O Papa
dedica à homilia os n.os 135 a 159 (25 números) da sua exortação apostólica Evangelii Gaudium (tido como o documento programático do seu pontificado), que configuram os subcapítulos II (a homilia) e III (a preparação da pregação) do capítulo III – o anúncio do Evangelho. Responde a
reclamações da parte de fiéis e aborda esta modalidade de pregação, situando-a
no contexto que lhe é próprio, o contexto litúrgico. Não se trata de sessão de
catequese nem de aula dum curso sistemático. Configura, sim, a explicitação da
Palavra de Deus festejada e oferecida “aqui e agora” à reflexão dos
participantes na celebração para seu alimento espiritual na resposta às suas
ansiedades e na suscitação do compromisso para com a vida.
Francisco
aborda com mestria a homilia em si própria (135-144) e a sua preparação (145-159).
Agora, que
se relevanta o problema de quem não deve fazer a homilia, torna-se oportuno
revisitar o célebre documento. Ficam a negrito os subtítulos de orientação.
***
Para
Francisco, a homilia, a que os fiéis dão muita importância, é “o ponto de
comparação para avaliar a proximidade e a capacidade de encontro do Pastor com
o seu povo” e pode ser “uma experiência intensa e feliz do Espírito, um consolador
encontro com a Palavra, uma fonte constante de renovação e crescimento”. (cf 135).
Toda a
pregação se funda “na convicção de que é Deus que deseja alcançar os outros
através do pregador e de que Ele mostra o seu poder através da palavra humana”.
Com a palavra, o Senhor conquistou o coração da gente. De todas as partes,
vinham para O ouvirem (cf Mc 1,45). Ficavam maravilhados, ‘bebendo’ os seus ensinamentos
(cf Mc 6,2), pois lhes falava como quem tem autoridade (cf Mc 1,27). E os Apóstolos, que Jesus estabelecera
‘para estarem com Ele e para os enviar a pregar’ (Mc 3,14), atraíram para o seio da Igreja todos os povos com a
palavra (cf Mc 16, 15.20). (cf 136). No contexto da Liturgia, a
homilia reveste-se de valor especial em razão do seu enquadramento eucarístico,
superando toda a catequese por ser o momento mais alto do diálogo entre Deus e
o seu povo, antes da comunhão sacramental. A homilia retoma este diálogo que já
está estabelecido entre o Senhor e o seu povo. “E o que prega deve conhecer o
coração da sua comunidade para identificar onde está vivo e ardente o desejo de
Deus e também onde é que este diálogo de amor foi sufocado ou não pôde dar
fruto”. (cf 137).
A homilia,
não sendo espetáculo, “não corresponde à lógica dos recursos mediáticos”, mas
dá “fervor e significado à celebração”. O pregador pode ser capaz de manter
vivo o interesse das pessoas por uma hora, mas então a sua palavra
sobrepor-se-á à celebração da fé e lesará a harmonia entre as partes da
celebração litúrgica e o seu ritmo. A pregação realizada no contexto da
Liturgia incorpora-se como parte da oferenda que se entrega ao Pai e como
mediação da graça que Cristo derrama na celebração – o que exige que a pregação
oriente a assembleia e o pregador para a comunhão com Cristo na Eucaristia, que
transforme a vida. (cf 138).
A homilia é como que a conversa da mãe. Com
efeito, a Igreja, qual mãe
que prega ao povo, sabe que o filho confia em que tudo o que se lhe ensina é
para seu bem. E a boa mãe reconhece o que Deus semeou no seu filho, escuta as
suas preocupações e aprende com ele. Assim, “a pregação cristã encontra, no
coração da cultura do povo, um manancial de água viva tanto para saber o que se
deve dizer como para encontrar o modo mais apropriado para o dizer”. (cf 139). “Este âmbito materno-eclesial, onde se desenrola o
diálogo do Senhor com o seu povo, deve ser encarecido e cultivado através da
proximidade cordial do pregador, do tom caloroso da sua voz, da mansidão do
estilo das suas frases, da alegria dos seus gestos”. (cf 140).
