Decorreu,
a 27 de junho, na Fundação Calouste Gulbenkian, uma cerimónia de comemoração
evocativa da primeira eleição presidencial na vigência da Constituição da
República Portuguesa, aprovada em definitivo, pela Assembleia Constituinte, no
dia 2 abril de 1976, promulgada, no mesmo dia 2 de abril, pelo então Presidente
da República, Francisco da Costa Gomes, designado para o cargo pela Junta de
Salvação Nacional (em sucessão do renunciante António
Sebastião Ribeiro de Spínola)
e publicada em Diário da República a 10 de abril do mesmo ano, para entrar em
vigor no dia 25 de abril. E foi ao abrigo desta lei fundamental que ocorreram
as eleições para a Assembleia da República, a 25 de abril de 1976, um ano
depois das eleições para a Assembleia Constituinte, e as eleições
presidenciais, que tiveram lugar a 27 de junho de 1976, há 40 anos, feitos na
passada segunda-feira.
Esta
cerimónia encerrou um conjunto de iniciativas promovidas pela Presidência da
República para assinalar esta efeméride e que levaram o ex-Presidente – que ganhou
aquelas eleições com 61,4% dos votos – e o
atual a Évora e Castelo Branco, para encontros com jovens, onde se debateram a
Liberdade e a Democracia, numa perspetiva de futuro. Foi a este conjunto de
iniciativas que se referiu Marcelo Rebelo de Sousa no seu discurso, quando
declarou que, por vontade do General Ramalho Eanes, as comemorações do 40.º
aniversário das primeiras eleições presidenciais em democracia se revestiram de
relevante índole pedagógica e prospetiva.
Na mesma
cerimónia prestou-se homenagem ao General António dos Santos Ramalho Eanes, em
que intervieram o Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, Artur Santos
Silva, o Prof. Doutor Manuel Braga da Cruz, cuja intervenção versou o ato
eleitoral de há 4 décadas, e o homenageado, o General Doutor António dos Santos
Ramalho Eanes.
Seguiu-se a
intervenção do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, após a qual
agraciou o homenageado com o Grande-Colar da Ordem do Infante D. Henrique, pois,
trata-se do primeiro Chefe de Estado democraticamente eleito por sufrágio
direto e universal.
Recorde-se
que o Grande-Colar é o mais alto grau desta Ordem e é concedido a antigos
Chefes de Estado e a pessoas cujos feitos, de natureza extraordinária e especial
relevância para Portugal, as tornem merecedoras dessa distinção. Porém, o ex-Presidente da República Eanes agradeceu a
condecoração como sendo uma “generosidade excessiva”.
No final da cerimónia
foi inaugurada a exposição “40 Anos
Eleições Presidenciais – Um Presidente para todos os Portugueses”, que
ficará patente ao público até dia 27 de julho próximo, no piso 0 da Fundação Calouste Gulbenkian, com
entrada gratuita.
Ramalho Eanes, que sempre preferiu a discrição
ao protagonismo político, tornou-se desta vez o centro das atenções para largas
dezenas de figuras. Num tempo politicamente extremado, o ex-Chefe do Estado
conseguiu reunir a esquerda e a direita, os ex-presidentes Jorge Sampaio e
Cavaco Silva, os revolucionários, os sindicalistas... Após, as saudações ao
homenageado pelas entidades presentes, o evento foi palco dum reencontro: “Então, António, estou aqui há tanto tempo e
ninguém me liga!”. Era Otelo Saraiva de Carvalho, que não poderia ter faltado,
como transpareceu do abraço emocionado entre o vencedor e o derrotado no
sufrágio de 1976.
Além das
personalidades referidas, destacam-se: o presidente
da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues; os presidentes dos tribunais superiores; os ex-presidentes da República, Jorge Sampaio e Cavaco
Silva; o presidente da Associação 25 de Abril e ex-conselheiro da Revolução,
Vasco Lourenço; o ministro da Economia, Manuel Caldeira Cabral; o ex-primeiro-ministro
Pedro Passos Coelho; a líder do CDS-PP Assunção Cristas; e ainda, como se
disse, o candidato presidencial que ficou em
segundo lugar na corrida presidencial de 1976, Otelo Saraiva de Carvalho.
***
Num tom sóbrio – o mesmo de há 40 anos – num
discurso acutilante, embora pouco eloquente, mas descomprometido de qualquer
força político-partidária, tal como aquando da eleição a 27 de junho de 1976, o
general pediu ao Presidente da República que fiscalize as promessas dos
políticos. Com efeito, considera isso “indispensável para a saúde da democracia
regressar às raízes éticas da política para encontrar o sentido da ação
coletiva”. E, defendendo a necessidade de maior aproximação dos políticos à
população, o mítico general deixou algumas ideias a Marcelo, defendendo:
“O Presidente da República (...) poderá seguramente até
solicitar aos governos, aos partidos ou à Assembleia da República que forneçam informação,
mesmo à sociedade civil, da exequibilidade financeira de certas promessas
eleitorais que, embora apelativas ao voto, são manifestamente difíceis ou
prejudiciais ao futuro da nação ou mesmo impossíveis de concretizar, como já
temos visto”.
