segunda-feira, 4 de março de 2019

O domingo da lei do coração


O domingo da lei do coração é o 8.º domingo do Tempo Comum, que este ano é o último antes da Quaresma. Nele se evidencia que a convivência com os companheiros de caminhada constitui necessidade do ser humano. E o Evangelho sublima a colmatação deste pressuposto de modo que a vida em comum se faz rica quando partilhada na sinceridade, e isto sucede quando as pessoas descobrem a dimensão evangélica no relacionamento interpessoal e nas redes sociais, descobrindo o valor de cada um. Assim, ficando postergado o egoísmo e o egocentrismo, o farisaísmo, a ganância e a capacidade de explorar, o roubo e a corrupção, sobressai o amor vivido e ensinado por Jesus, que torna as pessoas solidárias e guias umas das outras.
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O trecho da 1.ª leitura (Sir 27,4-7, na versão grega, e 5-8, na latina), cuja principal recomendação é a de que não se deve elogiar alguém antes de o ouvir falar, pertence a uma grande secção em que se destaca o tema da avaliação/julgamento das pessoas em diversas situações e a advertência à verdade no julgamento, oferecendo os critérios que suportam esse julgamento. O hagiógrafo releva os perigos a que está sujeita a integridade do ser humano, apresentando imagens (crivo, forno e fruto) para fazer a entender a vertente interior da pessoa, pois as aparências nem sempre nem imediatamente revelam tudo o que temos no nosso interior.
O livro de Ben Sirah (ou Eclesiástico) surge no início do séc. II a.C., com o domínio selêucida, um tempo em que o helenismo quer impor-se com agressividade, pondo em causa a identidade do Povo de Deus. Jesus Ben Sirah, o autor do livro, estava preocupado com a degradação dos valores tradicionais do Povo, pelo que escreveu este compêndio de “sabedoria” para defender o património cultural e religioso de Israel e mostrar aos compatriotas que Israel possuía na “Torah”, revelada por Deus, a verdadeira “sabedoria”, “sabedoria” superior à “sabedoria” grega.
O trecho da liturgia de hoje é um exemplo clássico da reflexão sapiencial. Apresenta-nos uma máxima que, como todas as máximas da reflexão sapiencial, é deduzida da experiência prática e da própria reflexão (“Não elogies ninguém antes de ele falar”) e cujo fim é orientar o comportamento do homem, preservando-o do insucesso, do fracasso, dos comportamentos e dos juízos errados.
O grande critério para fazer sobressair o real valor da pessoa é o modo de raciocinar/falar. E os exemplos ajudam a esclarecer o princípio: o forno prova os vasos feitos pelo oleiro (cf v 5) e os frutos revelam a qualidade da árvore (cf v 6). Jesus retoma o exemplo (vd Lc 6,43-45; Mt 7,16-20).
É, pois, conveniente analisar as palavras que as pessoas proferem, pois as palavras mostram o que se passa na mente, revelam o íntimo do coração e descobrem mesmo o que se quer ocultar (vv 4-6). Porém, o sábio pode dominar a sua palavra para não se revelar quando o entender e para deixar falar o interlocutor bastante tempo para poder perscrutar-lhe o coração, pelo que adverte que não se elogie ninguém antes que ele fale (cf v 7), pois a palavra é o espelho que manifesta a sabedoria e a riqueza do ser humano ou, ao invés, a sua ignorância e miséria.
Ben Sirah conhece os pecados da língua: acusações e contestações que ela provoca (Sir 8,1-19; 28,8-12), juramento excessivo e precipitado (Sir 23,7-15), mentira e duplicidade (Sir 20,24-26; 19,4-12) e, sobretudo, a hipocrisia (Sir 5,14; 6,1; 28,13-16). Por isso, é mister que se agite devidamente o crivo, para separar do lixo o bom cereal, e a peneira, para separar do farelo a farinha.
