quinta-feira, 30 de junho de 2016

A propósito da 1.ª eleição presidencial na vigência da Constituição

Decorreu, a 27 de junho, na Fundação Calouste Gulbenkian, uma cerimónia de comemoração evocativa da primeira eleição presidencial na vigência da Constituição da República Portuguesa, aprovada em definitivo, pela Assembleia Constituinte, no dia 2 abril de 1976, promulgada, no mesmo dia 2 de abril, pelo então Presidente da República, Francisco da Costa Gomes, designado para o cargo pela Junta de Salvação Nacional (em sucessão do renunciante António Sebastião Ribeiro de Spínola) e publicada em Diário da República a 10 de abril do mesmo ano, para entrar em vigor no dia 25 de abril. E foi ao abrigo desta lei fundamental que ocorreram as eleições para a Assembleia da República, a 25 de abril de 1976, um ano depois das eleições para a Assembleia Constituinte, e as eleições presidenciais, que tiveram lugar a 27 de junho de 1976, há 40 anos, feitos na passada segunda-feira.
Esta cerimónia encerrou um conjunto de iniciativas promovidas pela Presidência da República para assinalar esta efeméride e que levaram o ex-Presidente – que ganhou aquelas eleições com 61,4% dos votos – e o atual a Évora e Castelo Branco, para encontros com jovens, onde se debateram a Liberdade e a Democracia, numa perspetiva de futuro. Foi a este conjunto de iniciativas que se referiu Marcelo Rebelo de Sousa no seu discurso, quando declarou que, por vontade do General Ramalho Eanes, as comemorações do 40.º aniversário das primeiras eleições presidenciais em democracia se revestiram de relevante índole pedagógica e prospetiva.
Na mesma cerimónia prestou-se homenagem ao General António dos Santos Ramalho Eanes, em que intervieram o Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, Artur Santos Silva, o Prof. Doutor Manuel Braga da Cruz, cuja intervenção versou o ato eleitoral de há 4 décadas, e o homenageado, o General Doutor António dos Santos Ramalho Eanes. 
Seguiu-se a intervenção do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, após a qual agraciou o homenageado com o Grande-Colar da Ordem do Infante D. Henrique, pois, trata-se do primeiro Chefe de Estado democraticamente eleito por sufrágio direto e universal.
Recorde-se que o Grande-Colar é o mais alto grau desta Ordem e é concedido a antigos Chefes de Estado e a pessoas cujos feitos, de natureza extraordinária e especial relevância para Portugal, as tornem merecedoras dessa distinção. Porém, o ex-Presidente da República Eanes agradeceu a condecoração como sendo uma “generosidade excessiva”.
No final da cerimónia foi inaugurada a exposição “40 Anos Eleições Presidenciais – Um Presidente para todos os Portugueses”, que ficará patente ao público até dia 27 de julho próximo, no piso 0 da Fundação Calouste Gulbenkian, com entrada gratuita.
Ramalho Eanes, que sempre preferiu a discrição ao protagonismo político, tornou-se desta vez o centro das atenções para largas dezenas de figuras. Num tempo politicamente extremado, o ex-Chefe do Estado conseguiu reunir a esquerda e a direita, os ex-presidentes Jorge Sampaio e Cavaco Silva, os revolucionários, os sindicalistas... Após, as saudações ao homenageado pelas entidades presentes, o evento foi palco dum reencontro: “Então, António, estou aqui há tanto tempo e ninguém me liga!”. Era Otelo Saraiva de Carvalho, que não poderia ter faltado, como transpareceu do abraço emocionado entre o vencedor e o derrotado no sufrágio de 1976.
Além das personalidades referidas, destacam-se: o presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues; os presidentes dos tribunais superiores; os ex-presidentes da República, Jorge Sampaio e Cavaco Silva; o presidente da Associação 25 de Abril e ex-conselheiro da Revolução, Vasco Lourenço; o ministro da Economia, Manuel Caldeira Cabral; o ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho; a líder do CDS-PP Assunção Cristas; e ainda, como se disse, o candidato presidencial que ficou em segundo lugar na corrida presidencial de 1976, Otelo Saraiva de Carvalho.
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Num tom sóbrio – o mesmo de há 40 anos – num discurso acutilante, embora pouco eloquente, mas descomprometido de qualquer força político-partidária, tal como aquando da eleição a 27 de junho de 1976, o general pediu ao Presidente da República que fiscalize as promessas dos políticos. Com efeito, considera isso “indispensável para a saúde da democracia regressar às raízes éticas da política para encontrar o sentido da ação coletiva”. E, defendendo a necessidade de maior aproximação dos políticos à população, o mítico general deixou algumas ideias a Marcelo, defendendo:
“O Presidente da República (...) poderá seguramente até solicitar aos governos, aos partidos ou à Assembleia da República que forneçam informação, mesmo à sociedade civil, da exequibilidade financeira de certas promessas eleitorais que, embora apelativas ao voto, são manifestamente difíceis ou prejudiciais ao futuro da nação ou mesmo impossíveis de concretizar, como já temos visto”.
