segunda-feira, 13 de junho de 2016

Os Padres da Igreja: Patrologia e Patrística

Ao dizermos o “Santo Padre” (no singular), referimo-nos ao Papa, mas, quando dizemos “os “Santos Padres”, os “Padres de Igreja”, ou simplesmente os “Padres” (em contexto teológico), evocamos os “mestres” da doutrina e da fé que viveram, no Oriente e no Ocidente, nos primeiros séculos da Igreja (aproximadamente do século II ao século VIII). Foram os primeiros “construtores” da Teologia, os guias ou “pais” na elaboração da doutrina da Igreja. “Padres” quer dizer “pais”, geradores ou fontes. Foram eles que firmaram os conceitos da nossa fé, enfrentaram muitas heresias e, de certa forma, foram responsáveis pelo que hoje se denomina de Tradição da Igreja, pois indubitavelmente são a sua fonte mais rica.
O cardeal Henri de Lubac dizia a seu respeito:
“Todas as vezes que, no Ocidente, tem florescido alguma renovação, tanto na ordem do pensamento como na ordem da vida – ambas estão sempre ligadas uma à outra – tal renovação tem surgido sob o signo dos Padres”.
E João Paulo II é explícito quando afirma, em relação aos Padres do Oriente:
“Recomenda-se, por isso, vivamente que os católicos se aproximem com mais frequência destas riquezas espirituais dos Padres do Oriente que levam o homem à contemplação das coisas divinas” (Carta Apostólica Orientale Lumen, 2 de maio de 1995).
O estudo dos Padres designa-se “Patrologia” e a “Patrística”, mas em âmbitos diferenciados.
A “Instrução sobre o Estudo dos Padres da Igreja na Formação Sacerdotal” (IEP), publicada pela Congregação para a Educação Católica, em 10 de novembro de 1989, distingue uma e outra, embora as relacione intimamente. Assim, no n.º 49, afirma que “a Patrística ocupa-se do pensamento teológico dos Padres” e “a Patrologia tem por objeto a vida e os escritos dos mesmos”. Nestes termos, enquanto a Patrística possui um caráter doutrinal e teológico, a Patrologia move-se mais no contexto da indagação histórica e da informação bibliográfica e literária. Uma e outra se distinguem, por sua vez, da Literatura Cristã Antiga, que se ocupa dos aspetos filológicos e estilísticos dos escritores cristãos da antiguidade.
O termo Patrologia é criação do luterano J. Gerhard (+ 1637), na sua obra póstuma Patrologia sive de primitivae ecclesiae christianae doctorum vita ac lucubrationibus oposculum, de 1653. O termo surge no contexto da Reforma e com o escopo de apelar para o testemunho dos “Padres da Igreja” como forma de justificação das ideias discutidas pelos reformadores e como resposta à “antiguidade” e consequente “autoridade” dos mesmos reformadores. A partir de então, Patrologia passou a expressar, sobretudo, o estudo histórico e literário (vida e obra) dos escritores cristãos antigos, tratando-se assim de uma disciplina de caráter eminentemente histórico, cujas principais funções são: dar a conhecer a vida e a formação dos Padres e outros escritores eclesiásticos, tendo em conta o contexto que originou a composição das suas obras; estabelecer a lista dos seus escritos, distinguindo os verdadeiros dos falsos; apreciar o caráter e a importância das suas obras; e expor os aspetos doutrinais mais importantes.
Na sua origem, o termo Patrística era um adjetivo restritivo de Teologia. Surgiu também no século XVII, entre teólogos luteranos e católicos, para subdividir a Teologia em bíblica, patrística, escolástica, simbólica e especulativa ou sistemática. Assim, a Teologia Patrística tem por finalidade aprofundar, com fidelidade, o pensamento dos Padres da Igreja, para participar da compreensão que eles alcançaram dos mistérios da fé cristã. Não se trata, pois, de mera sistematização do pensamento patrístico, mas de verdadeira teologia, dado que procura compreender o mistério e o desígnio de Deus, tendo como fonte literária e guia “Os Padres”.
