O domingo da lei
do coração é o 8.º domingo do Tempo Comum, que este ano é o último antes da
Quaresma. Nele se evidencia que a convivência com os companheiros de caminhada
constitui necessidade do ser humano. E o Evangelho sublima a colmatação deste
pressuposto de modo que a vida em comum se faz rica quando partilhada na
sinceridade, e isto sucede quando as pessoas descobrem a dimensão evangélica no
relacionamento interpessoal e nas redes sociais, descobrindo o valor de cada
um. Assim, ficando postergado o egoísmo e o egocentrismo, o farisaísmo, a
ganância e a capacidade de explorar, o roubo e a corrupção, sobressai o amor
vivido e ensinado por Jesus, que torna as pessoas solidárias e guias umas das
outras.
***
O trecho da 1.ª leitura (Sir 27,4-7, na versão grega, e 5-8, na latina), cuja principal recomendação é a de que não se deve
elogiar alguém antes de o ouvir falar, pertence a uma grande secção em que se
destaca o tema da avaliação/julgamento das pessoas em diversas situações e a advertência
à verdade no julgamento, oferecendo os critérios que suportam esse julgamento.
O hagiógrafo releva os perigos a que está sujeita a integridade do ser humano,
apresentando imagens (crivo, forno e fruto) para fazer a entender a vertente interior da pessoa, pois as aparências
nem sempre nem imediatamente revelam tudo o que temos no nosso interior.
O livro de Ben Sirah (ou Eclesiástico) surge no início do séc. II a.C., com o domínio
selêucida, um tempo em que o helenismo quer impor-se com agressividade, pondo
em causa a identidade do Povo de Deus. Jesus Ben Sirah, o autor do livro, estava
preocupado com a degradação dos valores tradicionais do Povo, pelo que escreveu
este compêndio de “sabedoria” para defender o património cultural e religioso
de Israel e mostrar aos compatriotas que Israel possuía na “Torah”, revelada
por Deus, a verdadeira “sabedoria”, “sabedoria” superior à “sabedoria” grega.
O trecho da
liturgia de hoje é um exemplo clássico da reflexão sapiencial. Apresenta-nos
uma máxima que, como todas as máximas da reflexão sapiencial, é deduzida da
experiência prática e da própria reflexão (“Não
elogies ninguém antes de ele falar”) e cujo fim é orientar o comportamento do homem,
preservando-o do insucesso, do fracasso, dos comportamentos e dos juízos
errados.
O grande critério para fazer sobressair o real valor da
pessoa é o modo de raciocinar/falar. E os exemplos ajudam a esclarecer o
princípio: o forno prova os vasos feitos pelo oleiro (cf v 5) e os frutos revelam a qualidade da árvore (cf v 6). Jesus retoma o exemplo (vd Lc
6,43-45; Mt 7,16-20).
É, pois, conveniente analisar as palavras que as
pessoas proferem, pois as palavras mostram o que se passa na mente, revelam o
íntimo do coração e descobrem mesmo o que se quer ocultar (vv 4-6). Porém, o sábio pode dominar a sua palavra para não
se revelar quando o entender e para deixar falar o interlocutor bastante tempo
para poder perscrutar-lhe o coração, pelo que adverte que não se elogie ninguém
antes que ele fale (cf v 7), pois a
palavra é o espelho que manifesta a sabedoria e a riqueza do ser humano ou, ao
invés, a sua ignorância e miséria.
Ben Sirah conhece os pecados da língua: acusações e
contestações que ela provoca (Sir 8,1-19; 28,8-12), juramento excessivo e precipitado (Sir 23,7-15), mentira e duplicidade (Sir
20,24-26; 19,4-12) e,
sobretudo, a hipocrisia (Sir 5,14; 6,1; 28,13-16). Por isso, é mister que se agite devidamente o crivo, para separar do
lixo o bom cereal, e a peneira, para separar do farelo a farinha.
A cultura hodierna (pela submissão à publicidade, meios
de comunicação social e redes sociais, à propaganda enganosa) aliena a palavra, separa-a de toda a raiz humana,
transforma-a no elemento dum jogo incontrolado, induzindo a linguagem a perder
o seu peso racional, não relaciona as pessoas, apenas justapõe em torno da nova
Babel os que julgam utilizar um vocabulário comum e falar a mesma língua. Já
não é só o coração da pessoa que a palavra revela, mas o coração duma sociedade
em decadência. Todo o ser humano nasce com um singular capital de potencialidades,
mas que precisa de desenvolver, cultivar e aprimorar. Para tanto, deve, em
articulação com as descobertas que a vida nos propicia, acolher as sentenças
dos sábios resultantes da experiência alargada e da reflexão profunda como
normas para essa arte de cultivo permanente. Por conseguinte, a palavra que a
pessoa profere em seus colóquios será como que fruto desta cultura e a
qualidade dessa palavra revela a qualidade do cultivo do coração.