 E adiantou sugerindo:
“Se numa campanha eleitoral um político prometer que vai aumentar os vencimentos e fazer um conjunto grande de obras públicas para as quais não há qualquer capacidade financeira, o Presidente da República pode, sem se imiscuir na campanha, perguntar à Unidade Técnica de Apoio Orçamental, UTAO, se aquilo é possível”.
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Sem comentar as sugestões eanistas, Marcelo, o 5.º presidente eleito em democracia, enalteceu o legado político do general na institucionalização da democracia em Portugal, explicitando:
“Aquelas semanas de campanha não haviam sido simples. A revolução continuava naturalmente presente na Constituição e no arranque da sua vigência. Vossa Excelência teve nesse contexto a missão histórica de abrir caminhos, de aplanar confrontos, de estabelecer pontes e o veredicto popular foi eloquente”.
Marcelo Rebelo de Sousa, que acompanhou há 40 anos a campanha presidencial como subdiretor do semanário Expresso, disse agora reter lições da forma como Eanes exerceu o mandato. A primeira é a lição sobre o papel crucial do Presidente “em clima de radicalização de posições e de atitudes, corporizando o máximo denominador comum em torno dos valores nacionais” e “resistindo a substituir-se ou a imiscuir-se em outros órgãos de soberania ou instâncias do poder”. Outra “é que ignorar ou minimizar as Forças Armadas, por ação ou omissão, é não apreender uma componente essencial da identidade pátria”, para lá de “não perceber os desafios da segurança global” da atualidade. Ademais, a persistência das “linhas de política externa não sujeitas a impulsos ou estados de alma conjunturais” – entre elas, a “fidelidade à Aliança Atlântica e o persistente rumo de integração europeia” – são outras “lições” que o Presidente disse reter do legado do primeiro dos seus predecessores eleitos e que foi enriquecido pelos sucessivos ocupantes da cátedra de Belém.
Após a cerimónia evocativa, o Presidente da República inaugurou e visitou, com Ramalho Eanes ao lado, predita exposição sobre as primeiras eleições presidenciais, que reúne cartazes da campanha eleitoral e jornais da época, entre os quais o semanário Expresso, do qual Marcelo Rebelo de Sousa era, há 40 anos, subdiretor.
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Cabe à República celebrar os seus obreiros e evocar as efemérides marcantes. Porém, não é plausível evocar umas efemérides e deslustrar outras, embora devendo saber priorizar. Por isso, do meu ponto de vista, é legítimo e imperativo cívico evocar os 40 anos da Constituição, das primeiras eleições legislativas, das eleições presidenciais, das eleições regionais e das regiões autárquicas. Veremos se as regionais e as autárquicas terão o destaque merecido.
Quanto aos obreiros da República, parece-me bem, desde que não sejam mitificados nem os promotores entrem em contradições significativas.
Penso que Eanes merece ser associado à efeméride do 40.º aniversário das eleições presidenciais, porque as venceu e exerceu a presidência em circunstâncias bem difíceis. Porém, atribuir-lhe os louros da transição da fase revolucionária à fase da democracia representativa no quadro constitucional é excessivo. Onde é que estão os outros? A título de exemplo, lembro Costa Gomes, Pinheiro de Azevedo, Pires Veloso, Franco Charais, Pezarat Correia, Vasco Lourenço, Melo Antunes, Vítor Alves, Vítor Crespo, Sousa e Castro, Jaime Neves; Mário Soares, Almeida Santos, Salgado Zenha, Sá Carneiro, Pinto Balsemão, Freitas do Amaral, amaro da Costa, Jerónimo de Sousa, José Manuel Tengarrinha…
É certo que Eanes restabeleceu a hierarquia nas forças armadas, deixando de, com ele e a partir dele, de haver mais graduações em oficial general. Porém, ele mesmo tinha ascendido ao generalato pela via da graduação (passou de tenente-coronel a general para exercer a chefia do Estado-Maior do Exército e ficou em general porque entretanto ascendeu à Presidência da República). Com ele – diz-se – as forças armadas regressaram a quartéis subordinando-se ao poder político. Mas tal sucede apenas no segundo mandato, com a 1.ª lei de revisão constitucional, em setembro de 1982, que ele era obrigado a promulgar e de cujo teor se lamentou, em comunicação ao país via RTP, alegadamente pela perda de poderes presidenciais.
