Veio para as livrarias, no passado dia 15 de
março a Nova
Gramática do Latim, do professor Frederico Lourenço, um livro de
512 páginas editado pela Quetzal
Editores, que a publicitação diz com legítimo orgulho ser uma gramática
“desempoeirada”, que será para todos. É uma
gramática atualizada do latim a responder às contemporâneas exigências da
investigação pautada pelo rigor e da receção que pretende legível e aprazível a
obra que é dada à estampa.
O autor, hoje quiçá o mais importante dos mestres de estudos clássicos no ativo em Portugal,
tornou-se conhecido pela tradução portuguesa (atual e moderna) dos tradicionalmente designados por poemas homéricos
(Ilíada e Odisseia), bem como as respetivas versões para jovens, e a
tradução para português de hoje da versão bíblica da Septuaginta (a Bíblia grega), indo já no Volume IV (preveem-se
seis volumes), Tomo I.
E, segundo diz, agora tem o sonho de “fazer
uma gramática do grego.
É referido que a Nova Gramática do Latim é “um livro para todos”, porque o
estudo do Latim não pode ser unicamente “um luxo de eruditos”, pois “é a matriz
da nossa identidade, do conhecimento daquilo que somos, do que é a nossa
cultura, das nossas origens”. E o editor reconhece que, “durante décadas,
assistimos à diminuição gradual do interesse pelas línguas e culturas clássicas”,
mas, “com a publicação de obras traduzidas do grego e do latim por classicistas
como Frederico Lourenço (entre outros), parece
estar a processar-se “uma alteração nessa curva descendente e o renascimento do
gosto por esse mundo onde estão parte das nossas raízes”. Assim, este livro
será “uma obra de consulta e trabalho” e uma obra “fascinante sobre a língua
latina, a sua literatura e os mistérios da língua que hoje falamos”. Sobre
isto, diz o autor:
“Uns quererão aprender latim para ler
Agostinho ou Tomás de Aquino ou Pico della Mirandola ou Descartes ou o padre
António Vieira. Outras pessoas olharão para a Antiguidade romana, para os
grandes autores pagãos, como principal chamariz para pisar a ponte mental que é
a aprendizagem da gramática latina. É uma ponte que as levará do português, que
é uma forma de latim, para a explosão de nitidez que é o latim propriamente
dito. Abre-se-lhes, então, um universo intelectual de cujo interesse não
podemos separar o facto de continuar tão válido hoje como era ontem ou há 2000
anos. Na verdade, podemos dizer que estudar latim é um pouco como diz Vergílio
na Eneida: ‘Entra-se numa floresta antiga’.”.
***
Obviamente, sem desmerecer do valor desta gramática,
que é valioso e “inexcedido” até ao presente, não posso concordar com o item da
sua publicidade, que aponta que a gramática mais usada em Portugal “teve a sua
primeira edição há mais de 50 anos e refletia ainda os programas e as
metodologias do ensino do latim nos liceus antes do 25 de Abril”.
Na verdade, a 3.ª edição da Gramática latina, de António Freire, surgiu em 1983 (subsidiada
pela Secretaria de Estado do Ensino Superior), constituindo uma versão “completamente remodelada e cientificamente
elaborada” face a edições anteriores, com a adição de questões de Fonética,
Morfologia e Sintaxe históricas, para o que recorreu a excursus ou digressões, e complementada com exercícios
correspondentes para os Liceus e Universidades na 3.ª edição da Retroversão Latina. E o autor
confessou-se aberto a sugestões que foram acolhidas na 4.ª edição em 1987.
Também a Lisboa Editora publicou, em 2000, a 2.ª
edição da Gramática latina, de
António Afonso Borregana, que a Raiz Editora / Lisboa Editora reeditou
em 2006. O muito usado Compêndio de
Gramática Latina, de José Nunes de Figueiredo e Maria Ana Almendra foi
reeditado pela Porto Editora em 2016. Em 1997, a mesma editora publicara o Guia de Gramática de Latim, de José
Marcelino Gomes, uma caixa cartonada com 36 cartões ou fichas que “contêm, de
modo altamente condensado, todo o principal
conteúdo de apoio à elaboração de uma qualquer tradução que faça parte dos
conteúdos programáticos”. E a Editorial Presença editou, em
2000, a Gramática de Latim, de Leo
Stock, com tradução para português de António Moniz e Maria Celeste Moniz,
complementada com a brochura Conjugação
dos Verbos Latinos, do mesmo autor e com tradução dos mesmos. Isto, para
não falar do esforço feito pela REL (Renovação do Ensino do Latim) nas décadas de
70/80, que produziu a respetiva sebenta.
