA exprime ação, admiração, estupefação, movimento, surpresa; e indica também uma exclamação – Ah! Oh! – e funciona como o definido “o” e os demonstrativos “o” e “este” ou nome “pai” e “ave” e verbo “voar”.
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Cristo, ao abrir a boca e os ouvidos do surdo-mudo emprestou à palavra Êpheta ou Effathá toda a força etimológica do mundo semita (vd Mc 7,32-35). Por isso, as traduções – grega e latina – da Bíblia a conservam. O som Êpheta contém a ideia de libertação das cadeias e da prisão, o fim do exílio e da escravidão ou do trabalho forçado. Neste caso, ao libertar de uma deficiência física, tem o significado concomitante de palavra iluminadora do mestre e do profeta a abrir a boca ou o livro para explicar, interpretar, esclarecer. Por outro lado, indica a abertura para a vastidão do mundo e do céu que se abre para os olhos possibilitando a liberdade de fruir do mundo ou das alturas. É o milagre da liberdade e da caminhada, é a rutura com a limitação, o passado. É, contra a asfixia egoísta e, às vezes, institucionalizada, a proclamação da santa agorafilia!
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Por isso, a chave entregue por Cristo a Pedro e a todos os demais, que permanecem e caminham em comunhão com ele, é um ÊPHETA, um mandato de Liberdade, um grito de Salvação, um Arado para tornar a Terra arada segundo coração de Deus, o Punhal da Misericórdia, as Asas do voo, o Bordão desbravador de caminhos não andados que esperam a Redenção, o Cantil do peregrino que lhe mata a sede como aos demais, o glorioso Castiçal da flama olímpica do Deus Libertador a mobilizar em torno de Si todos os homens e todas as mulheres de boa vontade!

2016.06.29 – Louro de Carvalho

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