Denomina-se também de Patrística a época dos Padres da Igreja que, no Ocidente, culminou no século VII, com Santo Isidoro de Sevilha (+ 636) e, no Oriente, no século VIII, com São João Damasceno (+ 749). São efetivamente 8 séculos muito ricos do ponto de vista da reflexão teológica, constituindo, por isso, a época dos Padres, o pilar da construção teológica posterior.
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Os Padres da Igreja são eminentes cristãos (santos) que, pela sua fé, ensinamentos e coerência de vida, geraram a Igreja (contribuíram para a sua edificação dotando-a das estruturas primordiais) nos primeiros séculos após Jesus Cristo e que permanecem como bússola e fonte generosa para os católicos e demais cristãos. Formam um numeroso e distinto grupo de verdadeiros pastores que conduziram fielmente os cristãos dos primeiros séculos com a força da palavra e da vida de fé, consequente muitas vezes até à morte heroica: papas como Clemente Romano (que, segundo o testemunho de santo Ireneu, conheceu os apóstolos Pedro e Paulo e conviveu com eles); teólogos, como o Doutor da Igreja João Damasceno; monges eremitas, como Basílio Magno (que depois foi bispo); místicos, como Agostinho de Hipona (retórico, filósofo, teólogo e bispo); mártires, como Justino; e muitos outros, cuja doutrina ortodoxa e vida santa foram reconhecidas pela Igreja. Foram santos que irradiavam Cristo e impulsionavam a segui-Lo – e continuam a fazê-lo ainda hoje.
São João Paulo II escreve na carta apostólica Patres ecclesiae, publicada em 2 de janeiro de 1980, por ocasião do 16.º centenário da morte de São Basílio.
“Padres da Igreja são chamados com razão aqueles santos que, com a força da fé, a profundidade e riqueza dos seus ensinamentos, durante os primeiros séculos a geraram e formaram” (Introdução).
São para o desenvolvimento da Igreja o que os apóstolos são para o seu nascimento. Deram forma às instituições, à doutrina, à liturgia, à oração, à espiritualidade. Estabeleceram o cânon dos livros sagrados, compuseram as profissões básicas da fé, precisaram o depósito da fé em confrontações com as heresias e a cultura da época (dando origem, assim, à teologia), colocaram as bases da disciplina canónica e criaram as primeiras formas da liturgia. Nos elementos de consenso entre eles, são reconhecidos como fidelíssimos intérpretes da doutrina que Jesus Cristo pregou. Segundo o papa polaco:
“Na verdade; foram 'padres' ou pais da Igreja porque deles, mediante o Evangelho, recebeu ela a vida. E também seus construtores, porque deles – sobre o fundamento único colocado pelos Apóstolos, que é Cristo – a Igreja de Deus foi edificada nas suas estruturas fundamentais” (id et ib).
As caraterísticas distintivas dos Padres da Igreja são: a antiguidade, entre os séculos II e VIII; a ortodoxia, o que significa que a sua doutrina é correta e aprovada pela Igreja; a ciência eminente, que os distingue do comum dos mestres e pastores; a santidade de vida, pois aliam à sua índole de mestres e a de testemunhas da fé; e a aprovação, pela Igreja que os reconhece como Padres da Igreja.
Assim, Orígenes e Tertuliano (que enfermam de heresia nalguns pontos) não são propriamente “Padres” da Igreja. Mas são apologistas e escritores eclesiásticos.
Também os doutores da Igreja podem não ser “Padres da Igreja”, se lhes faltar a antiguidade.