Se o vaso
não é bem feito (de boa argila e bem trabalhada), não resiste ao fogo do forno, mas racha e estraga-se.
Ora, a conversação é como o fogo do ceramista, que revela a qualidade da
matéria-prima; manifesta a qualidade do material de que é feito o interior da
pessoa. Assim, se o interior é de má construção, a pessoa sofre perda ante os
outros: difama-se pelas palavras. Ora, Cristo afirma coisa semelhante: “Pois a boca fala aquilo de que o
coração está cheio” (Mt 12,34). Por isso,
com razão se apregoa:
“O homem tira coisas boas do bom tesouro
do seu coração”.
***
A passagem do Evangelho (Lc 6,39-45) para esta dominga, cuja ideia forte é “A boca fala
do que está cheio o coração” (em
consonância com a 1.ª leitura), insere-se
no “Discurso da Planície” cujos destinatários são os Doze, os discípulos e as
multidões (cf Lucas 6,13.17.27). No âmbito
literário, é uma parábola cheia interrogações. Jesus formula as perguntas para
provocar, o assentimento, a adesão, o consentimento. É o método ad
hominem que provoca o envolvimento positivo dos presentes nas
perguntas urgentes do Mestre. Aqui o Senhor envolve, de modo ainda mais direto,
os Seus ouvintes com uma parábola com perguntas muito fortes:
“Poderá um cego guiar outro cego? Não cairão
os dois num buraco? (vv 39). Porque vês tu o cisco no olho do teu irmão e não
percebes a trave que há no teu próprio olho?” (v 41).
Lucas insere aqui a parábola dos dois cegos que Mateus
aplica aos fariseus (15,14) para a
aplicar aos discípulos. As imagens vertidas nas perguntas refletem sobre a realidade
do olhar. São perguntas até hiperbólicas, em que a relação irmão-trave,
cisco-olho pretende denunciar e remover um grande obstáculo: a hipocrisia que
mora no coração. A palavra “hipocrisia” é central na argumentação de Jesus (v 42). O Mestre põe a nu a fealdade da hipocrisia: é uma
conduta que não exprime o pensar do coração. Na alegoria da árvore (cf vv 43-45), Jesus afirma que não se podem colher frutos bons do
que é ruim, nem ruins frutos do que é bom: os frutos do ser humano revelam a
verdade do seu coração (bom ou mau) enquanto
centro da pessoa. Por outro lado, adverte para o facto de que “o discípulo não é
superior ao mestre” (v 40).
Este trecho evangélico pertence a um conjunto importante
do plano doutrinal. É claramente uma catequese moral, redigida especialmente
para os convertidos do paganismo, vertida em frases de Jesus, reunidas em torno
de certas palavras-chave, como medida (v 38), olho (v 39) sobre o cego, e cisco e a trave (vv41-42), e numa parábola com dupla aplicação: para guiar os
outros, é preciso ser muito lúcido; e, antes de seguir um mestre qualquer, é
preciso ser bastante clarividente. Com efeito, tornar-se guia é tarefa nada
fácil e de alta responsabilidade, pois, se o orientador for cego, coitado de
quem o segue: cairá também no mesmo erro. Quem pretenda ser luz e caminho para
os outros deve tomar o cuidado em preparar-se muito bem, pois é coisa que não
se improvisa, e nunca deve colocar-se como pessoa perfeita que aponta os erros
do outro numa atitude condenatória, mas posicionar-se como companheiro ou
companheira. Deve-se distinguir o guia iluminado por Deus do guia cego que não atina
nem sabe para onde vai. Não faltam falsos guias (profetas). Por isso, não se pode seguir qualquer um sem ter
olhado, antes, se ele é digno de fé, caso contrário, caem os dois no mesmo
buraco, heresia, pecado.