E adiantou
sugerindo:
“Se numa campanha eleitoral um político prometer que vai
aumentar os vencimentos e fazer um conjunto grande de obras públicas para as
quais não há qualquer capacidade financeira, o Presidente da República pode,
sem se imiscuir na campanha, perguntar à Unidade Técnica de Apoio Orçamental,
UTAO, se aquilo é possível”.
***
Sem comentar as sugestões eanistas, Marcelo, o
5.º presidente eleito em democracia, enalteceu o legado político do general na
institucionalização da democracia em Portugal, explicitando:
“Aquelas semanas de campanha não haviam sido simples. A
revolução continuava naturalmente presente na Constituição e no arranque da sua
vigência. Vossa Excelência teve nesse contexto a missão histórica de abrir
caminhos, de aplanar confrontos, de estabelecer pontes e o veredicto popular
foi eloquente”.
Marcelo
Rebelo de Sousa, que acompanhou há 40 anos a campanha presidencial como
subdiretor do semanário Expresso,
disse agora reter lições da forma como Eanes exerceu o mandato. A primeira é a
lição sobre o papel crucial do Presidente “em clima de radicalização de
posições e de atitudes, corporizando o máximo denominador comum em torno dos
valores nacionais” e “resistindo a substituir-se ou a imiscuir-se em outros
órgãos de soberania ou instâncias do poder”. Outra “é que ignorar ou minimizar
as Forças Armadas, por ação ou omissão, é não apreender uma componente essencial
da identidade pátria”, para lá de “não perceber os desafios da segurança
global” da atualidade. Ademais, a persistência das “linhas de política externa
não sujeitas a impulsos ou estados de alma conjunturais” – entre elas, a
“fidelidade à Aliança Atlântica e o persistente rumo de integração europeia” – são
outras “lições” que o Presidente disse reter do legado do primeiro dos seus
predecessores eleitos e que foi enriquecido pelos sucessivos ocupantes da cátedra
de Belém.
Após
a cerimónia evocativa, o Presidente da República inaugurou e visitou, com
Ramalho Eanes ao lado, predita exposição sobre as primeiras eleições
presidenciais, que reúne cartazes da campanha eleitoral e jornais da época,
entre os quais o semanário Expresso,
do qual Marcelo Rebelo de Sousa era, há 40 anos, subdiretor.
***
Cabe
à República celebrar os seus obreiros e evocar as efemérides marcantes. Porém,
não é plausível evocar umas efemérides e deslustrar outras, embora devendo
saber priorizar. Por isso, do meu ponto de vista, é legítimo e imperativo
cívico evocar os 40 anos da Constituição, das primeiras eleições legislativas,
das eleições presidenciais, das eleições regionais e das regiões autárquicas. Veremos
se as regionais e as autárquicas terão o destaque merecido.
Quanto
aos obreiros da República, parece-me bem, desde que não sejam mitificados nem
os promotores entrem em contradições significativas.
Penso
que Eanes merece ser associado à efeméride do 40.º aniversário das eleições presidenciais,
porque as venceu e exerceu a presidência em circunstâncias bem difíceis. Porém,
atribuir-lhe os louros da transição da fase revolucionária à fase da democracia
representativa no quadro constitucional é excessivo. Onde é que estão os
outros? A título de exemplo, lembro Costa Gomes, Pinheiro de Azevedo, Pires
Veloso, Franco Charais, Pezarat Correia, Vasco Lourenço, Melo Antunes, Vítor
Alves, Vítor Crespo, Sousa e Castro, Jaime Neves; Mário Soares, Almeida Santos,
Salgado Zenha, Sá Carneiro, Pinto Balsemão, Freitas do Amaral, amaro da Costa, Jerónimo
de Sousa, José Manuel Tengarrinha…
É
certo que Eanes restabeleceu a hierarquia nas forças armadas, deixando de, com
ele e a partir dele, de haver mais graduações em oficial general. Porém, ele
mesmo tinha ascendido ao generalato pela via da graduação (passou de
tenente-coronel a general para exercer a chefia do Estado-Maior do Exército e ficou
em general porque entretanto ascendeu à Presidência da República). Com ele – diz-se – as
forças armadas regressaram a quartéis subordinando-se ao poder político. Mas tal
sucede apenas no segundo mandato, com a 1.ª lei de revisão constitucional, em
setembro de 1982, que ele era obrigado a promulgar e de cujo teor se lamentou,
em comunicação ao país via RTP, alegadamente pela perda de poderes presidenciais.