A cultura hodierna (pela submissão à publicidade, meios de comunicação social e redes sociais, à propaganda enganosa) aliena a palavra, separa-a de toda a raiz humana, transforma-a no elemento dum jogo incontrolado, induzindo a linguagem a perder o seu peso racional, não relaciona as pessoas, apenas justapõe em torno da nova Babel os que julgam utilizar um vocabulário comum e falar a mesma língua. Já não é só o coração da pessoa que a palavra revela, mas o coração duma sociedade em decadência. Todo o ser humano nasce com um singular capital de potencialidades, mas que precisa de desenvolver, cultivar e aprimorar. Para tanto, deve, em articulação com as descobertas que a vida nos propicia, acolher as sentenças dos sábios resultantes da experiência alargada e da reflexão profunda como normas para essa arte de cultivo permanente. Por conseguinte, a palavra que a pessoa profere em seus colóquios será como que fruto desta cultura e a qualidade dessa palavra revela a qualidade do cultivo do coração.
Se o vaso não é bem feito (de boa argila e bem trabalhada), não resiste ao fogo do forno, mas racha e estraga-se. Ora, a conversação é como o fogo do ceramista, que revela a qualidade da matéria-prima; manifesta a qualidade do material de que é feito o interior da pessoa. Assim, se o interior é de má construção, a pessoa sofre perda ante os outros: difama-se pelas palavras. Ora, Cristo afirma coisa semelhante: “Pois a boca fala aquilo de que  o coração está cheio” (Mt 12,34). Por isso, com razão se apregoa:O homem tira coisas boas do bom tesouro do seu coração”.
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A passagem do Evangelho (Lc 6,39-45) para esta dominga, cuja ideia forte é “A boca fala do que está cheio o coração” (em consonância com a 1.ª leitura), insere-se no “Discurso da Planície” cujos destinatários são os Doze, os discípulos e as multidões (cf Lucas 6,13.17.27). No âmbito literário, é uma parábola cheia interrogações. Jesus formula as perguntas para provocar, o assentimento, a adesão, o consentimento. É o método ad hominem que provoca o envolvimento positivo dos presentes nas perguntas urgentes do Mestre. Aqui o Senhor envolve, de modo ainda mais direto, os Seus ouvintes com uma parábola com perguntas muito fortes:
Poderá um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco? (vv 39). Porque vês tu o cisco no olho do teu irmão e não percebes a trave que há no teu próprio olho?” (v 41).
Lucas insere aqui a parábola dos dois cegos que Mateus aplica aos fariseus (15,14) para a aplicar aos discípulos. As imagens vertidas nas perguntas refletem sobre a realidade do olhar. São perguntas até hiperbólicas, em que a relação irmão-trave, cisco-olho pretende denunciar e remover um grande obstáculo: a hipocrisia que mora no coração. A palavra “hipocrisia” é central na argumentação de Jesus (v 42). O Mestre põe a nu a fealdade da hipocrisia: é uma conduta que não exprime o pensar do coração. Na alegoria da árvore (cf vv 43-45), Jesus afirma que não se podem colher frutos bons do que é ruim, nem ruins frutos do que é bom: os frutos do ser humano revelam a verdade do seu coração (bom ou mau) enquanto centro da pessoa. Por outro lado, adverte para o facto de que “o discípulo não é superior ao mestre” (v 40).
Este trecho evangélico pertence a um conjunto importante do plano doutrinal. É claramente uma catequese moral, redigida especialmente para os convertidos do paganismo, vertida em frases de Jesus, reunidas em torno de certas palavras-chave, como medida (v 38), olho (v 39) sobre o cego, e cisco e a trave (vv41-42), e numa parábola com dupla aplicação: para guiar os outros, é preciso ser muito lúcido; e, antes de seguir um mestre qualquer, é preciso ser bastante clarividente. Com efeito, tornar-se guia é tarefa nada fácil e de alta responsabilidade, pois, se o orientador for cego, coitado de quem o segue: cairá também no mesmo erro. Quem pretenda ser luz e caminho para os outros deve tomar o cuidado em preparar-se muito bem, pois é coisa que não se improvisa, e nunca deve colocar-se como pessoa perfeita que aponta os erros do outro numa atitude condenatória, mas posicionar-se como companheiro ou companheira. Deve-se distinguir o guia iluminado por Deus do guia cego que não atina nem sabe para onde vai. Não faltam falsos guias (profetas). Por isso, não se pode seguir qualquer um sem ter olhado, antes, se ele é digno de fé, caso contrário, caem os dois no mesmo buraco, heresia, pecado.
