segunda-feira, 27 de junho de 2016

Eh, eh, sou eu quem decide!

A sintaxe não foi a plasmada em epígrafe, mas a semântica anda por aí. Pela SIC passou recentemente um programa “Eu é que sou o Presidente da Junta!”, como passou, há anos, um outro, “O juiz decide”, que terminava com o estribilho rifónico “O juiz decidiu, está decidido!”. E, na Administração Pública ou na empresa, não raro, o diretor, administrador ou algo que o valha é apanhado, à falta de melhor, com o argumento autoritário (que não de autoridade): “Eu sou o diretor (presidente/administrador…) e eu decido assim”!
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No encerramento da X Convenção do Bloco de Esquerda (BE), a líder reconfirmada, Catarina Martins, deixou aviso a António Costa e à UE, ou seja, anunciou que o BE entende que exigirá um referendo sobre a permanência de Portugal na UE se a Comissão Europeia decidir pela aplicação de sanções a Portugal em razão do desempenho orçamental de 2015:
“Se a Comissão Europeia tomar uma iniciativa gravíssima de aplicar uma sanção inédita, inaceitável e provocatória de penalizar Portugal pelo mau desempenho de Pedro Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque, a Comissão declara guerra a Portugal”.
E prosseguiu, dizendo que, se a Comissão “aplicar uma sanção por causa desses anos (2015 é o 1.º ano inteiro sem troika – reflexo da caminhada do triénio anterior) e a usar, para pressionar o Orçamento do Estado para 2017 exigindo mais impostos”, também “declara guerra a Portugal”. Ora, para que a UE não continue a pisar-nos, Portugal, naquele cenário, “só pode responder recusando as sanções e o arbítrio e anunciar que está disposto a colocar na ordem do dia um referendo para pôr termo à chantagem”, a exemplo do que fez o Reino Unido, em que venceu a opção que defende a saída da União Europeia (UE) – o que representa um precedente e “outros países poderão decidir por referendo o que querem fazer na União Europeia”.
Por outro lado, mostrou-se crítica face à atitude de Merkel em convocar os ditos seis fundadores da CEE, “uma instituição fantasma que já nem sequer existe”, para uma reunião, que se realizou a 25 de junho, de aceleração de resposta ao “Brexit”. Em contraponto à tendência da direita e seus aliados de responder ao referendo britânico com a alegada corrida “para mais integração”, anotou:
“O pior da UE é mesmo a sua chefia, são perigosos e mostram todos os dias que estão dispostos a destroçar a Europa para aguentar uma política que assusta os povos”.
E porfiou que “Portugal não tem de assistir em silêncio a uma vingança contra a democracia”. Na verdade, “o Reino Unido decidiu sair e tem o direito de sair. Se a UE ofereceu a Cameron “uma exceção contra os imigrantes, não pode agora inventar regras quando violou as regras essenciais”, recordou criticando o acordo celebrado com Cameron pelo Conselho a 18-19 de fevereiro deste ano.
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Às declarações feitas por Catarina Martins em nome do BE, opuseram-se diversas posições marcadas pelo denominador comum da contestação ao referendo. E sobre o referendo é de salientar a declaração do Presidente da República, que tinha, do meu ponto de vista, reagido de forma exemplar à notícia do “Brexit” na manhã do dia 24.
Sobre o “Brexit”, Marcelo sublinhara o desconforto da decisão, o respeito pela vontade soberana do povo do Reino unido, a resposta a dar de forma rápida e coesa pelo reforço do projeto europeu e as consequências económicas nos diversos países da Europa; e dissera esperar as condições de tranquilidade dos compatriotas que trabalham no reino Unido, bem como evocou a velha aliança e a factualidade de o Reino continuar a pertencer à Europa, devendo ser definidas da melhor forma as relações que essa pertença implica.
Sobre a posição do BE e o referendo, disse aos jornalistas em Torres Vedras, no passado dia 26, que não lhe competia comentar convenções e congressos dos partidos, mas atirou que um referendo em Portugal como aconteceu em Inglaterra “é uma questão que não se põe”, aduzindo que Portugal “quer continuar na União Europeia”, que “Portugal está na União Europeia, sente-se bem na União Europeia e quer continuar na União Europeia”. E ainda: “Quanto ao resto, a Constituição diz que a decisão sobre o referendo é do Presidente da República e, portanto, é uma questão que não se põe neste momento”.
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É verdade que, segundo a CRP, a decisão sobre o referendo é uma competência do Presidente da República. Porém, esta verdade dita assim, sem o seu contexto, pode levar a equívocos. Por exemplo, o Presidente não pode tomar a iniciativa do referendo, nem é a ele que os cidadãos ou os partidos se devem dirigir para pedir um referendo.
