sábado, 30 de março de 2019

Uma “Nova Gramática de Latim”, que se lê com proveito e prazer


Veio para as livrarias, no passado dia 15 de março a Nova Gramática do Latim, do professor Frederico Lourenço, um livro de 512 páginas editado pela Quetzal Editores, que a publicitação diz com legítimo orgulho ser uma gramática “desempoeirada”, que será para todos. É uma gramática atualizada do latim a responder às contemporâneas exigências da investigação pautada pelo rigor e da receção que pretende legível e aprazível a obra que é dada à estampa.
O autor, hoje quiçá o mais importante dos mestres de estudos clássicos no ativo em Portugal, tornou-se conhecido pela tradução portuguesa (atual e moderna) dos tradicionalmente designados por poemas homéricos (Ilíada e Odisseia), bem como as respetivas versões para jovens, e a tradução para português de hoje da versão bíblica da Septuaginta (a Bíblia grega), indo já no Volume IV (preveem-se seis volumes), Tomo I. E, segundo diz, agora tem o sonho de “fazer uma gramática do grego.
É referido que a Nova Gramática do Latim é “um livro para todos”, porque o estudo do Latim não pode ser unicamente “um luxo de eruditos”, pois “é a matriz da nossa identidade, do conhecimento daquilo que somos, do que é a nossa cultura, das nossas origens”. E o editor reconhece que, “durante décadas, assistimos à diminuição gradual do interesse pelas línguas e culturas clássicas”, mas, “com a publicação de obras traduzidas do grego e do latim por classicistas como Frederico Lourenço (entre outros), parece estar a processar-se “uma alteração nessa curva descendente e o renascimento do gosto por esse mundo onde estão parte das nossas raízes”. Assim, este livro será “uma obra de consulta e trabalho” e uma obra “fascinante sobre a língua latina, a sua literatura e os mistérios da língua que hoje falamos”. Sobre isto, diz o autor:
Uns quererão aprender latim para ler Agostinho ou Tomás de Aquino ou Pico della Mirandola ou Descartes ou o padre António Vieira. Outras pessoas olharão para a Antiguidade romana, para os grandes autores pagãos, como principal chamariz para pisar a ponte mental que é a aprendizagem da gramática latina. É uma ponte que as levará do português, que é uma forma de latim, para a explosão de nitidez que é o latim propriamente dito. Abre-se-lhes, então, um universo intelectual de cujo interesse não podemos separar o facto de continuar tão válido hoje como era ontem ou há 2000 anos. Na verdade, podemos dizer que estudar latim é um pouco como diz Vergílio na Eneida: ‘Entra-se numa floresta antiga’.”.
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Obviamente, sem desmerecer do valor desta gramática, que é valioso e “inexcedido” até ao presente, não posso concordar com o item da sua publicidade, que aponta que a gramática mais usada em Portugal “teve a sua primeira edição há mais de 50 anos e refletia ainda os programas e as metodologias do ensino do latim nos liceus antes do 25 de Abril”.
Na verdade, a 3.ª edição da Gramática latina, de António Freire, surgiu em 1983 (subsidiada pela Secretaria de Estado do Ensino Superior), constituindo uma versão “completamente remodelada e cientificamente elaborada” face a edições anteriores, com a adição de questões de Fonética, Morfologia e Sintaxe históricas, para o que recorreu a excursus ou digressões, e complementada com exercícios correspondentes para os Liceus e Universidades na 3.ª edição da Retroversão Latina. E o autor confessou-se aberto a sugestões que foram acolhidas na 4.ª edição em 1987.