Jesus nunca dava um ensinamento sem partir da vida
real e das imagens que ela proporciona. É o conhecimento antidialéctico. Esta
parábola refere-se a um facto da vida quotidiana das pessoas do campo: à beira
das estradas havia muitos poços e vala profunda que tornavam perigosa uma
viagem de noite. Tratando-se de cegos, era inevitável caírem neles. Lucas liga
nitidamente o v 40 com o v 39: tal mestre, tal discípulo. E põe na boca do
Mestre palavras de prudência antes de qualquer pretensão de guiar os outros:
prudência na hora da escolha dum mestre espiritual, para evitarmos a
censura de Jesus aos fariseus e escribas: “São
cegos a conduzir cegos” (Mt 15,14). E é
preciso abrir os olhos. Nem sempre “em terra de cego, quem tem um olho é rei” e
muitas vezes quem tem dois olhos acaba por ser odiado, perseguido e eliminado.
A lição é clara: ver apenas as pequenas imperfeições
dos outros escondendo os nossos próprios defeitos, quiçá muito maiores, revela
postura hipócrita e comportamento falso. Querer julgar os outros sem começar
pela autocrítica é falsa e hipócrita postura, uma mentira. Primeiro, devemos
purificar o nosso olhar, pois, cada um vê mal ou bem, conforme os olhos que
tem. Isto não exclui a correção fraterna (vd Lc 17,3-4; Mt 18,6-7), missão
importante da comunidade cristã. Porém, devemos sempre começar por nós mesmos:
“Médico, cura-te a ti mesmo” (Lc 4,23b).
Na alegoria da árvore (vv 43-44), o fruto mostra o cultivo da árvore e a palavra as
qualidades do homem” (Sir 27,6). Lucas
aplica-a aos discípulos. A idoneidade e atitude morais verificam-se pelos
frutos (cf Tg 3,12;
Lc 13,6-9; 23,27-31; Is 5,1-7; Ez 19,10-14). A ideia
vem da corrente sapiencial: o justo é comparado à árvore que dá frutos cheios
de sabor de doçura, enquanto outras árvores se tornam estéreis (Sl 1; Sl 91,
13-14; Ct 2,1-3; Sir 24,12-27). O justo
produz bons frutos porque é irrigado pelas águas divinas. Os frutos serão
particularmente abundantes na era escatológica (Ez 47,1-12). Evidentemente, o cristão enraizado na árvore da
Vida que é Jesus Cristo (Jo 15,1-8) produz os
frutos do Espírito (Gl 5,5-26; 6,7-16), enquanto
o Judaísmo se torna uma árvore estéril (Mt 3,8-10; 21,18-19). Para Lucas, os frutos são sobretudo as atitudes de
caridade.
Compreende-se, assim, que a parábola do cisco e da
trave esteja ligada à imagem dos frutos. Com efeito, é no perdão mútuo e na
recusa de julgar os outros que a moral cristã produz os melhores frutos,
revelando profundamente a vida divina que irriga a árvore.
A parábola do tesouro mostra que, no modo de pensar
bíblico, o coração representa o que atribuímos hoje ao cérebro: ser o centro da
vontade e da vida psíquica, intelectual, afetiva, moral e religiosa. Os rins
eram considerados o centro da consciência, da dor e dos outros sentimentos que a
nossa cultura atribui hoje ao coração. O tesouro do coração está escondido, mas
é ele que define a nossa mentalidade, o nosso estilo de vida. Pode dar produto de
bondade ou de maldade, que revelará a qualidade do nosso tesouro-coração no modo
de agir, de se comportar e de pensar. Só Deus tem o poder de sondar os rins e o
coração (cf Jr 11,20;
Ap 2,23). É por causa disso que ninguém
pode julgar ninguém. Deus é o único Juiz justo porque retribuirá a cada um de
nós segundo os talentos recebidos. Atente-se no escrito do profeta Jeremias a
este respeito:
“Impenetrável é o coração; assim quem poderá
compreender entre todos os homens? Eu, o Senhor, esquadrinho os corações e
provo os sentimentos, para dar a cada um segundo o seu proceder, segundo o
fruto de suas obras.” (Jr 17,9-10).