Com efeito, a alínea c) do art.º 134.º da CRP estabelece como competência para a prática de atos próprios do Presidente: “submeter a referendo questões de relevante interesse nacional, nos termos do artigo 115.º, e as referidas no n.º 2 do artigo 232.º e no n.º 3 do artigo 256.º”. Ora, outras competências o mesmo artigo consagra como competências para a prática de atos próprios do Presidente e em que os seus poderes são bem condicionados. Por exemplo, só excecionalmente recusa a promulgação de lei ou decreto-lei (observado o estipulado no art.º 136.º) e não lhe cabe tomar qualquer iniciativa legislativa ou regulamentar; dificilmente declara o estado de sítio ou o estado de emergência (e tem de observar o estipulado no art.º 19.º, que impõe limitações e precauções, e o art.º 138.º, que impõe a audição do Governo e autorização da AR); como comandante supremo das forças armadas não tem funções operacionais e a sua ação tem de estar articulada com a definição da política geral definida pelo Governo (vd art.º 182.º); indultar ou comutar penas implica a audição do Governo; requerer ao Tribunal Constitucional (TC) a apreciação da constitucionalidade das leis acontece esporadicamente quando o Presidente tem dúvidas fundadas; e a pronunciar-se sobre as emergências graves da República tem de ser comedido para não banalizar a pronúncia e não correr o risco de não ser escutado quando o superior interesse do país o postular. O que pode fazer mais livremente será dar condecorações nos termos da lei.
Quanto ao referendo, o art.º 115.º prevê que “os cidadãos eleitores recenseados no território nacional” e os residentes no estrangeiro (tendo em conta a existência de laços de efetiva ligação à comunidade nacional, nos termos do n.º 2 do art.º 121.º) “podem ser chamados a pronunciar-se diretamente, a título vinculativo, através de referendo, por decisão do Presidente da República, mediante proposta da Assembleia da República ou do Governo, em matérias das respetivas competências, nos casos e nos termos previstos na Constituição e na lei”. O referendo pode também “resultar da iniciativa de cidadãos dirigida à Assembleia da República, que será apresentada e apreciada nos termos e nos prazos fixados por lei” (vd n.º e n.º 2).
Compete, nos termos do n.º 2 do art.º 232.º, à Assembleia Legislativa da região autónoma respetiva “apresentar propostas de referendo regional, através do qual os cidadãos eleitores recenseados no respetivo território possam, por decisão do Presidente da República, ser chamados a pronunciar-se diretamente, a título vinculativo, acerca de questões de relevante interesse específico regional”. Também o art.º 256.º prevê as condições de instituição em concreto das regiões administrativas e o modo de fazer a consulta aos eleitores para o efeito (decide o Presidente por proposta da AR nos termos da respetiva lei orgânica).
Os n.os 3, 4, 5 e 7 do art.º 115.º limitam e/ou excluem do referendo algumas matérias. O n.º 6 estabelece que um referendo “recairá sobre uma só matéria, devendo as questões ser formuladas com objetividade, clareza e precisão e para respostas de sim ou não, num número máximo de perguntas a fixar por lei, a qual determinará igualmente as demais condições de formulação e efetivação de referendos”. O n.º 8 estipula que o Presidente da República submete ao Tribunal Constitucional “a fiscalização preventiva obrigatória da constitucionalidade e da legalidade as propostas de referendo que lhe tenham sido remetidas pela AR ou pelo Governo”. E o n.º 10 estabelece que “as propostas de referendo recusadas pelo Presidente da República ou objeto de resposta negativa do eleitorado não podem ser renovadas na mesma sessão legislativa, salvo nova eleição da Assembleia da República, ou até à demissão do Governo”.
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Concluindo, a decisão do referendo é mesmo uma competência do Presidente da República no quadro das competências para a prática de atos próprios, mas tem de se encarar no contexto do equilíbrio ou contrapeso dos poderes. Implica a proposta da AR, do Governo ou da respetiva Assembleia Legislativa regional (em matérias de interesse regional) e a obrigatoriedade de fiscalização prévia da parte do TC. Ademais, o BE não mostrou ignorar as competências presidenciais, mas fez um aviso ao líder do partido do Governo, que também tem capacidade para, de certo modo, influenciar o agendamento das matérias na AR.  
Por isso, o Presidente não pode pôr-se em bicos de pés, pois, como se vê, o nosso sistema está longe de ser um sistema presidencialista. E, mesmo nos sistemas presidencialistas, o Presidente não pode fazer tudo o que quer. Veja-se o que se passa nos EUA e no Brasil. Porém, como diz o povo, “Presunção e água benta cada um toma a que quer”.

2016.06.27 – Louro de Carvalho  

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