***
Agora, a partir de 15 de março (adquiri-a no
dia 25), está disponível nas livrarias
a Nova Gramática do Latim, de Frederico Lourenço, Prémio
Pessoa em 2016, docente de línguas clássicas desde que se licenciou, em 1988,
tendo começado o percurso profissional como professor de Latim no ensino
secundário. A novidade foi apresentada, na manhã de 18 de fevereiro, por Francisco
José Viegas, diretor editorial da Quetzal, e pelo autor, no encontro com os
jornalistas na Cinemateca, em Lisboa. Disse o autor:
“Não sou o primeiro tradutor português da
Bíblia a publicar em simultâneo uma gramática de latim porque no século XVIII
António Pereira de Figueiredo, o primeiro tradutor da Bíblia completa para
português, também foi autor de uma gramática de latim muito utilizada ainda no
século XIX”.
E referiu
que a gramática “foi feita com aqueles parâmetros que eram habituais no século
XVIII e XIX, em que o latim fazia parte da escolaridade”, mas, lembrando
que “hoje uma gramática como a de António Pereira de Figueiredo não seria
útil para ninguém”, pelo que “era necessário pensar numa gramática do latim
feita noutros termos” e foi o que ele quis fazer.
Sustentando
que será uma gramática moderna e atualizada destinada aos professores e alunos
do ensino secundário, aos universitários e a quem não sabe nada desta língua,
mas que gostaria de olhar para um excerto em latim e perceber o que lá está
escrito, discorre no Preambulum:
“Muitas pessoas gostariam de saber latim –
até pessoas que não estão ligadas às Letras. Outras – historiadores,
arqueólogos, linguistas, teólogos, filósofos e lusitanistas – têm consciência
de que deveriam saber (bastante mais) latim. E outras, ainda, estão de facto a
aprendê-lo em Portugal, na escola ou na universidade, mas sem se darem conta de
que, muito provavelmente, usam recursos para o estudo do latim que ainda refletem,
em pleno século XXI, os programas e as metodologias dos liceus no tempo da
ditadura de Salazar. Este livro pretende oferecer a todas estas pessoas uma
gramática nova, cujo objetivo é sistematizar de forma desempoeirada os tópicos
essenciais para a leitura de textos latinos em prosa e em verso. (…) Aquelas palavras vernáculas que aparecem
nas inscrições latinas, porque os romanos também diziam palavrões, estão aqui.
Os romanos escreviam-nas, faziam parte do dia a dia. Mas os exemplos também são
tirados dos grandes autores clássicos, dos grandes autores cristãos.”.
Dizendo
que procurou, na obra, “exemplos de latim real, autêntico” e evitou “o
latim forjado, as frases inventadas para se ensinar latim, que aparecem em
muitas gramáticas, assegurou ter achado “mais motivante” dar aos leitores “frases
de autores reais, desde os mais elevados até àqueles que escreviam com
palavrões e com erros de ortografia”. Por outro lado, muitos dos grafitos que
Lourenço utiliza servem para explicar que também os romanos escreviam de
uma forma fonética (“escreviam como falavam). Se temos a controvérsia de reformas ortográficas (não foi a de
1990 em vigor a única problemática), “os romanos
já tinham resolvido isso”, não pronunciando “certas letras que apareciam
na escrita culta”, pelo que “se iam escrever um grafito na parede a mandar
alguém àquela parte, escreviam como falavam”. Assim, o atual gramático adverte:
“É muito importante termos essa noção de que
o latim não é uma língua em mármore, foi uma língua viva durante muitos
séculos. E é uma língua que nos transmite toda a experiência humana, desde o
sexo mais sórdido até à espiritualidade mais elevada. Está tudo presente
na literatura latina.”.
