De acordo com um documento divulgado hoje pela
ECRI (Comissão
Europeia contra o Racismo e a Intolerância), um organismo
independente do Conselho da Europa, especializado nas questões de luta contra o
racismo e intolerância, Portugal não pôs em prática (ou só o fez
parcialmente) as medidas
recomendadas sobre comunidades ciganas, continuando a faltar a recolha de dados
e a simplificação de procedimentos.
A
recomendação de tais medidas por aquele organismo vem na sequência de relatório
(o quarto
relatório sobre o país) produzido
já em 2013. Dois anos depois da publicação do relatório, a ECRI, que fez o
acompanhamento dessas recomendações, chegou à conclusão de que algumas não
foram aplicadas, enquanto outras o foram apenas parcialmente. A ECRI salienta,
desde logo, a questão da recolha de dados e lembra que incitara as autoridades
a desenvolverem um sistema de monitorização que recolhesse dados – fosse por
autoridades governamentais, fosse por instituições académicas – e mostrasse os grupos
que são alvo de discriminação. Ora, as autoridades portuguesas referiram a
criação do Observatório das Comunidades
Ciganas, que realizou um estudo nacional, e apontaram o Observatório das Migrações, cuja ação
tem ajudado a melhor definir, aplicar e avaliar políticas com vista à
integração dos imigrantes.
Embora reconheça
e elogie os passos lançados na recolha de dados por aqueles dois observatórios,
todavia, a ECRI acusa a falta de um sistema de monitorização que possibilite a
recolha de dados que indiquem a eventual existência de grupos, em particular,
que estejam em desvantagem ou sejam discriminados. Por outro lado, o documento
daquele organismo do Conselho da Europa refere:
“Além disso, o estudo [nacional] referido não faz um retrato completo da
situação das comunidades ciganas no país, já que apenas metade dos municípios
foram envolvidos. Nesse sentido, a ECRI entende que esta recomendação foi apenas
parcialmente implementada”.
Em 2013, fora
“fortemente recomendado” a Portugal a simplificação e a aceleração dos
procedimentos relativos à apresentação de queixas ao ACM (Alto Comissariado
para as Migrações), devendo
as autoridades, nesse âmbito, ponderar formas de pôr em prática “o princípio da partilha do ónus da prova”.
Porém, as autoridades nacionais informaram que estão em vias de publicar uma lei
contra a discriminação, mas, como “não deram qualquer indicação sobre se a nova
lei introduz alterações que simplifiquem e acelerem os procedimentos”, a ECRI
entende que as preditas recomendações não foram adotadas. Ademais, aquele
organismo europeu recorda que pediu a Portugal que eliminasse todas e quaisquer
barreiras físicas que segregassem as comunidades ciganas, exemplificando com um
caso do distrito de Beja, em que um muro de cem metros de comprimento separava do
resto da população uma comunidade de cerca de 400 pessoas ciganas.
Apesar de, sobre
esta matéria, Portugal não ter dado formalmente qualquer esclarecimento
específico, chegou ao conhecimento da ECRI que o muro foi demolido pelos
próprios ciganos e que, na sequência desse facto, a Câmara Municipal de Beja,
juntamente com várias associações, tomou a iniciativa de melhorar o local. Quer
dizer: o resultado satisfatório foi obtido, não por medidas governativas, mas
por força da comunidade cigana. E, como a ECRI não obteve informação sobre a
existência de outras barreiras do género e do que eventualmente esteja a ser
feito para as derrubar, conclui que a medida foi apenas parcialmente aplicada.
***
Quem ler a informação da ECRI de forma apressada ou se ativer à titulagem
que os órgãos de comunicação social dão à informação provinda do Conselho da
Europa pode pensar que o país está a ser acusado de racismo e de discriminação
grosseira e generalizada, de forma e proporções muito diferentes de outros
países europeus. A própria Ministra da Justiça, na entrevista que deu à
“revista” do Expresso, do passado dia
4 de junho – com ideias sãs sobre Justiça e Política e ciente da exposição a
que estão sujeitos os tribunais, não pelos melhores motivos – sobre a
dificuldade ou não de um negro ter maior dificuldade em fazer o seu percurso ou
seguir a sua carreira, refere:
“As
questões colocam-se em termos raciais e sociais. Se fizer uma análise da
situação económica da população negra, provavelmente vai chegar à conclusão de
que vivem em condições de exclusão, que dificulta a progressão. O outro fator
também é importante, mas tem mais a ver com a pobreza.”
E, sendo-lhe perguntado se “tem
algum significado para si ser a primeira mulher negra a chegar ao Governo”,
responde que o convite lhe fora endereçado não por ser mulher ou por ser negra,
mas pelo seu passado e pela sua experiência profissional. Todavia, considera:
“Mas
não posso excluir que, do ponto de vista simbólico, num país como Portugal,
onde existe uma população negra que provavelmente tem relativamente a ela
própria uma ideia de exclusão ou de dificuldade de ascensão na pirâmide social,
isso possa efetivamente ter tido significado positivo para a comunidade. E se
isso tiver significado para a comunidade que o mundo não lhe está fechado, que
todos podem fazer o seu percurso, as suas carreiras, irem tão longe quanto
quiserem desde que trabalhem para isso, então acho que foi importante.”.
***
Parece-me que um fator a pesar na escolha de Francisca Van Dunem para a
pasta da Justiça terá sido o seu distanciamento crítico em relação à reforma da
Justiça, nomeadamente no âmbito do mapa judiciário e do aviso premonitório
sobre o CIS, a que se aliou uma certa liberalidade inclusiva professada, pelo
menos “ad hoc”, por António Costa. Mas
é de interesse refletir-se se os portugueses são ou não racistas.
Um estudo de opinião efetuado pela Eurosondagem SA
para o Expresso e SIC, de 7 a 13 de abril de 2016, cujos
resultados foram publicados no Expresso
de 16 de abril, dá-nos o panorama da posição dos portugueses sobre a matéria. Os resultados corroboram a ideia feita de que em
Portugal é política e socialmente incorreto assumir publicamente comportamentos
baseados na cor da pele. Assim é que 72,9% dos inquiridos responderam que não
são racistas e 11% não sabem se o são ou não respondem. Porém, 16,4% declararam
de forma brutal e surpreendente (não sei se o diriam num fórum ou num
debate público): “Sim, sou racista”.
Cerca de 60% dos inquiridos aceitariam que o filho ou a filha namorasse com
alguém negro, enquanto 26,1% não aceitariam apoiar tal hipótese e os restantes
14,4% não sabem ou não querem responder sobre o que fariam numa situação
dessas.
Sendo certo que a grande maioria dos portugueses não assume ser racista,
uma grande percentagem (43,7%) considera que o racismo existe em Portugal, mas
está nos “outros”.
***
Se atendermos ao discurso oficial do país de há pelo menos uma centúria de
anos, verificaremos que Portugal descola facilmente da imagem de país onde o
racismo exista. O tema nunca ou quase nunca está presente no discurso
institucional. Ao invés, até se quis fazer crer que éramos um país multirracial
e pluricontinental onde todos eram iguais perante a lei. E o colonialismo
português sempre se quis distinguir dos demais afirmando-se humanista e
civilizacional. Salazar chegou a responder à ONU que Portugal não tinha
colónias: os territórios ultramarinos tinham adquirido a sua independência juntamente
com a mãe-pátria.
O Ministério das Colónias publicava, em 1944, a obra Os Pretos em Portugal, do padre António Brásio, em cuja introdução
se lê:
“Apesar de enfermar de determinados vícios gerais ao
sistema, segundo o conceito e prática unanimemente aceites no tempo, a
escravatura para os portugueses revestiu sempre um caráter de humanitarismo que
se não encontra em qualquer outra parte do Globo. Ainda hoje, decorridos quatro
séculos de civilização e de cristianismo, o aglomerado supercivilizado
norte-americano, a pátria celebrada de todas as liberdades, o arauto
altissonante de proclamação dos direitos da consciência humana ultrajada, ainda
hoje ficava muito aquém do humanismo cristão com que os portugueses trataram o
preto.”.
Pelo menos, segundo os critérios de hoje, apor à escravatura um rótulo de
humanitarismo é uma aberração. Aliás, se a escravatura era humanitarista, é de
questionar o motivo por que Portugal quis dar cartas na sua abolição. Por este
andar iríamos justificar a reintrodução da pena de morte pelo seu caráter
humanitário!
E, se em Portugal não se assistiu à segregação racial do tipo norte-americano,
a verdade é que muita gente sentiu que era menos do que os outros em razão da
cor da pele. Pergunte-se quantos negros integravam os governos e os escalões de
topo de administração das colónias, mais tarde crismadas de províncias
ultramarinas. E hoje, em 42 anos de democracia, a população negra em Portugal
não para de crescer, mas os negros praticamente não ocupam lugares de destaque
ou de decisão. Quantos negros se sentaram ou sentam no hemiciclo da Assembleia
da República? O deputado do CDS Hélder Amaral, a este respeito, questiona:
“Não é estranho que o tal país mais simpático, mais
disponível para se cruzar com outras culturas e outras realidades, não tenha na
sua sociedade visível, seja na televisão, seja na política, seja no meio
universitário, a presença de algumas dessas pessoas?”.
É raríssimo encontrar um negro que não tenha episódios a contar sobre o
estigma da cor da pele.
O empresário Mikas Amaral, que arrancou com vários projetos de animação da
noite lisboeta, saiu de Moçambique para Portugal e só nessa altura percebeu que
os outros reparavam nele por ser negro, o que lhe provocou uma revolta que
desconhecia:
“Não há como definir o que eu sinto no momento em que
estou a sentir uma situação de racismo, não há definições porque mexe com as
emoções de uma forma tão profunda que não se pode definir”.
Romualda Fernandes, que tem trabalhado com minorias e imigrantes e chegou a
assessora da Assembleia Municipal de Lisboa, refere que já foi diversas vezes
obrigada a enfrentar as reações dos outros por causa da cor, reações de quem
estranha que, sendo negra e mulher, possa estar, por exemplo, em representação
do Estado português. “São situações que
causam muita dor, muito dolorosas do ponto de vista psicológico”, lamenta.
Johnson Semedo cresceu num bairro onde muitos dos negros que nasceram em
Portugal não se sentem portugueses. Sentiu as agruras do racismo. No entanto,
confessa:
“Já sofri muito racismo na vida, mas hoje não permito
isso, porquê? Porque aprendi que o ser branco, preto, amarelo ou azul a mim
é-me indiferente. A mim a diferença constrói-me e não me destrói.”
***
Como
é óbvio, urge combater todas as formas de discriminação: racismo, condição
social e/ou económica, orientação sexual, xenofobia, credo religioso e/ou
político, etnicofobia... Porém, é injusto fazer crer que Portugal é o país especial
a apontar em termos da discriminação a partir de um caso. Não ouso desfiar país
que esteja sem pecado a que atire a primeira pedra, porque já o fazem a torto e
a direito – vejam-se as constantes cominações da Comissão Europeia e demais
instituições da eurocracia. Não obstante, Portugal não está dispensado de
melhorar a legislação e os procedimentos e deve prestar informação objetiva e
total à Europa.
E
também cabe às minorias o esforço de conjugação entre integração e não preponderância.
2016.06.07 – Louro de Carvalho
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