A
sintaxe não foi a plasmada em epígrafe, mas a semântica anda por aí. Pela SIC
passou recentemente um programa “Eu é que
sou o Presidente da Junta!”, como passou, há anos, um outro, “O juiz decide”, que terminava com o estribilho
rifónico “O juiz decidiu, está decidido!”.
E, na Administração Pública ou na empresa, não raro, o diretor, administrador ou
algo que o valha é apanhado, à falta de melhor, com o argumento autoritário (que
não de autoridade): “Eu sou o diretor (presidente/administrador…)
e eu decido assim”!
***
No
encerramento da X Convenção do Bloco de Esquerda (BE), a líder reconfirmada, Catarina
Martins, deixou aviso a António Costa e à UE, ou seja, anunciou que o BE
entende que exigirá um referendo sobre a permanência de Portugal na UE se a Comissão
Europeia decidir
pela aplicação de sanções a Portugal em razão do desempenho orçamental de 2015:
“Se a Comissão Europeia tomar uma iniciativa gravíssima
de aplicar uma sanção inédita, inaceitável e provocatória de penalizar Portugal
pelo mau desempenho de Pedro Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque, a
Comissão declara guerra a Portugal”.
E prosseguiu, dizendo que, se a Comissão “aplicar uma
sanção por causa desses anos (2015 é o 1.º ano
inteiro sem troika – reflexo da caminhada do triénio anterior) e a usar, para
pressionar o Orçamento do Estado para 2017 exigindo mais impostos”, também “declara
guerra a Portugal”. Ora, para que a UE não continue a pisar-nos, Portugal, naquele
cenário, “só pode responder recusando as sanções e o arbítrio e anunciar que
está disposto a colocar na ordem do dia um referendo para pôr termo à chantagem”,
a exemplo do que fez o Reino Unido, em que venceu a opção que defende a saída
da União Europeia (UE) – o que
representa um precedente e “outros países poderão decidir por referendo o que
querem fazer na União Europeia”.
Por outro lado, mostrou-se crítica face à atitude de
Merkel em convocar os ditos seis fundadores da CEE, “uma instituição fantasma
que já nem sequer existe”, para uma reunião, que se realizou a 25 de junho, de aceleração
de resposta ao “Brexit”. Em contraponto à tendência da direita e seus aliados de
responder ao referendo britânico com a alegada corrida “para mais integração”,
anotou:
“O pior da UE é mesmo a sua chefia, são perigosos e
mostram todos os dias que estão dispostos a destroçar a Europa para aguentar uma
política que assusta os povos”.
E porfiou que “Portugal não tem de assistir em
silêncio a uma vingança contra a democracia”. Na verdade, “o Reino Unido
decidiu sair e tem o direito de sair. Se a UE ofereceu a Cameron “uma exceção
contra os imigrantes, não pode agora inventar regras quando violou as regras
essenciais”, recordou criticando o acordo celebrado com Cameron pelo Conselho a
18-19 de fevereiro deste ano.
***
Às declarações feitas por Catarina Martins em nome do
BE, opuseram-se diversas posições marcadas pelo denominador comum da contestação
ao referendo. E sobre o referendo é de salientar a declaração do Presidente da
República, que tinha, do meu ponto de vista, reagido de forma exemplar à
notícia do “Brexit” na manhã do dia 24.
Sobre o “Brexit”, Marcelo sublinhara o desconforto da
decisão, o respeito pela vontade soberana do povo do Reino unido, a resposta a
dar de forma rápida e coesa pelo reforço do projeto europeu e as consequências
económicas nos diversos países da Europa; e dissera esperar as condições de
tranquilidade dos compatriotas que trabalham no reino Unido, bem como evocou a
velha aliança e a factualidade de o Reino continuar a pertencer à Europa, devendo
ser definidas da melhor forma as relações que essa pertença implica.
Sobre a posição do BE e o referendo, disse aos jornalistas
em Torres Vedras, no passado dia 26, que não lhe competia comentar convenções e
congressos dos partidos, mas atirou que um referendo em Portugal como aconteceu em Inglaterra “é uma questão
que não se põe”, aduzindo que Portugal “quer continuar na União Europeia”, que
“Portugal está na União Europeia, sente-se bem na União Europeia e quer
continuar na União Europeia”. E ainda: “Quanto ao resto, a Constituição diz que
a decisão sobre o referendo é do
Presidente da República e, portanto, é uma questão que não se põe neste
momento”.
***
É verdade que, segundo a CRP, a decisão sobre o
referendo é uma competência do Presidente da República. Porém, esta verdade
dita assim, sem o seu contexto, pode levar a equívocos. Por exemplo, o Presidente
não pode tomar a iniciativa do referendo, nem é a ele que os cidadãos ou os
partidos se devem dirigir para pedir um referendo.