Assim, esta
gramática tenta uma abordagem histórica, que abrange desde exemplos mais
antigos que conhecemos do latim escrito a exemplos do latim cristão mais
tardio. Confessa o autor:
“Nisso estou a seguir uma metodologia
completamente diferente das gramáticas tradicionais. Uma delas, do século XIX,
dizia que era intolerável dar exemplos de latim posterior ao século II. Eu acho
que é intolerável não dar. Logo à partida isso nos impediria de dar exemplos de
Santo Agostinho, um dos maiores escritores que alguma vez escreveu em qualquer
língua e um dos mais talentosos escritores da língua latina.”.
Verificando
que em algumas gramáticas se encontram frases atribuídas a Cícero, a Salústio,
a Tácito... que eles nunca escreveram, Lourenço, que utilizou uma coletânea
de toda a obra que existe em latim da Universidade de Harvard para poder fazer
tal busca, diz:
“Podemos hoje verificar se uma frase
supostamente de Cícero é dele ou não. Verifiquei cada citação de modo a que ela
seja mesmo aquilo que os autores escreveram. Penso que isso é um aspecto
importante desta gramática. (…). Quis também que esta gramática fosse um livro
interessante sobre a língua latina e sobre a língua portuguesa. Por isso, a
obra tem vários capítulos de reflexão sobre a história da língua e sobre a
literatura latina.”.
***
Em informação
enviada à comunicação social, a editora vincava que “o estudo do latim não é apenas um luxo de eruditos; é a
matriz da nossa identidade, do conhecimento daquilo que somos, do que é a nossa
cultura, das nossas origens”, pelo que a gramática “procura evitar
informação secundária e redundante” e pretende ser um guia “essencial” para
quem utilizar para “abordar a leitura de
textos latinos em prosa e em verso”. E recordava que, em 2016, Lourenço
fora distinguido com o Prémio Pessoa, em cujo anúncio o presidente do
júri, Francisco Pinto Balsemão, enaltecera o trabalho de tradução de “grandes
obras de literatura clássica, através de um trabalho metódico, revelador de uma
ambição servida por uma rara erudição”; e que Lourenço “traduziu com rigor as
obras fundamentais de Homero, bem como duas tragédias de Eurípedes” e
evidenciou o “desejo de disseminar
a Cultura Clássica pelo público”.
***
A gramática
abre com um Preambulum, onde fica
expressa a intenção da obra e algumas das suas especificações; segue-se o
apartado de Abreviaturas, sinais e
convenções (sendo de
ressaltar o uso do sigma lunar c, em vez dos bizantinos σ, ς
– inventados no século IX d.C.), a ter em conta para o entendimento da gramática; e
seguem-se dois capítulos: Introdução à
língua latina e Noções básicas de
pronúncia.
No primeiro,
situa-se o latim no concerto de outras línguas, com destaque para o grego – que
não foi apenas fruto da conquista romana da Grécia, mas era língua falada e
escrita por muitos elementos da elite romana – e para as línguas da península
itálica, de que ficaram poucos vestígios, bem como das línguas vigentes nos
territórios sujeitos à romanização. Por outro lado, o autor, que faz história
da língua latina desde os primórdios até tempos bem tardios da modernidade,
recolhe exemplos da epigrafia, dos grafitos, dos epitáfios, das obras
literárias, da antiguidade à modernidade, assegurando que a latinidade teve uma
literatura autónoma e pujante (ao invés do que muitos quiseram fazer crer). E, além de fazer algumas comparações com outras
línguas, algumas da atualidade, e de assegurar que o latim persiste
reconhecível nas línguas românicas, apresenta um quadro com a proveniência
territorial de autores e respetivas obras (nenhum deles de Roma) do início da República e do início do Império. No segundo
capítulo, refere as diversas tentativas de pronúncia do latim, marcando a nota
da evolução aparecimento de novos grafemas e da tentativa de pronúncia por
parte dos povos que leem o latim escrito que chegou a até nós e sustentando a
validade da pronúncia dita restaurada, com a sua situação no respetivo tempo
histórico e procurando o real sustentáculo da sua legitimidade, por exemplo,
pela via das onomatopeias.