Jesus nunca dava um ensinamento sem partir da vida real e das imagens que ela proporciona. É o conhecimento antidialéctico. Esta parábola refere-se a um facto da vida quotidiana das pessoas do campo: à beira das estradas havia muitos poços e vala profunda que tornavam perigosa uma viagem de noite. Tratando-se de cegos, era inevitável caírem neles. Lucas liga nitidamente o v 40 com o v 39: tal mestre, tal discípulo. E põe na boca do Mestre palavras de prudência antes de qualquer pretensão de guiar os outros: prudência na hora  da escolha dum mestre espiritual, para evitarmos a censura de Jesus aos fariseus e escribas: “São cegos a conduzir cegos” (Mt 15,14). E é preciso abrir os olhos. Nem sempre “em terra de cego, quem tem um olho é rei” e muitas vezes quem tem dois olhos acaba por ser odiado, perseguido e eliminado.
A lição é clara: ver apenas as pequenas imperfeições dos outros escondendo os nossos próprios defeitos, quiçá muito maiores, revela postura hipócrita e comportamento falso. Querer julgar os outros sem começar pela autocrítica é falsa e hipócrita postura, uma mentira. Primeiro, devemos purificar o nosso olhar, pois, cada um vê mal ou bem, conforme os olhos que tem. Isto não exclui a correção fraterna (vd Lc 17,3-4; Mt 18,6-7), missão importante da comunidade cristã. Porém, devemos sempre começar por nós mesmos: “Médico, cura-te a ti mesmo” (Lc 4,23b).
Na alegoria da árvore (vv 43-44), o fruto mostra o cultivo da árvore e a palavra as qualidades do homem” (Sir 27,6). Lucas aplica-a aos discípulos. A idoneidade e atitude morais verificam-se pelos frutos (cf Tg 3,12; Lc 13,6-9; 23,27-31; Is 5,1-7; Ez 19,10-14). A ideia vem da corrente sapiencial: o justo é comparado à árvore que dá frutos cheios de sabor de doçura, enquanto outras árvores se tornam estéreis (Sl 1; Sl 91, 13-14; Ct 2,1-3; Sir 24,12-27). O justo produz bons frutos porque é irrigado pelas águas divinas. Os frutos serão particularmente abundantes na era escatológica (Ez 47,1-12). Evidentemente, o cristão enraizado na árvore da Vida que é Jesus Cristo (Jo 15,1-8) produz os frutos do Espírito (Gl 5,5-26; 6,7-16), enquanto o Judaísmo se torna uma árvore estéril (Mt 3,8-10; 21,18-19). Para Lucas, os frutos são sobretudo as atitudes de caridade.
Compreende-se, assim, que a parábola do cisco e da trave esteja ligada à imagem dos frutos. Com efeito, é no perdão mútuo e na recusa de julgar os outros que a moral cristã produz os melhores frutos, revelando profundamente a vida divina que irriga a árvore.
A parábola do tesouro mostra que, no modo de pensar bíblico, o coração representa o que atribuímos hoje ao cérebro: ser o centro da vontade e da vida psíquica, intelectual, afetiva, moral e religiosa. Os rins eram considerados o centro da consciência, da dor e dos outros sentimentos que a nossa cultura atribui hoje ao coração. O tesouro do coração está escondido, mas é ele que define a nossa mentalidade, o nosso estilo de vida. Pode dar produto de bondade ou de maldade, que revelará a qualidade do nosso tesouro-coração no modo de agir, de se comportar e de pensar. Só Deus tem o poder de sondar os rins e o coração (cf Jr 11,20; Ap 2,23). É por causa disso que ninguém pode julgar ninguém. Deus é o único Juiz justo porque retribuirá a cada um de nós segundo os talentos recebidos. Atente-se no escrito do profeta Jeremias a este respeito:
Impenetrável é o coração; assim quem poderá compreender entre todos os homens? Eu, o Senhor, esquadrinho os corações e provo os sentimentos, para dar a cada um segundo o seu proceder, segundo o fruto de suas obras.” (Jr 17,9-10).