***
Na 2.ª Leitura (1Cor 15,54-58), em que se
destaca a ideia de que “Jesus Cristo nos
deu a vitória”, Paulo
conclui o longo discurso sobre o mistério da ressurreição (cf 1Cor
15,1-58). Já reafirmara a historicidade da
ressurreição de Cristo e esclarecera o “como” da ressurreição dos cristãos em
relação a Cristo. Agora, conclui, com um hino triunfal, a parte dogmática da
Carta aos Coríntios e lança um grito jubiloso com a consciência do cristão que
sabe ter sido vencido, para sempre, o mais infeliz dos inimigos. Com a
ressurreição de Cristo, primogénito de entre os mortos, a morte foi derrotada, o
seu aguilhão, isto é, o seu ferrão foi quebrado.
Como os animais temem o ferrão do condutor e as pessoas
temem o ferrão do escorpião, a morte é temida em todos os tempos e lugares.
Porém, após a morte e ressurreição de Cristo, a morte está potencialmente
derrotada e só atemoriza porque ainda não estamos na Eternidade.
No hino de Paulo dedicado à vitória de Cristo sobre a
morte, revela-se que haverá um tempo em que o nosso corpo corruptível e mortal
será “revestido de incorruptibilidade/imortalidade”, ou seja, deixaremos o
corpo corruptível e ressuscitaremos num corpo incorruptível, deixaremos um
corpo de trevas e vamos ressuscitando de luz, realizando-se com isso a palavra
da Escritura: “A morte foi absorvida na
vitória” (v 54). Após a morte, Cristo dar-nos-á um
corpo glorioso: o nosso espírito não ficará sem corpo. Neste mundo, o nosso
espírito tem este corpo mortal, mas, após a morte, terá um corpo espiritual,
ressuscitado. O que apodrece no túmulo é o nosso cadáver, não a nossa
identidade. O Apóstolo retoma aqui livremente Isaías 25,8 e Oseias 13,14.
Neste quadro de inspiração judaica, Paulo propõe a
doutrina tipicamente cristã: a ressurreição com que os judeus contavam não era
senão uma espécie de recuperação do seu corpo físico no intuito de participarem
num reino também material (1Rs 17,17-24). Mas a
Páscoa do Senhor levou a superar tal conceito: a ressurreição não será mais a
simples recuperação, mas a transformação e acesso do nosso corpo à condição
glorioso de Cristo. Assim, a ressurreição, na ótica cristã, tem um sentido diferente
da ressurreição crida entre os judeus. E é a doutrina do “estar com Cristo” que
leva Paulo a tal noção. Ora, se a ressurreição não é só recuperação de corpo
morto, mas acesso à corporalidade nova e espiritual, interessa tanto aos vivos
como aos mortos.
A condenação que encontramos em Gn 3,19, em que a
morte é fruto do pecado, é abolida pela redenção por Cristo. É muito forte a linguagem
imagética de Paulo para revelar o aniquilamento da morte: “absorvida, engolida” (cf v 54). Revela a eliminação total da morte, que se
transforma, através da obra de Cristo, em vitória – um triunfo poderoso que
serve de estímulo à vida diária, por vezes assolada por várias forças
degradantes. O próprio Jesus travou com a morte uma luta cósmica, pelo que
Paulo, ao falar disso, chamou-lhe “o último inimigo” (cf 1Cor
15,15.26).
***
Depois desta meditação
bíblica, resta entoar, em resposta, o Salmo 92 (Sl
92/91,2-3.13-16), de ação de
graças ao Altíssimo pelo seu amor, pelos seus atos de justiça. A ação de graças
é constante, dia e noite, a vida inteira. E o salmista garante que “É bom
celebrar o Senhor e agradecer-Lhe”. Trata-se dum hino didático que
glosa a doutrina dos Sábios: destino feliz dos justos e ruína dos ímpios (cf Sl 37; 49
etc.).
O rosto de Deus é de capital importância. O Senhor é
chamado de “Altíssimo” (v 2b), “Deus” (v 14b) e “Rocha” (16b). Assim, o salmista e o cristão propõem-se: anunciar pela manhã o Seu amor
e fidelidade pela noite (v 3) – amor e
fidelidade, que são as caraterísticas do Deus da Aliança.
A realização da justiça é a preocupação fundamental de
Jesus (cf Mt 3,15;
5,20; 6,33). E a nova justiça que Ele trouxe
faz surgir o Reinado de Deus. Os atos, obras, e projetos de Jesus vão todos
nessa direção. Basta, por exemplo, ver o que dizia a lei em relação ao leproso
(Lv 13,45-46) e comparar com o modo de ser e agir de Jesus quando
se tratava de aplicar essa lei (Mt 8,1-4).
2019.03.03 – Louro de Carvalho
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