Não
foi o único Chefe
de Estado a acumular as funções de Chefe do Estado-Maior General das Forças
Armadas (CEMGFA). Isso acontecera com Costa Gomes também, o qual, a 25 de
novembro, comandava as ações militares na qualidade de CEMGFA, sendo seu
transmissor (melhor:
assegurando a cadeia de comando) aos comandantes operacionais o então major Vasco Lourenço,
que depois seria graduado em general para assumir o cargo de governador militar
de Lisboa. Porém, Ramalho Eanes, que prestou o serviço de moderação política e
disciplinadora das forças armadas, assumiu-se no 1.º mandato como presidente militar
(era
natural que acumulasse as funções de CEMGFA, o que outro faria no seu lugar, se
não fosse civil). Já o 2.º mandato foi explicitamente assumido como resultante
de uma candidatura civil. Nunca mais surgiu fardado e frequentemente dispensava
as guardas de honra militares. E, ainda antes da 1.ª revisão constitucional, deixou
de acumular a função presidencial com a de CEMGFA. O seu 1.º sucessor neste
cargo militar foi o General Nuno Viriato Tavares de Melo Egídio. Recordo-me que
o CEMGA foi representado (em maio/junho de 1982) na 24.ª Peregrinação Militar Internacional a
Lourdes, em que participei, pelo General Quartel-Mestre Jorge da Costa Salazar
Braga.
Não
me sensibiliza a recusa da promoção a marechal. Primeiro, o militar não recusa serviços,
promoções condecorações, louvores, punições. Depois, um galardão tem em vista
reconhecer o mérito de quem o recebe, mas também a satisfação e o prestígio da
entidade que o atribui.
Do
ponto de vista político, lembro-me dos discursos do 25 de abril em que o Governo
recebia as respetivas farpas, a exoneração de Mário Soares sem que houvesse
preparado uma solução alternativa, o patrocínio da criação dum partido a partir
de Belém (que,
em 1985, obteve um resultado as legislativas de 18% e que originou a queda do Governo
minoritário de Cavaco Silva em 1987, de que resultou a 1.ª maioria absoluta) e o apoio declarado à
candidatura presidencial de Salgado Zenha em 1985/1986.
Do
ângulo de vista do valor pessoal, gosto de que tenha obtido o grau de doutor
depois de deixar a política explícita e aprecio o seu afã em conferências e
outras intervenções cívicas, académicas e culturais. Lamento que as
universidades portuguesas não o tivessem acolhido, como discuto os seus apoios políticos
erráticos desde a velha FRS/Frente Republicana Socialista (com a qual estabelecera
protocolo pré-eleitoral em 1980), passando pela declaração pública de que o seu programa presidencial
coincidia basicamente com o da AD, até ao apoio às candidaturas presidenciais de
Cavaco Silva e de Sampaio da Nóvoa.
Não
creio que seja taticamente meritória a sua renúncia à retroação de vencimentos
que os tribunais decretaram a seu respeito. Sua Excelência terá promulgado o
diploma que lhe foi apresentado. (Lembro-me do arcebispo de Braga Frei Bartolomeu
dos Mártires, que entendia que as questões institucionais não são tratadas de
forma pessoalizada). Entendeu recorrer para os tribunais. Deram-lhe razão. Aceitava
a decisão. Se achava que em termos morais não tinha direito, disporia em prol de
alguma instituição.
Quanto
aos promotores de homenagens a Eanes, se excetuar os militares, também devo não
aplaudir a sua pressuposta boa intencionalidade. Disputaram a antecipação do
apoio à sua candidatura presidencial em 1976, para travar a esquerda; crucificaram-no
politicamente, em 1980, por hipoteticamente colado ao PCP; criticaram-no por
ter albergado a criação do PRD sendo ainda Presidente; e apontaram o tique
militarista das suas intervenções.
Agora
que o homem singrou académica e socialmente e se mantém formalmente equidistante
dos partidos endeusam-no e só veem nele virtudes.
Quanto
ao Presidente da República, devo dizer que, em termos gerais, o seu discurso
foi atilado, pelo menos na perspetiva política que defende. Porém, fazer contas
aos meses e dias que, na sua ótica, separam a 1.ª eleição presidencial da promulgação
da Constituição em dois meses e seis dias
não lembrava ao careca, com ele diz às vezes. A Constituição foi promulgada
a 2 de abril: desta data até 27 de junho vão 2 meses e 25 dias. Não confunde o
constitucionalista promulgação com publicação: esta foi a 10 de abril – 2 meses
e 17 dias.
Para
quem criticava Guterres por errar aritmética em público…
2016.06.30 –
Louro de Carvalho
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