Não foi o único Chefe de Estado a acumular as funções de Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA). Isso acontecera com Costa Gomes também, o qual, a 25 de novembro, comandava as ações militares na qualidade de CEMGFA, sendo seu transmissor (melhor: assegurando a cadeia de comando) aos comandantes operacionais o então major Vasco Lourenço, que depois seria graduado em general para assumir o cargo de governador militar de Lisboa. Porém, Ramalho Eanes, que prestou o serviço de moderação política e disciplinadora das forças armadas, assumiu-se no 1.º mandato como presidente militar (era natural que acumulasse as funções de CEMGFA, o que outro faria no seu lugar, se não fosse civil). Já o 2.º mandato foi explicitamente assumido como resultante de uma candidatura civil. Nunca mais surgiu fardado e frequentemente dispensava as guardas de honra militares. E, ainda antes da 1.ª revisão constitucional, deixou de acumular a função presidencial com a de CEMGFA. O seu 1.º sucessor neste cargo militar foi o General Nuno Viriato Tavares de Melo Egídio. Recordo-me que o CEMGA foi representado (em maio/junho de 1982) na 24.ª Peregrinação Militar Internacional a Lourdes, em que participei, pelo General Quartel-Mestre Jorge da Costa Salazar Braga.
Não me sensibiliza a recusa da promoção a marechal. Primeiro, o militar não recusa serviços, promoções condecorações, louvores, punições. Depois, um galardão tem em vista reconhecer o mérito de quem o recebe, mas também a satisfação e o prestígio da entidade que o atribui.
Do ponto de vista político, lembro-me dos discursos do 25 de abril em que o Governo recebia as respetivas farpas, a exoneração de Mário Soares sem que houvesse preparado uma solução alternativa, o patrocínio da criação dum partido a partir de Belém (que, em 1985, obteve um resultado as legislativas de 18% e que originou a queda do Governo minoritário de Cavaco Silva em 1987, de que resultou a 1.ª maioria absoluta) e o apoio declarado à candidatura presidencial de Salgado Zenha em 1985/1986.
Do ângulo de vista do valor pessoal, gosto de que tenha obtido o grau de doutor depois de deixar a política explícita e aprecio o seu afã em conferências e outras intervenções cívicas, académicas e culturais. Lamento que as universidades portuguesas não o tivessem acolhido, como discuto os seus apoios políticos erráticos desde a velha FRS/Frente Republicana Socialista (com a qual estabelecera protocolo pré-eleitoral em 1980), passando pela declaração pública de que o seu programa presidencial coincidia basicamente com o da AD, até ao apoio às candidaturas presidenciais de Cavaco Silva e de Sampaio da Nóvoa.
Não creio que seja taticamente meritória a sua renúncia à retroação de vencimentos que os tribunais decretaram a seu respeito. Sua Excelência terá promulgado o diploma que lhe foi apresentado. (Lembro-me do arcebispo de Braga Frei Bartolomeu dos Mártires, que entendia que as questões institucionais não são tratadas de forma pessoalizada). Entendeu recorrer para os tribunais. Deram-lhe razão. Aceitava a decisão. Se achava que em termos morais não tinha direito, disporia em prol de alguma instituição.  
Quanto aos promotores de homenagens a Eanes, se excetuar os militares, também devo não aplaudir a sua pressuposta boa intencionalidade. Disputaram a antecipação do apoio à sua candidatura presidencial em 1976, para travar a esquerda; crucificaram-no politicamente, em 1980, por hipoteticamente colado ao PCP; criticaram-no por ter albergado a criação do PRD sendo ainda Presidente; e apontaram o tique militarista das suas intervenções.
Agora que o homem singrou académica e socialmente e se mantém formalmente equidistante dos partidos endeusam-no e só veem nele virtudes.
Quanto ao Presidente da República, devo dizer que, em termos gerais, o seu discurso foi atilado, pelo menos na perspetiva política que defende. Porém, fazer contas aos meses e dias que, na sua ótica, separam a 1.ª eleição presidencial da promulgação da Constituição em dois meses e seis dias não lembrava ao careca, com ele diz às vezes. A Constituição foi promulgada a 2 de abril: desta data até 27 de junho vão 2 meses e 25 dias. Não confunde o constitucionalista promulgação com publicação: esta foi a 10 de abril – 2 meses e 17 dias.
Para quem criticava Guterres por errar aritmética em público…

2016.06.30 – Louro de Carvalho

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