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Na 2.ª Leitura (1Cor 15,54-58), em que se destaca a ideia de que “Jesus Cristo nos deu a vitória, Paulo conclui o longo discurso sobre o mistério da ressurreição (cf 1Cor 15,1-58). Já reafirmara a historicidade da ressurreição de Cristo e esclarecera o “como” da ressurreição dos cristãos em relação a Cristo. Agora, conclui, com um hino triunfal, a parte dogmática da Carta aos Coríntios e lança um grito jubiloso com a consciência do cristão que sabe ter sido vencido, para sempre, o mais infeliz dos inimigos. Com a ressurreição de Cristo, primogénito de entre os mortos, a morte foi derrotada, o seu aguilhão, isto é, o seu ferrão foi quebrado.
Como os animais temem o ferrão do condutor e as pessoas temem o ferrão do escorpião, a morte é temida em todos os tempos e lugares. Porém, após a morte e ressurreição de Cristo, a morte está potencialmente derrotada e só atemoriza porque ainda não estamos na Eternidade.
No hino de Paulo dedicado à vitória de Cristo sobre a morte, revela-se que haverá um tempo em que o nosso corpo corruptível e mortal será “revestido de incorruptibilidade/imortalidade”, ou seja, deixaremos o corpo corruptível e ressuscitaremos num corpo incorruptível, deixaremos um corpo de trevas e vamos ressuscitando de luz, realizando-se com isso a palavra da Escritura: “A morte foi absorvida na vitória” (v 54). Após a morte, Cristo dar-nos-á um corpo glorioso: o nosso espírito não ficará sem corpo. Neste mundo, o nosso espírito tem este corpo mortal, mas, após a morte, terá um corpo espiritual, ressuscitado. O que apodrece no túmulo é o nosso cadáver, não a nossa identidade. O Apóstolo retoma aqui livremente Isaías 25,8 e Oseias 13,14.
Neste quadro de inspiração judaica, Paulo propõe a doutrina tipicamente cristã: a ressurreição com que os judeus contavam não era senão uma espécie de recuperação do seu corpo físico no intuito de participarem num reino também material (1Rs 17,17-24). Mas a Páscoa do Senhor levou a superar tal conceito: a ressurreição não será mais a simples recuperação, mas a transformação e acesso do nosso corpo à condição glorioso de Cristo. Assim, a ressurreição, na ótica cristã, tem um sentido diferente da ressurreição crida entre os judeus. E é a doutrina do “estar com Cristo” que leva Paulo a tal noção. Ora, se a ressurreição não é só recuperação de corpo morto, mas acesso à corporalidade nova e espiritual, interessa tanto aos vivos como aos mortos.
A condenação que encontramos em Gn 3,19, em que a morte é fruto do pecado, é abolida pela redenção por Cristo. É muito forte a linguagem imagética de Paulo para revelar o aniquilamento da morte: “absorvida, engolida” (cf v 54). Revela a eliminação total da morte, que se transforma, através da obra de Cristo, em vitória – um triunfo poderoso que serve de estímulo à vida diária, por vezes assolada por várias forças degradantes. O próprio Jesus travou com a morte uma luta cósmica, pelo que Paulo, ao falar disso, chamou-lhe “o último inimigo” (cf 1Cor 15,15.26).
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Depois desta meditação bíblica, resta entoar, em resposta, o Salmo 92 (Sl 92/91,2-3.13-16), de ação de graças ao Altíssimo pelo seu amor, pelos seus atos de justiça. A ação de graças é constante, dia e noite, a vida inteira. E o salmista garante que “É bom celebrar o Senhor e agradecer-Lhe”. Trata-se dum hino didático que glosa a doutrina dos Sábios: destino feliz dos justos e ruína dos ímpios (cf Sl 37; 49 etc.).
O rosto de Deus é de capital importância. O Senhor é chamado de “Altíssimo” (v 2b), “Deus” (v 14b) e “Rocha” (16b). Assim, o salmista e o cristão propõem-se: anunciar pela manhã o Seu amor e fidelidade pela noite (v 3) – amor e fidelidade, que são as caraterísticas do Deus da Aliança.
A realização da justiça é a preocupação fundamental de Jesus (cf Mt 3,15; 5,20; 6,33). E a nova justiça que Ele trouxe faz surgir o Reinado de Deus. Os atos, obras, e projetos de Jesus vão todos nessa direção. Basta, por exemplo, ver o que dizia a lei em relação ao leproso (Lv 13,45-46) e comparar com o modo de ser e agir de Jesus quando se tratava de aplicar essa lei (Mt 8,1-4).
2019.03.03 – Louro de Carvalho

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