Doutor da Igreja (em latim, doctor – “professor”; de docere – “ensinar”) é título conferido pela Igreja cristãs a personalidades (poucas) de reconhecida importância, sobretudo nos campos da teologia ou doutrina católica. São requisitos: eminens doctrina (importância da doutrina); insignis vitae sanctitas (alto grau de santidade); Ecclesiae declaratio (proclamação da Igreja).
Outra expressão da Teologia e da História da Igreja é Padres Apostólicos. São aqueles mestres famosos que receberam a doutrina dos Apóstolos. Por exemplo: Inácio de Antioquia, Clemente Romano, Policarpo de Esmirna.
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Geralmente, são agrupados segundo sua procedência (Padres latinos e Padres gregos) e a época em que viveram, em três grandes grupos: os que viveram entre as primeiras comunidades cristãs (até ao ano de 313), a seguinte geração (até à metade do século V) e os que viveram posteriormente (até ao século VIII). Os que pertencem à 1.ª e 2.ª geração da Igreja, depois dos apóstolos, recebem o nome de Padres apostólicos e mostram como começa o caminho da Igreja na história. Os seus escritos refletem diretamente o ensinamento dos apóstolos, como se vê, por exemplo, neste fragmento da carta aos coríntios escrita por Clemente de Roma, o 3.º sucessor de Pedro:
“Unamo-nos, pois, àqueles a quem foi dada a graça da parte de Deus; revistamo-nos de concórdia, mantendo-nos no espírito de humildade e continência, afastados de toda murmuração e calúnia, justificados pelas nossas obras e não pelas nossas palavras”.
Nesta primeira fase, vivem também os Padres apologistas gregos e os mestres da Escola de Alexandria. Entre outros, mencionam-se Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna, Justino Mártir, Ireneu de Lyon, Tertuliano, Cipriano de Cartago, Clemente de Alexandria e Orígenes.
A segunda fase – entre os concílios de Niceia (325) e de Calcedónia (451), é considerada o século de ouro dos Padres da Igreja. No século IV, com a chegada da paz à Igreja no quadro do império romano, cresceu muito o número de cristãos, mas irromperam as discrepâncias internas e heresias, face às quais os Padres da Igreja fizeram valiosas defesas da fé cristã e esclareceram os dogmas trinitários e cristológicos. Neste grupo figuram, entre outros, Agostinho de Hipona, Hipólito, Gregório Taumaturgo, Júlio o Africano, Dionísio o Grande, Atanásio, Teodoro da Síria, João Crisóstomo, Gregório de Nissa e Jerónimo. Algumas das suas obras tornaram-se textos de referência, não só para os cristãos de qualquer época, mas também para a história da filosofia e da literatura. Milhões de pessoas identificaram-se com a admiração de Santo Agostinho diante da grandeza do amor de Deus, ao ler palavras suas como estas:
Chamaste-me, clamaste, quebrantaste a minha surdez; brilhaste e resplandeceste e me curaste a cegueira; exalaste o teu perfume e eu o aspirei, e então te anseio; eu te provei, e agora sinto fome e sede de ti; tu me tocaste, e desejei com ânsia a paz que procede de ti”.
Finalmente, os Padres do terceiro grupo vivem o desmoronamento político da parte ocidental de império romano e a irrupção do islão. Alguns escritores aplicam a doutrina dos Padres anteriores a novas realidades, como a entrada dos povos germânicos na Europa. Integram este grupo, entre outros, Gregório Magno, Fulgêncio, Máximo de Turim, Boécio, Casiodoro, Vicente de Lerins, Martinho de Braga, Ildefonso de Toledo e Isidoro de Sevilha, no Ocidente; e Pseudo-Dionísio Areopagita, Romano o Cantor, Máximo o Confessor, Severo de Antioquia, André de Creta, Germano de Constantinopla, Mesrop, Tiago de Sarug e João Damasceno, no Oriente. Este último motivava seus fiéis com estas palavras:
“Ele mesmo, o Criador e Senhor, lutou pela sua criatura, transmitindo-lhe seu ensinamento por meio do seu exemplo. (…) Assim, o Filho de Deus, ainda subsistindo na forma de Deus, desceu dos céus (…) até aos seus servos (…), realizando a realidade mais nova de todas, a única coisa verdadeiramente nova sob o sol, por meio da qual se manifestou, de facto, o poder infinito de Deus”.