Entra-se, depois,
na 1.ª parte, a da “I. Morfologia”, com o capítulo da Introdução aos casos (relevando o seu interesse sintático e
de compreensão, a sua historia, a diferenciação do vocativo nos nomes da 2.ª declinação
terminados em -us e os resquícios do antigo locativo indo-europeu,
mas não mencionando o instrumental); seis capítulos dedicados aos Substantivos (Lourenço mantém esta designação em vez
de “nomes”, que Stock adota), um por cada uma das 5 declinações e outro para os substantivos
compostos; o capítulo da Introdução ao
verbo latino (explicando
por que motivo não há futuro do conjuntivo, esclarecendo o sentido dos modos
verbais e distinguindo os tempos do imperfectum
e do perfectum; mantem a designação
do verbo pela 1.ª pessoa do singular do presente do indicativo, mas dispensando
a menção da 2.ª na enunciação do verbo); O verbo ‘sum’; Verbos (presente,
futuro e imperfeito) Verbos. ‘Perfectum’ (perfeito,
mais-que-perfeito e futuro perfeito); Quadro completo das
quatro conjugações; Verbos
irregulares e defetivos; Principais
verbos depoentes; Pronomes; Adjetivos; e Advérbios.
Além das pertinentes
explicações de cada uma das classes gramaticais e da formação e evolução das
palavras e comparação com as similares em diversas línguas antigas e modernas,
são de relevar: a indicação de forma verbal para a 2.ª pessoa do plural do imperativo
futuro da passiva; amamino,
inexistente na 2.ª conjugação, regimino,
capimino e audimino; a não menção da terminação -ere na 3.ª pessoa do plural
do perfeito do indicativo; a menção da vogal breve entre o tema verbal em consoante
e a desinência; a comparação recorrente entre as formas latinas e as gregas; os
casos de anaptixe e de apofonia (notei que refere palavras compostas em situações prefixação,
que se têm hoje por derivadas por sufixação); a não menção do demonstrativo iste ou de neuter e alteruter no âmbito do que chama – e
bem – adjetivos pronominais de conjugação
mista.
Segue-se a 2.ª parte, a da “II. Sintaxe”, com: Introdução ao
estudo da sintaxe latina; Conjunções; Preposições; Sintaxe dos casos (acusativo, dativo, genitivo ablativo); Consecutivo temporum;
Guia prático de orações subordinadas (infinitivas, finais, consecutivas, condicionais, causais, temporais,
concessivas, comparativas, relativas); Interrogativas diretas e indiretas;
Ordens diretas e indiretas (Não
se trata da ordem das palavras na frase, mas da formulação de pedidos, exortações
ou ordens pela afirmativa ou pela negativa); Orações de ‘quin’ e ‘quominus’;
verbos que exprimem receio; verbos impessoais; Particípios; gerúndio e gerundivo; supino.
É de
sublinhar a inclusão das conjunções e preposições na Sintaxe; o relevo dado à sintaxe dos casos especificando, em cada
um, os diversos tipos e as palavras que os regem; o tratamento específico, em Sintaxe, das formas adjetivas (gerundivo e particípios) e substantivas (infinitivo, gerúndio e supino) do verbo, depois de as ter
identificado na Morfologia; e a dedicação
dum capítulo às Ordens diretas e
indiretas.
Por fim,
em “III. Varia”, abordam-se os Numerais – cardinais e ordinais (omitindo
os distributivos
e os adverbiais); Noções de fonética histórica do latim (com
relevo para muitos fenómenos fonéticos conhecidos da gramática histórica do português,
mas bem aplicados na origem e na história do latim); Noções de métrica latina: poesia; Noções de métrica latina: prosa (Além da minuciosa
explicação da diacronia e da sincronia da versificação com os diverso tipos de pés
e versos, releva-se a métrica na prosa, em que sobressai o ritmo); Datas romanas (com a origem dos nomes dos meses, o
processo de formação da designação do dia do mês e a sua aplicação por extenso
e por abreviatura a cada um dos dias de cada mês – coisa nunca vista); Abreviaturas romanas; Vocabulário
essencial da língua latina (que Lourenço entende ser objeto de memorização); Antologia de textos (para criar hábito de
ler latim: desde o ‘Epitáfio de Cláudia’
ao Epitáfio de Gregório V); Bibliografia (abundante); Índice
temático (útil, embora pouco extenso).
Lourenço
usa a nova ortografia, embora não o Dicionário Terminológico em vigor.
***
Enfim,
apesar de alguns (poucos) reparos entrelidos e sem evidenciar todas as
vantagens, é de saudar a gramática da pena de Lourenço, elaborada em permanente
diálogo com a história das línguas, com os autores latinos e com a comunidade
de investigadores e estudiosos. Prosit!
2019.03.30 –
Louro de Carvalho
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