Também a Lisboa Editora publicou, em 2000, a 2.ª edição da Gramática latina, de António Afonso Borregana, que a  Raiz Editora / Lisboa Editora reeditou em 2006. O muito usado Compêndio de Gramática Latina, de José Nunes de Figueiredo e Maria Ana Almendra foi reeditado pela Porto Editora em 2016. Em 1997, a mesma editora publicara o Guia de Gramática de Latim, de José Marcelino Gomes, uma caixa cartonada com 36 cartões ou fichas que “contêm, de modo altamente condensado, todo o principal conteúdo de apoio à elaboração de uma qualquer tradução que faça parte dos conteúdos programáticos”. E a Editorial Presença editou, em 2000, a Gramática de Latim, de Leo Stock, com tradução para português de António Moniz e Maria Celeste Moniz, complementada com a brochura Conjugação dos Verbos Latinos, do mesmo autor e com tradução dos mesmos. Isto, para não falar do esforço feito pela REL (Renovação do Ensino do Latim) nas décadas de 70/80, que produziu a respetiva sebenta. 
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Agora, a partir de 15 de março (adquiri-a no dia 25), está disponível nas livrarias a Nova Gramática do Latim, de Frederico Lourenço, Prémio Pessoa em 2016, docente de línguas clássicas desde que se licenciou, em 1988, tendo começado o percurso profissional como professor de Latim no ensino secundário. A novidade foi apresentada, na manhã de 18 de fevereiro, por Francisco José Viegas, diretor editorial da Quetzal, e pelo autor, no encontro com os jornalistas na Cinemateca, em Lisboa. Disse o autor:
Não sou o primeiro tradutor português da Bíblia a publicar em simultâneo uma gramática de latim porque no século XVIII António Pereira de Figueiredo, o primeiro tradutor da Bíblia completa para português, também foi autor de uma gramática de latim muito utilizada ainda no século XIX”.
E referiu que a gramática “foi feita com aqueles parâmetros que eram habituais no século XVIII e XIX, em que o latim fazia parte da escolaridade”, mas, lembrando que “hoje uma gramática como a de António Pereira de Figueiredo não seria útil para ninguém”, pelo que “era necessário pensar numa gramática do latim feita noutros termos” e foi o que ele quis fazer.
Sustentando que será uma gramática moderna e atualizada destinada aos professores e alunos do ensino secundário, aos universitários e a quem não sabe nada desta língua, mas que gostaria de olhar para um excerto em latim e perceber o que lá está escrito, discorre no Preambulum:
Muitas pessoas gostariam de saber latim – até pessoas que não estão ligadas às Letras. Outras – historiadores, arqueólogos, linguistas, teólogos, filósofos e lusitanistas – têm consciência de que deveriam saber (bastante mais) latim. E outras, ainda, estão de facto a aprendê-lo em Portugal, na escola ou na universidade, mas sem se darem conta de que, muito provavelmente, usam recursos para o estudo do latim que ainda refletem, em pleno século XXI, os programas e as metodologias dos liceus no tempo da ditadura de Salazar. Este livro pretende oferecer a todas estas pessoas uma gramática nova, cujo objetivo é sistematizar de forma desempoeirada os tópicos essenciais para a leitura de textos latinos em prosa e em verso. (…) Aquelas palavras vernáculas que aparecem nas inscrições latinas, porque os romanos também diziam palavrões, estão aqui. Os romanos escreviam-nas, faziam parte do dia a dia. Mas os exemplos também são tirados dos grandes autores clássicos, dos grandes autores cristãos.”.
Dizendo que procurou, na obra, “exemplos de latim real, autêntico” e evitou “o latim forjado, as frases inventadas para se ensinar latim, que aparecem em muitas gramáticas, assegurou ter achado “mais motivante” dar aos leitores “frases de autores reais, desde os mais elevados até àqueles que escreviam com palavrões e com erros de ortografia”. Por outro lado, muitos dos grafitos que Lourenço utiliza servem para explicar que também os romanos escreviam de uma forma fonética (“escreviam como falavam). Se temos a controvérsia de reformas ortográficas (não foi a de 1990 em vigor a única problemática), “os romanos já tinham resolvido isso”, não pronunciando “certas letras que apareciam na escrita culta”, pelo que “se iam escrever um grafito na parede a mandar alguém àquela parte, escreviam como falavam”. Assim, o atual gramático adverte:
É muito importante termos essa noção de que o latim não é uma língua em mármore, foi uma língua viva durante muitos séculos. E é uma língua que nos transmite toda a experiência humana, desde o sexo mais sórdido até à espiritualidade mais elevada. Está tudo presente na literatura latina.”.