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A Igreja não deixa de voltar aos escritos dos “Padres” e de renovar continuamente a lembrança deles. Eles foram e sempre serão os Padres da Igreja; possuem algo de especial, de irrepetível e de perenemente válido, que continua vivo. João Paulo II o reconhece na já citada carta apostólica Patres ecclesiae:
“Em favor da Igreja de todos os séculos, exercem uma função perene. De maneira que todo o anúncio e magistério seguinte, se quer ser autêntico, deve pôr-se em confronto com o anúncio e o magistério deles; todo o carisma e todo o ministério devem beber na fonte vital da paternidade deles; e toda a pedra nova, acrescentada ao edifício santo que todos os dias cresce e se amplifica, deve colocar-se nas estruturas já por eles postas e a elas soldar-se e ligar-se.” (PE, ib). 
Por sua vez, a Congregação para a Educação Católica, na IEP, destaca:
“O pensamento dos Padres da Igreja é exemplo de uma teologia unificada, vivida e amadurecida em contacto com os problemas do ministério pastoral; é um ótimo modelo de catequese, fonte para o conhecimento da Sagrada Escritura e da Tradição, assim como do homem total e da verdadeira identidade cristã”.
A IEP acentua a índole testemunhal dos Padres, os quais transmitem um método teológico luminoso e seguro e cujos escritos oferecem uma riqueza cultural e apostólica que os torna grandes mestres da Igreja de sempre. No entanto, adverte que “só manifestam as suas riquezas doutrinais e espirituais aos que se esforçam por penetrar em suas profundezas por meio de um contínuo e assíduo trato familiar com eles”. E acrescenta que a Igreja tem consciência de que, para continuar a crescer, tem de “conhecer a fundo a sua doutrina e obra, que se distingue por ser, ao mesmo tempo, pastoral e teológica, catequética e cultural, espiritual e social, de maneira excelente”; e “é propriamente esta unidade orgânica dos vários aspetos da vida e missão da Igreja que torna os Padres tão atuais e fecundos”.
É, pois, de suma importância o estudo dos Padres da Igreja para profundidade da doutrinação da fé, dos primórdios da História da Igreja e Teologia. A magnitude dos Santos Padres para a teologia advém do facto de que uma opinião defendida por todos os “Padres” duma determinada época, se for constituir matéria de fé ou de moral, é tida por infalivelmente verdadeira.
Conhecer os “Padres da Igreja”, que constituem a verdadeira Tradição da Igreja, é conhecer o fervor da experiência com Deus, a fortaleza da fé católica, a ortodoxia da doutrina e o Cristo PANTOCRATOR (em grego, “aquele que tem poder sobre tudo”).
Como ensinava Irineu de Lyon, no século II, “para ver claramente hoje, é preciso interrogar a Tradição que vem dos apóstolos”.
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Referências
Altaner,Berthold. (1962). Patrología. Madrid: Espasa-Calpe
Bento XVI. (2008). Os Padres da Igreja – de Clemente Romano a Santo Agostinho. Lisboa: Portugália Editora
Cechinato, Luiz. (1996) Os vinte séculos de caminhada da Igreja, Petrópolis – RJ: Vozes 
Gomes, C. Folch. Antologia dos Santos Padres. São Paulo: Edições Paulinas
Grün, Anselm. (2009) Os Padres do Deserto: temas e textos, Petrópolis – RJ: Vozes 
Jamison, Christopher (2008) Encontre seu santuário – Lições de monges para a vida cotidiana, São Paulo: Editora Larousse/Brasil

2016.06.12- Louro de Carvalho

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