São muitos e
variados os recursos empregues pelo Senhor para dialogar com o seu povo. E Jesus
prega com este espírito magnânimo do Pai, que revela os mistérios do Reino aos
pequeninos (cf Lc 10,21). Ora, se o Senhor Se compraz em dialogar
com o seu povo, compete ao pregador fazer sentir este ao povo gosto do Senhor.
(cf 141).
Depois, a homilia como diálogo é muito mais do que a comunicação duma verdade: “realiza-se pelo
prazer de falar e pelo bem concreto que se comunica através das palavras entre
os que se amam”. Por isso, a pregação puramente moralista ou doutrinadora e a
que se transforma em lição de exegese reduzem esta comunicação entre os corações
que se verifica na homilia, que deve ter um caráter quase sacramental e avançar
através de palavras que abrasam os corações: ‘A fé surge da pregação, e a
pregação surge pela palavra de Cristo” (Rm 10,17). (cf 142).
Além disso, é
preciso sintetizar. “O desafio duma pregação inculturada consiste em transmitir
a síntese da mensagem evangélica, não ideias ou valores soltos”. E “a diferença
entre fazer luz com síntese e fazê-lo com ideias soltas é igual à que existe
entre o ardor do coração e o tédio”. (cf 143).
E é preciso “falar com o coração”, o que implica mantê-lo “ardente” e “iluminado
pela integridade da Revelação e pelo caminho que essa Palavra percorreu no
coração da Igreja e do povo fiel ao longo da história”. A identidade cristã “é
aquele abraço baptismal que o Pai nos deu em pequeninos” e que nos faz “anelar,
como filhos pródigos e prediletos em Maria, pelo outro abraço, o do Pai
misericordioso que nos espera na glória”. (cf 144).
***
Sobre a
importante preparação da pregação, o Papa diz requerer um tempo longo de
estudo, oração, reflexão e criatividade pastoral. Nestes termos, ousa propor um
itinerário de preparação da homilia, pois “a confiança no Espírito Santo que
atua na pregação não é meramente passiva, mas ativa e criativa, o que “implica oferecer-se
como instrumento (cf Rm 12,1), com todas as próprias capacidades, para que possam
ser utilizadas por Deus”. (cf 145).
Depois da
invocação do Espírito Santo, requer-se toda a atenção ao texto bíblico, que deve ser o fundamento da pregação e do exercício
do culto
da verdade. “É a
humildade do coração que reconhece que a Palavra nos transcende, que somos, não os árbitros nem os proprietários, mas os
depositários, os arautos e os servidores”. Interpretar o texto bíblico
precisa de paciência e de “pôr de
parte toda a ansiedade e atribuir-lhe tempo, interesse e dedicação gratuita”, sem buscar “resultados rápidos, fáceis ou imediatos”. Com
isto, a preparação da pregação requer amor. Só se dedica um tempo gratuito e
sem pressa às coisas ou às pessoas que se ama; e trata-se de amar a Deus, que nos
quis falar. A partir deste
amor, o crente detém-se pelo tempo necessário, com a atitude do discípulo: Fala, Senhor, que o teu servo escuta» (1Sm 3,9). (cf 146).
Antes de
mais, temos de estar seguros de compreender o significado das palavras que lemos, pois o texto bíblico tem
milénios, com linguagem diferente da que hoje usamos. Embora seja importante a
mobilização dos recursos da análise literária, o objetivo não é compreender
todos os detalhes dum texto; “o mais importante é descobrir a mensagem principal, a mensagem que
confere estrutura e unidade ao texto” – o que exige o esforço adequado de
entendimento do pregador conforme com o sentido e as finalidades do mesmo
texto. (cf 147).