Com efeito, a alínea c) do art.º 134.º da CRP estabelece como competência
para a prática de atos próprios do Presidente: “submeter a referendo questões de
relevante interesse nacional, nos termos do artigo 115.º, e as referidas no n.º
2 do artigo 232.º e no n.º 3 do artigo 256.º”. Ora, outras competências o mesmo artigo consagra
como competências para a prática de atos próprios
do Presidente e em que os seus poderes são bem condicionados. Por exemplo, só excecionalmente
recusa a promulgação de lei ou decreto-lei (observado o estipulado no art.º 136.º) e não lhe cabe
tomar qualquer iniciativa legislativa ou regulamentar; dificilmente declara o estado de sítio ou o estado de
emergência (e
tem de observar o estipulado no art.º 19.º, que impõe limitações e precauções,
e o art.º 138.º, que impõe a audição do Governo e autorização da AR); como comandante
supremo das forças armadas não tem funções operacionais e a sua ação tem de
estar articulada com a definição da política geral definida pelo Governo (vd art.º 182.º); indultar ou comutar penas implica a audição do Governo; requerer
ao Tribunal Constitucional (TC) a apreciação da
constitucionalidade das leis acontece esporadicamente quando o Presidente tem
dúvidas fundadas; e a pronunciar-se sobre as emergências graves da República
tem de ser comedido para não banalizar a pronúncia e não correr o risco de não
ser escutado quando o superior interesse do país o postular. O que pode fazer
mais livremente será dar condecorações nos termos da lei.
Quanto
ao referendo, o art.º 115.º prevê que “os
cidadãos eleitores recenseados no território nacional” e os residentes no estrangeiro
(tendo
em conta a existência de laços de efetiva ligação à comunidade nacional, nos
termos do n.º 2 do art.º 121.º)
“podem ser chamados a pronunciar-se diretamente, a título vinculativo, através
de referendo, por decisão do Presidente da República, mediante proposta da Assembleia
da República ou do Governo, em matérias das respetivas
competências, nos casos e nos termos previstos na Constituição e na lei”. O referendo pode também “resultar da iniciativa
de cidadãos dirigida à Assembleia da República, que será apresentada e
apreciada nos termos e nos prazos fixados por lei” (vd
n.º e n.º 2).
Compete, nos termos do n.º 2 do
art.º 232.º, à Assembleia Legislativa da região autónoma respetiva “apresentar
propostas de referendo regional, através do qual os cidadãos eleitores recenseados
no respetivo território possam, por decisão do Presidente da República, ser
chamados a pronunciar-se diretamente, a título vinculativo, acerca de questões
de relevante interesse específico regional”. Também o art.º 256.º prevê as
condições de instituição em concreto das regiões administrativas e o modo de
fazer a consulta aos eleitores para o efeito (decide o Presidente
por proposta da AR nos termos da respetiva lei orgânica).
Os n.os 3, 4, 5 e 7 do
art.º 115.º limitam e/ou excluem
do referendo algumas matérias. O n.º 6
estabelece que um referendo “recairá sobre uma só matéria, devendo
as questões ser formuladas com objetividade, clareza e precisão e para
respostas de sim ou não, num número máximo de perguntas a fixar
por lei, a qual determinará igualmente as demais condições de formulação e efetivação
de referendos”. O n.º 8 estipula que o Presidente da República submete ao Tribunal
Constitucional “a fiscalização preventiva obrigatória da
constitucionalidade e da legalidade as propostas de referendo que lhe tenham sido
remetidas pela AR ou pelo Governo”. E o n.º 10 estabelece que “as propostas de referendo recusadas
pelo Presidente da República ou objeto de resposta negativa do eleitorado não
podem ser renovadas na mesma sessão legislativa, salvo nova eleição da Assembleia
da República, ou até à demissão do Governo”.
***
Concluindo, a decisão do referendo é mesmo uma
competência do Presidente da
República no
quadro das competências para a prática de atos próprios, mas tem de se encarar
no contexto do equilíbrio ou contrapeso dos poderes. Implica a proposta da AR,
do Governo ou da respetiva Assembleia Legislativa regional (em matérias de interesse regional) e a obrigatoriedade
de fiscalização prévia da parte do TC. Ademais, o BE não mostrou ignorar as competências
presidenciais, mas fez um aviso ao líder do partido do Governo, que também tem
capacidade para, de certo modo, influenciar o agendamento das matérias na AR.
Por isso, o Presidente não pode pôr-se em bicos de pés,
pois, como se vê, o nosso sistema está longe de ser um sistema presidencialista.
E, mesmo nos sistemas presidencialistas, o Presidente não pode fazer tudo o que
quer. Veja-se o que se passa nos EUA e no Brasil. Porém, como diz o povo, “Presunção e água benta cada um toma a que
quer”.
2016.06.27 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário