Ao dizermos
o “Santo Padre” (no singular),
referimo-nos ao Papa, mas, quando dizemos “os “Santos Padres”, os “Padres de
Igreja”, ou simplesmente os “Padres” (em contexto teológico), evocamos os “mestres” da doutrina e da fé que
viveram, no Oriente
e no Ocidente, nos
primeiros séculos da Igreja (aproximadamente do século II ao
século VIII). Foram os
primeiros “construtores” da Teologia, os guias ou “pais” na elaboração da
doutrina da Igreja. “Padres” quer dizer “pais”, geradores ou fontes. Foram eles que firmaram os
conceitos da nossa fé, enfrentaram muitas heresias e, de certa forma, foram
responsáveis pelo que hoje se denomina de Tradição da Igreja, pois
indubitavelmente são a sua fonte mais rica.
O
cardeal Henri de Lubac dizia a seu respeito:
“Todas as vezes que, no
Ocidente, tem florescido alguma renovação, tanto na ordem do pensamento como na
ordem da vida – ambas estão sempre ligadas uma à outra – tal renovação tem
surgido sob o signo dos Padres”.
E João
Paulo II é explícito quando afirma, em relação aos Padres do Oriente:
“Recomenda-se, por isso, vivamente que os
católicos se aproximem com mais frequência destas riquezas espirituais dos
Padres do Oriente que levam o homem à contemplação das coisas divinas” (Carta Apostólica Orientale Lumen, 2 de maio de 1995).
O estudo dos
Padres designa-se “Patrologia” e a “Patrística”, mas em âmbitos
diferenciados.
A “Instrução
sobre o Estudo dos Padres da Igreja na Formação Sacerdotal” (IEP), publicada pela Congregação para a Educação
Católica, em 10 de novembro de 1989, distingue uma e outra, embora as relacione
intimamente. Assim, no n.º 49, afirma que “a Patrística ocupa-se do pensamento
teológico dos Padres” e “a Patrologia tem por objeto a vida e os escritos dos
mesmos”. Nestes termos, enquanto a Patrística
possui um caráter doutrinal e teológico, a Patrologia
move-se mais no contexto da indagação histórica e da informação bibliográfica e
literária. Uma e outra se distinguem, por sua vez, da Literatura Cristã Antiga, que se ocupa dos aspetos filológicos e
estilísticos dos escritores cristãos da antiguidade.
O termo Patrologia é criação do luterano J.
Gerhard (+ 1637), na sua obra póstuma Patrologia sive de
primitivae ecclesiae christianae doctorum vita ac lucubrationibus oposculum,
de 1653. O termo surge no contexto da Reforma e com o escopo de apelar para o
testemunho dos “Padres da Igreja” como forma de justificação das ideias
discutidas pelos reformadores e como resposta à “antiguidade” e consequente
“autoridade” dos mesmos reformadores. A partir de então, Patrologia passou a expressar, sobretudo, o estudo histórico e
literário (vida e obra) dos
escritores cristãos antigos, tratando-se assim de uma disciplina de caráter
eminentemente histórico, cujas principais funções são: dar a conhecer a vida e a formação dos Padres e outros escritores
eclesiásticos, tendo em conta o contexto que originou a composição das suas
obras; estabelecer a lista dos seus
escritos, distinguindo os verdadeiros dos falsos; apreciar o caráter e a importância das suas obras; e expor os aspetos doutrinais mais importantes.
Na sua
origem, o termo Patrística era um
adjetivo restritivo de Teologia. Surgiu também no século XVII, entre teólogos
luteranos e católicos, para subdividir a Teologia em bíblica, patrística, escolástica, simbólica e especulativa
ou sistemática. Assim, a Teologia Patrística tem por finalidade
aprofundar, com fidelidade, o pensamento dos Padres da Igreja, para participar da compreensão que eles
alcançaram dos mistérios da fé cristã. Não se trata, pois, de mera
sistematização do pensamento patrístico, mas de verdadeira teologia, dado que
procura compreender o mistério e o desígnio de Deus, tendo como fonte literária
e guia “Os Padres”.
Denomina-se
também de Patrística a época dos
Padres da Igreja que, no Ocidente, culminou no século VII, com Santo Isidoro de
Sevilha (+ 636) e, no Oriente, no século VIII, com São João Damasceno (+ 749).
São efetivamente 8 séculos muito ricos do ponto de vista da reflexão teológica,
constituindo, por isso, a época dos Padres,
o pilar da construção teológica posterior.
***
Os Padres da Igreja são eminentes cristãos (santos) que, pela sua fé, ensinamentos e coerência de vida,
geraram a Igreja (contribuíram para a sua edificação dotando-a das
estruturas primordiais) nos
primeiros séculos após Jesus Cristo e que permanecem como bússola e fonte
generosa para os católicos e demais cristãos. Formam um numeroso e distinto
grupo de verdadeiros pastores que conduziram fielmente os cristãos dos primeiros
séculos com a força da palavra e da vida de fé, consequente muitas vezes até à
morte heroica: papas como Clemente Romano (que, segundo o testemunho de santo Ireneu, conheceu os apóstolos Pedro e Paulo e conviveu com eles); teólogos, como o Doutor da Igreja João Damasceno; monges
eremitas, como Basílio Magno (que depois foi bispo); místicos, como Agostinho de Hipona (retórico, filósofo, teólogo e bispo); mártires, como Justino; e muitos outros, cuja
doutrina ortodoxa e vida santa foram reconhecidas pela Igreja. Foram santos que
irradiavam Cristo e impulsionavam a segui-Lo – e continuam a fazê-lo ainda
hoje.
São João
Paulo II escreve na carta apostólica Patres ecclesiae, publicada em
2 de janeiro de 1980, por ocasião do 16.º centenário da morte de São Basílio.
“Padres da Igreja são
chamados com razão aqueles santos que, com a força da fé, a profundidade e
riqueza dos seus ensinamentos, durante os primeiros séculos a geraram e
formaram” (Introdução).
São para o desenvolvimento da Igreja o que os
apóstolos são para o seu nascimento. Deram forma às instituições, à doutrina, à
liturgia, à oração, à espiritualidade. Estabeleceram o cânon dos livros
sagrados, compuseram as profissões básicas da fé, precisaram o depósito da fé
em confrontações com as heresias e a cultura da época (dando
origem, assim, à teologia), colocaram
as bases da disciplina canónica e criaram as primeiras formas da liturgia. Nos
elementos de consenso entre eles, são reconhecidos como fidelíssimos intérpretes
da doutrina que Jesus Cristo pregou. Segundo o papa polaco:
“Na verdade; foram 'padres' ou pais da Igreja porque deles, mediante o
Evangelho, recebeu ela a vida. E também seus construtores, porque deles – sobre
o fundamento único colocado pelos Apóstolos, que é Cristo – a Igreja de Deus
foi edificada nas suas estruturas fundamentais” (id et ib).
As caraterísticas
distintivas dos Padres da Igreja são: a antiguidade,
entre os séculos II e VIII; a ortodoxia,
o que significa que a sua doutrina é correta e aprovada pela Igreja; a ciência eminente, que os distingue do
comum dos mestres e pastores; a santidade
de vida, pois aliam à sua índole de mestres e a de testemunhas da fé; e a aprovação, pela Igreja que os reconhece
como Padres da Igreja.
Assim,
Orígenes e Tertuliano (que enfermam de heresia nalguns pontos) não são propriamente “Padres” da Igreja. Mas são apologistas
e escritores eclesiásticos.
Também os
doutores da Igreja podem não ser “Padres da Igreja”, se lhes faltar a antiguidade.
Doutor da Igreja (em latim, doctor – “professor”;
de docere – “ensinar”) é título conferido pela Igreja
cristãs a personalidades (poucas) de reconhecida importância, sobretudo nos campos da teologia ou doutrina católica. São requisitos: eminens doctrina (importância da doutrina); insignis vitae sanctitas (alto grau de santidade); Ecclesiae declaratio (proclamação da Igreja).
Outra
expressão da Teologia e da História da Igreja é Padres Apostólicos. São aqueles mestres famosos que receberam a
doutrina dos Apóstolos. Por exemplo: Inácio de Antioquia, Clemente Romano,
Policarpo de Esmirna.
***
Geralmente, são agrupados segundo sua procedência (Padres
latinos e Padres gregos) e a época
em que viveram, em três grandes grupos: os que viveram entre as primeiras
comunidades cristãs (até ao ano de 313), a
seguinte geração (até à metade do século V) e os que viveram posteriormente (até ao século VIII). Os que pertencem à 1.ª e 2.ª geração da Igreja,
depois dos apóstolos, recebem o nome de Padres
apostólicos e mostram como começa o caminho da Igreja na história. Os seus
escritos refletem diretamente o ensinamento dos apóstolos, como se vê, por
exemplo, neste fragmento da carta aos coríntios escrita por Clemente de Roma, o
3.º sucessor de Pedro:
“Unamo-nos, pois, àqueles a quem foi dada a graça da parte de Deus;
revistamo-nos de concórdia, mantendo-nos no espírito de humildade e
continência, afastados de toda murmuração e calúnia, justificados pelas nossas
obras e não pelas nossas palavras”.
Nesta primeira
fase, vivem também os Padres apologistas gregos e os mestres da Escola de Alexandria.
Entre outros, mencionam-se Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna, Justino
Mártir, Ireneu de Lyon, Tertuliano, Cipriano de Cartago, Clemente de Alexandria
e Orígenes.
A segunda
fase – entre os concílios de Niceia (325) e de Calcedónia (451), é
considerada o século de ouro dos Padres da Igreja. No século IV, com a chegada
da paz à Igreja no quadro do império romano, cresceu muito o número de
cristãos, mas irromperam as discrepâncias internas e heresias, face às quais os
Padres da Igreja fizeram valiosas
defesas da fé cristã e esclareceram os dogmas trinitários e cristológicos.
Neste grupo figuram, entre outros, Agostinho de Hipona, Hipólito, Gregório
Taumaturgo, Júlio o Africano, Dionísio o Grande, Atanásio, Teodoro da Síria,
João Crisóstomo, Gregório de Nissa e Jerónimo. Algumas das suas obras tornaram-se
textos de referência, não só para os cristãos de qualquer época, mas também
para a história da filosofia e da literatura. Milhões de pessoas identificaram-se
com a admiração de Santo Agostinho diante da grandeza do amor de Deus, ao ler
palavras suas como estas:
“Chamaste-me, clamaste, quebrantaste a minha surdez; brilhaste e
resplandeceste e me curaste a cegueira; exalaste o teu perfume e eu o aspirei,
e então te anseio; eu te provei, e agora sinto fome e sede de ti; tu me tocaste,
e desejei com ânsia a paz que procede de ti”.
Finalmente,
os Padres do terceiro grupo vivem o desmoronamento político da
parte ocidental de império romano e a irrupção do islão. Alguns escritores
aplicam a doutrina dos Padres anteriores a novas realidades, como a entrada dos
povos germânicos na Europa. Integram este grupo, entre outros, Gregório Magno,
Fulgêncio, Máximo de Turim, Boécio, Casiodoro, Vicente de Lerins, Martinho de
Braga, Ildefonso de Toledo e Isidoro de Sevilha, no Ocidente; e Pseudo-Dionísio
Areopagita, Romano o Cantor, Máximo o Confessor, Severo de Antioquia, André de
Creta, Germano de Constantinopla, Mesrop, Tiago de Sarug e João Damasceno, no
Oriente. Este último motivava seus fiéis com estas palavras:
“Ele mesmo, o Criador e Senhor, lutou pela sua criatura, transmitindo-lhe
seu ensinamento por meio do seu exemplo. (…) Assim, o Filho de Deus, ainda
subsistindo na forma de Deus, desceu dos céus (…) até aos seus servos (…),
realizando a realidade mais nova de todas, a única coisa verdadeiramente nova
sob o sol, por meio da qual se manifestou, de facto, o poder infinito de Deus”.
***
A Igreja não
deixa de voltar aos escritos dos “Padres” e de renovar continuamente a
lembrança deles. Eles foram e sempre serão os Padres da Igreja;
possuem algo de especial, de irrepetível e de perenemente válido, que continua
vivo. João Paulo II o reconhece na já citada carta apostólica Patres
ecclesiae:
“Em favor da Igreja de todos os séculos, exercem uma função perene. De
maneira que todo o anúncio e magistério seguinte, se quer ser autêntico, deve
pôr-se em confronto com o anúncio e o magistério deles; todo o carisma e todo o
ministério devem beber na fonte vital da paternidade deles; e toda a pedra
nova, acrescentada ao edifício santo que todos os dias cresce e se amplifica,
deve colocar-se nas estruturas já por eles postas e a elas soldar-se e ligar-se.”
(PE, ib).
Por sua vez,
a Congregação para a Educação Católica, na IEP, destaca:
“O pensamento dos Padres da
Igreja é exemplo de uma teologia unificada, vivida e amadurecida em
contacto com os problemas do ministério pastoral; é um ótimo modelo de
catequese, fonte para o conhecimento da Sagrada Escritura e da Tradição, assim
como do homem total e da verdadeira identidade cristã”.
A IEP
acentua a índole testemunhal dos Padres, os quais transmitem um método
teológico luminoso e seguro e cujos escritos oferecem uma riqueza cultural e
apostólica que os torna grandes mestres da Igreja de sempre. No entanto,
adverte que “só manifestam as suas riquezas doutrinais e espirituais aos que se
esforçam por penetrar em suas profundezas por meio de um contínuo e assíduo
trato familiar com eles”. E acrescenta que a Igreja tem consciência de que,
para continuar a crescer, tem de “conhecer a fundo a sua doutrina e obra, que
se distingue por ser, ao mesmo tempo, pastoral e teológica, catequética e
cultural, espiritual e social, de maneira excelente”; e “é propriamente esta unidade
orgânica dos vários aspetos da vida e missão da Igreja que torna os Padres tão
atuais e fecundos”.
É, pois, de
suma importância o estudo dos Padres da Igreja para profundidade da doutrinação
da fé, dos primórdios da História da Igreja e Teologia. A magnitude dos Santos
Padres para a teologia advém do facto de que uma opinião defendida por todos os
“Padres” duma determinada época, se for constituir matéria de fé ou de moral, é
tida por infalivelmente verdadeira.
Conhecer os “Padres
da Igreja”, que constituem a verdadeira Tradição da Igreja, é conhecer o fervor
da experiência com Deus, a fortaleza da fé católica, a ortodoxia da doutrina e
o Cristo PANTOCRATOR (em grego,
“aquele que tem poder sobre tudo”).
Como
ensinava Irineu de Lyon, no século II, “para
ver claramente hoje, é preciso interrogar a Tradição que vem dos apóstolos”.
***
Referências
Altaner,Berthold. (1962). Patrología. Madrid: Espasa-Calpe
Bento XVI. (2008). Os Padres da Igreja – de Clemente Romano a
Santo Agostinho. Lisboa: Portugália Editora
Cechinato, Luiz. (1996) Os vinte séculos de caminhada da Igreja,
Petrópolis – RJ: Vozes
Gomes, C. Folch. Antologia dos Santos Padres. São Paulo:
Edições Paulinas
Grün, Anselm. (2009) Os Padres do Deserto: temas e textos,
Petrópolis – RJ: Vozes
Jamison, Christopher (2008) Encontre seu santuário – Lições de monges
para a vida cotidiana, São Paulo: Editora Larousse/Brasil
2016.06.12- Louro de Carvalho
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