Para se
entender cabalmente a mensagem central dum texto, é preciso pô-lo em ligação
com o ensinamento da Bíblia inteira, transmitida pela Igreja. Este importante princípio
da interpretação bíblica tem em conta que o Espírito Santo não inspirou só uma
parte, mas a Bíblia inteira, e que o povo cresceu na sua compreensão da vontade
de Deus a partir da experiência vivida. Isto, porém, não legitima o esvaimento
da acentuação específica do texto a pregar, sendo um dos defeitos da pregação o
não transmitir a força própria do texto que foi proclamado. (cf 148).
A personalização da Palavra postula
que o pregador seja o
primeiro a desenvolver uma grande familiaridade pessoal com a Palavra de Deus,
não lhe bastando conhecer o aspeto linguístico ou exegético, mas necessitando
de “se abeirar da Palavra com o coração dócil e orante”, para que “ela penetre
a fundo nos seus pensamentos e sentimentos e gere nele uma nova mentalidade”.
É de recordar
que “a maior ou menor santidade do ministro influi sobre o anúncio da Palavra”
e que “falamos, não para agradar aos homens, mas a Deus que põe à prova os
nossos corações” (1 Ts 2,4). Ademais,
porque “a boca fala da abundância do coração” (Mt 12,34), a Palavra dominical ressoará em todo o esplendor no
coração do povo, se ressoar assim no coração do Pastor. (cf 149).
Jesus
irritava-Se com os mestres muito exigentes para com os outros, que ensinavam a
Palavra de Deus, mas não se deixavam iluminar por ela (vd Mt 23,4). E o apóstolo Tiago exortava a que
não houvesse muitos a pretender ser mestres, pois esses terão um julgamento
mais severo” (cf Tg 3,1). Assim, “quem quiser pregar, deve
primeiro estar disposto a deixar-se” tocar e “trespassar” pela Palavra e “fazê-la
carne na sua vida concreta”. (cf 150). Não se
nos pede “que sejamos imaculados”, mas que “não cessemos de melhorar, viver o
desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho e não deixar cair os
braços – seguros de que Deus nos ama, de que Jesus Cristo nos salvou, de que o
seu amor tem sempre a última palavra”. (cf 151).
O Papa faz
jus à leitura espiritual a partir do texto bíblico:
“Há uma modalidade concreta para
escutarmos aquilo que o Senhor nos quer dizer na sua Palavra e nos
deixarmos transformar pelo Espírito: designamo-la por lectio divina.
Consiste na leitura da Palavra de Deus num tempo de oração, para lhe permitir
que nos ilumine e renove. Esta leitura orante da Bíblia não está separada do
estudo que o pregador realiza para individuar a mensagem central do texto;
antes, pelo contrário, é dela que deve partir para procurar descobrir aquilo
que essa mesma mensagem tem a dizer à sua própria vida.” (152).
Deve
partir-se do sentido literal, para não se cair na tentação de utilizar o texto para
o que nos convém, para confirmar as nossas próprias decisões. Não se pode “usar
o sagrado para proveito próprio e passar esta confusão para o povo de Deus”. (cf 152). Fazer uma leitura tranquila do texto na presença de
Deus implica interrogarmo-nos sobre as incidências pessoais do texto na nossa
vida, resistindo às tentações de tédio e amuo, de aplicação exclusiva aos
outros ou de pensar que Deus exige uma decisão não consentânea com as nossas
possibilidades. (cf 153).
Também o
pregador não pode deixar de pôr-se à escuta do povo para descobrir o que
os fiéis precisam de ouvir. Se o pregador é um contemplativo da Palavra, é
também um contemplativo do povo. Assim, “descobre as aspirações, as riquezas e
as limitações, as maneiras de orar, de amar, de encarar a vida e o mundo, que
caraterizam este ou aquele aglomerado humano, prestando atenção ao povo concreto com os seus sinais e símbolos e
respondendo aos problemas que apresenta”. Tem de “relacionar a mensagem do
texto bíblico com uma situação humana”, com “uma experiência que precisa da luz
da Palavra”. E fá-lo-á, não por “uma atitude oportunista ou diplomática”, mas
por um motivo profundamente religioso e pastoral. Procura-se descobrir “o
que o Senhor tem a dizer nessas
circunstâncias”. É a promoção do exercício de discernimento
evangélico, no qual se procura reconhecer – à luz do Espírito – o “apelo” que
Deus faz ressoar na própria situação histórica. (cf 154). Nesta busca, é possível recorrer apenas a alguma experiência humana
frequente, “mas faz falta intensificar a sensibilidade para se reconhecer o que
isso realmente tem a ver com a vida das pessoas”. E “nunca se deve responder a perguntas que ninguém
se põe, nem convém fazer a crónica da atualidade para despertar interesse”
(a homilia não é um
espetáculo televisivo).
(cf 155).
No atinente aos recursos
pedagógicos, Francisco adverte
que alguns pensarão que são “bons pregadores por saberem o que devem dizer, mas descuidam o como, a forma concreta de
desenvolver uma pregação”. Ora, “a
preocupação com a forma de pregar também é uma atitude profundamente espiritual”,
pois consiste em “responder ao amor de Deus, entregando-nos com todas as nossas
capacidades e criatividade à missão que Ele nos confia” e “é um exímio
exercício de amor ao próximo, porque não queremos oferecer aos outros algo de
má qualidade” (cf 156). Um recurso é a utilização de
imagens. “Uma imagem fascinante faz com que se sinta a mensagem como algo
familiar, próximo, possível, relacionado com a própria vida” e pode “levar a
saborear a mensagem que se quer transmitir”, despertar um desejo e motivar a
vontade na direção do Evangelho. Uma boa homilia deve conter “uma ideia, um
sentimento, uma imagem”. (cf
157).
Outro
requisito pedagógico é a simplicidade. Já Paulo VI dizia que os fiéis “esperam
muito desta pregação e dela poderão tirar fruto, se for simples, clara, direta,
adaptada”. E, se a simplicidade
decorre da postura, também decorre da linguagem utilizada: “linguagem que os
destinatários compreendam, para não se correr o risco de se falar ao vento”. O
uso frequente de palavras aprendidas pelo pregador nos seus estudos e em certos
ambientes, mas que não fazem parte da linguagem comum dos ouvintes, põe em
risco a eficácia da homilia. O maior risco dum pregador é habituar-se à sua
própria linguagem (termos
próprios da teologia ou da catequese, cujo significado não é compreensível para
a maioria), pensando que
todos a usam e compreendem. Ora, para se poder chegar até aos outros com a
Palavra, “deve-se escutar muito”, “partilhar a vida das pessoas e prestar-lhes
benévola atenção”. (cf
158). Outra
caraterística a enformar a homilia é a linguagem positiva: não dizer “tanto o
que não se deve fazer”, mas sobretudo propor “o que podemos fazer melhor. E, se
aponta algo negativo, deve-se sempre procurar mostrar um valor positivo que
atraia, para não se ficar pela queixa, pelo lamento, pela crítica ou o pelo
remorso. Ademais, uma pregação positiva, não nos deixando “prisioneiros da
negatividade”, “oferece sempre a esperança, orienta para o futuro”.
Por fim, vem
a recomendação de os sacerdotes, diáconos e leigos se reunirem periodicamente
para encontrarem, juntos, os recursos que tornem mais atraente a pregação. (cf 159).
***
Gostaria
de perceber por que razões alguns sacerdotes não gostam de fazer homilia ou a
deixam só para domingos e festas e não repartem o pão personalizado da Palavra de
Deus com os participantes na missa quotidiana, como faz usualmente este Papa – tendo
em conta os ingredientes que Francisco v~e como necessários a esta modalidade de
pregação celebrativa.
2016.06.09 – Louro de
Carvalho
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