A Assembleia da República aprovou, no passado dia 9 de
junho, véspera do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas,
dois votos “em relação às eventuais sanções por
incumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento” (Voto
n.º 92/XIII/1.ª) ou
“relativo à eventual aplicação de sanções
a Portugal no âmbito do procedimento por Défices Excessivos” (Voto
n.º 93/XIII/1.ª) –
contra a propalada hipótese de aplicação de sanções a Portugal.
Face a esta deliberação
parlamentar, o presidente
da Assembleia da República congratulou-se com o “consenso”, ao passo que o
Presidente da República preferiu congratular-se com o sentido positivo da
deliberação, deixando claro que preferia que os deputados tivessem acordado num
texto único. Porém, Marcelo declarou-se contente, uma vez que, sendo o ótimo
inimigo do bom, os deputados se entenderam na substância, embora discrepantes
na forma.
Relidos os textos dos dois votos, verifica-se que eles
diferem em muito pouco, mas diferem. E a diferença, embora não seja muito
significativa, acusa um défice de valor simbólico na posição dos nossos
representantes e membros do relevante órgão de soberania, o Parlamento, sede
por excelência do poder legislativo e fiscalizador da ação do Governo.
***
Além da falta de texto único, o voto (aliás, os
votos) não é nem de incómodo, nem de
protesto nem de condenação. É simplesmente voto, voto “em relação a” ou voto
relativo a”. Depois, embora diferentes, poderiam merecer ambos a unanimidade,
relegando-se a diferença para o momento originário da tomada de iniciativa, ou,
pelo menos, a abstenção da parte dos partidos não subscritores. Se uma destas
hipóteses se tivesse verificado, Ferro Rodrigues poderia com legitimidade
ter-se congratulado pelo consenso. Assim, não percebo de que tipo de consenso
quis falar. Por outro lado, se acompanho Marcelo nalgum conforto pelo facto de
o Parlamento haver aprovado um voto ou dois votos face à eventual aplicação de
sanções, não vejo bem, em textos de dimensão tão diminuta, suficiente razão
para se falar numa unanimidade na substância e uma diferenciação quanto à
forma, a não ser num certo preciosismo redatorial.
Desde logo as sínteses marcam diferenças: o voto
n.º 92/XIII/1.ª,
apresentado pelo PS, BE, PCP, PEV e PAN, posiciona-se “em relação às eventuais
sanções por incumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento”; e o voto n.º 93/XIII/1.ª, apresentado pelo
PSD e CDS-PP, declara-se “relativo à eventual aplicação de sanções a Portugal
no âmbito do procedimento por Défices Excessivos”. É óbvio que, na prática, a
razão é a mesma, pois o défice excessivo decorre do não cumprimento do PEC.
Todavia, são em tese coisas diferentes, de tal modo que, se o défice excessivo
resulta de fatores imprevistos, não se pode dizer que o PEC não tenha sido cumprido,
ou então ele enferma de um pecado original na sua elaboração ou é interpretado
de forma não inteligente.
Quanto ao resultado das votações, o voto n.º 92 foi
aprovado com os votos favoráveis de toda a esquerda e a abstenção do PSD e do
CDS-PP, ao passo que o voto n.º 93 teve também os votos favoráveis do PS e do
PAN (Pessoas,
Animais e Natureza), mas
registou votos contra do BE (Bloco de Esquerda), PCP e PEV
(Os Verdes).
Face ao resultado das votações e tendo em conta a
falta de texto único e a iminência de sanções, é óbvio que tenho em apreço a
postura do PS e do PAN, que votaram favoravelmente o texto apresentado pela
direita, e, em certa medida, a do PSD e do CDS, que se abstiveram face ao texto
apresentado pela esquerda, que, aliás, bem poderiam ter votado a favor.
O texto da esquerda, ao colocar a
hipótese do incumprimento do PEC, parece arredar a ideia de que o défice
excessivo possa ter decorrido simplesmente da falta de cumprimento do PEC, sem
questionar a sua génese ou a sua interpretação, dando a entender que ignora os
fatores alheios à vontade dos Estados e decorrentes da crise europeia e
mundial.
Por seu turno, o texto do voto do
PSD e do CDS, faz anteceder do segmento “os esforços e resultados de consolidação
nominal e estrutural alcançados pelo País” o segmento “à grave crise económica
que afetou Portugal”, como fundamento para classificar de “infundada e injusta”
a “mera possibilidade de impor sanções ao país”. Os deputados que subscreveram
o texto perderam, a meu ver, a oportunidade de referir que os ditos esforços
foram feitos sob a égide da União Europeia cuja orientação política e económica
os factos demonstram não dar os resultados previstos e desejáveis. Sendo assim,
não parece que o texto naquela única diferença de fundo tenha vindo a acrescentar
qualquer valia ao texto da formação partidária contrária.
Em todo o caso, os deputados
fizeram bem em invocar o facto inédito de se colocar a hipótese de punir um
país por incumprimento por défice excessivo, embora já outros tenham incorrido
nesse incumprimento, vindo agora alguém clamar impudentemente que a França é a
França.
Transcrevo a seguir o voto n.º 93/XIII/1.ª, por ser
formalmente o mais completo, advertindo que o último parágrafo é igual nos dois
votos:
Nas últimas
semanas tem sido referida a possibilidade de Portugal ser alvo de sanções por
alegado incumprimento das recomendações do Conselho Europeu no âmbito do Pacto
de Estabilidade e Crescimento. A mera possibilidade de impor sanções ao país,
para além de inédita ao nível da aplicação do Pacto de Estabilidade e
Crescimento, afigura-se infundada, injusta, incompreensível e contraproducente.
Infundada e injusta, face aos esforços e resultados de consolidação nominal e
estrutural alcançados pelo País e à grave crise económica e social que afetou
Portugal; incompreensível porque representaria um tratamento injustificadamente
discriminatório de Portugal face a outros Estados-membros; e contraproducente,
face aos desafios que se colocam para a recuperação económica de Portugal. A
aplicação de sanções, que deteriora a relação entre instituições europeias e
Estados soberanos, teria um efeito económico, orçamental e reputacional muito
negativo na economia, no investimento, no emprego e, portanto, nas próprias finanças
públicas de Portugal.
Assim, a Assembleia da República,
nos termos regimentais e constitucionais aplicáveis, pronuncia-se no sentido de
considerar infundada, injusta, incompreensível e contraproducente uma eventual
decisão da Comissão Europeia de propor sanções ao país por incumprimento do
Pacto de Estabilidade e Crescimento.
Parece que foi tendo em conta aquele último parágrafo
igual no texto dos dois votos que Ferro Rodrigues declarou que “no Parlamento
há um consenso bastante verificável contra a aplicação de sanções a Portugal” –
palavras que foram aplaudidas por alguns deputados desde o CDS-PP ao BE. Porém,
as votações ocorreram após discussão muito dura entre as bancadas da esquerda e
da direita parlamentar, com intervenções interrompidas por protestos de um e de
outro lado.
Para justificar a necessidade duma posição unânime e inequívoca
perante o exterior socorro-me de dois exemplos: um da vida animal e outro da
tática militar.
Bois/vacas juntos no prado, às
vezes, guerreiam-se, mas, ao pressentirem o inimigo externo, fazem
instintivamente roda, voltam os posteriores respetivos para o centro e as
“armações” para a periferia a fim de efetuarem a defesa comum; e as colunas
militares de infantaria, embora disciplinarmente alinhadas na marcha, procedem
de modo similar (salvaguardadas as diferenças de armas) quando sentem a emboscada,
desenvolvendo rajadas de metralhadora a diversos níveis acima do solo, cobrindo
assim todo o espectro direcional donde possa estar postado o inimigo.
Ora, assim deveriam fazer
metaforicamente nossos representantes e defensores quando está em causa a nossa
soberania residual, mas soberania, só porque aderimos de boa-fé à UE e ao Euro
e de boa-fé aceitamos as condições do Tratado Orçamental e, dada a nossa
posição periférica não temos conseguido controlar os fatores condicionantes da
economia e do equilíbrio das contas.
Será que a solidariedade só
existe para acorrer às necessidades dos outros?
***
Depois de o Presidente da Comissão Europeia ter declarado que
a aplicação de sanções a Portugal e a Espanha seria problemática, embora em
tese quem não cumpre deva ser objeto de sanções, e de o Presidente do
Parlamento Europeu ter dito que não concordava com a aplicação das sanções aos
dois países, vem agora o secretário-geral da OCDE juntar-se ao clamor
contra a aplicação das sanções. Vem, antes reclamar a “aposta no investimento e
crescimento”. “Parece-me que ninguém deve ser punido”,
vincou Ángel Gurría, ao discursar em Paris na apresentação de dois relatórios
económicos anuais da OCDE: um sobre a União Europeia (UE); e outro virado para a zona euro. E salientou o “grande esforço
de consolidação orçamental” que Espanha e Portugal fizeram, estando entre os
países que “mais” reformas tiveram de aplicar em virtude da crise económica e
financeira dos últimos anos.
O próprio presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, que
avisou, em meados de maio, que havia “sérias razões” para sancionar Portugal e
Espanha por incumprimento das metas do défice em 2015, referiu que o
Eurogrupo “vai ouvir primeiro a Comissão” e só depois decidirá.
E, como sabemos, a 18 de maio, Bruxelas adiou para julho a
decisão que poderia ser no sentido da aplicação de sanções, avisando que,
até lá, o Governo teria que pôr mãos à obra para convencer a Comissão da
“injustiça” da aplicação de sanções.
Por sua vez, Mário Centeno desvalorizou as ameaças desde o
primeiro momento. O Ministro das Finanças assegurou que não ficou “de
todo” preocupado com as declarações do presidente do Eurogrupo sobre a
possibilidade da aplicação de sanções a Portugal por incumprimento do défice em
2015. A este respeito, o Ministro declarou em maio:
“O
país nunca saiu do caminho certo. O governo sabe exatamente o que tem que fazer
para manter o país numa trajetória de consolidação das suas contas públicas,
trazendo o crescimento que, no final do ano passado, parou”.
***
Resta saber se com os dois textos se cumprirá o desejo de
Marcelo – “o que interessa é que lá fora se ouça que todos os partidos
políticos pensam o mesmo” – ou se bastam para que a Comissão Europeia se
convença da injustiça da aplicação de sanções a Portugal.
Insisto
que teria sido melhor que o Parlamento tivesse produzido um voto único ou que
os deputados tivessem votado os dois por unanimidade. Perante o exterior,
fala-se a uníssono e não à portuguesa, cada um para seu lado!
2016.06.14 – Louro de Carvalho
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