Assim, esta gramática tenta uma abordagem histórica, que abrange desde exemplos mais antigos que conhecemos do latim escrito a exemplos do latim cristão mais tardio. Confessa o autor:
Nisso estou a seguir uma metodologia completamente diferente das gramáticas tradicionais. Uma delas, do século XIX, dizia que era intolerável dar exemplos de latim posterior ao século II. Eu acho que é intolerável não dar. Logo à partida isso nos impediria de dar exemplos de Santo Agostinho, um dos maiores escritores que alguma vez escreveu em qualquer língua e um dos mais talentosos escritores da língua latina.”.
Verificando que em algumas gramáticas se encontram frases atribuídas a Cícero, a Salústio, a Tácito... que eles nunca escreveram, Lourenço, que utilizou uma coletânea de toda a obra que existe em latim da Universidade de Harvard para poder fazer tal busca, diz: 
Podemos hoje verificar se uma frase supostamente de Cícero é dele ou não. Verifiquei cada citação de modo a que ela seja mesmo aquilo que os autores escreveram. Penso que isso é um aspecto importante desta gramática. (…). Quis também que esta gramática fosse um livro interessante sobre a língua latina e sobre a língua portuguesa. Por isso, a obra tem vários capítulos de reflexão sobre a história da língua e sobre a literatura latina.”.
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Em informação enviada à comunicação social, a editora vincava que “o estudo do latim não é apenas um luxo de eruditos; é a matriz da nossa identidade, do conhecimento daquilo que somos, do que é a nossa cultura, das nossas origens”, pelo que a gramática “procura evitar informação secundária e redundante” e pretende ser um guia “essencial” para quem utilizar para “abordar a leitura de textos latinos em prosa e em verso”. E recordava que, em 2016, Lourenço fora distinguido com o Prémio Pessoa, em cujo anúncio o presidente do júri, Francisco Pinto Balsemão, enaltecera o trabalho de tradução de “grandes obras de literatura clássica, através de um trabalho metódico, revelador de uma ambição servida por uma rara erudição”; e que Lourenço “traduziu com rigor as obras fundamentais de Homero, bem como duas tragédias de Eurípedes” e evidenciou o “desejo de disseminar a Cultura Clássica pelo público”.
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A gramática abre com um Preambulum, onde fica expressa a intenção da obra e algumas das suas especificações; segue-se o apartado de Abreviaturas, sinais e convenções (sendo de ressaltar o uso do sigma lunar c, em vez dos bizantinos σ, ς – inventados no século IX d.C.), a ter em conta para o entendimento da gramática; e seguem-se dois capítulos: Introdução à língua latina e Noções básicas de pronúncia.
No primeiro, situa-se o latim no concerto de outras línguas, com destaque para o grego – que não foi apenas fruto da conquista romana da Grécia, mas era língua falada e escrita por muitos elementos da elite romana – e para as línguas da península itálica, de que ficaram poucos vestígios, bem como das línguas vigentes nos territórios sujeitos à romanização. Por outro lado, o autor, que faz história da língua latina desde os primórdios até tempos bem tardios da modernidade, recolhe exemplos da epigrafia, dos grafitos, dos epitáfios, das obras literárias, da antiguidade à modernidade, assegurando que a latinidade teve uma literatura autónoma e pujante (ao invés do que muitos quiseram fazer crer). E, além de fazer algumas comparações com outras línguas, algumas da atualidade, e de assegurar que o latim persiste reconhecível nas línguas românicas, apresenta um quadro com a proveniência territorial de autores e respetivas obras (nenhum deles de Roma) do início da República e do início do Império. No segundo capítulo, refere as diversas tentativas de pronúncia do latim, marcando a nota da evolução aparecimento de novos grafemas e da tentativa de pronúncia por parte dos povos que leem o latim escrito que chegou a até nós e sustentando a validade da pronúncia dita restaurada, com a sua situação no respetivo tempo histórico e procurando o real sustentáculo da sua legitimidade, por exemplo, pela via das onomatopeias.           
Entra-se, depois, na 1.ª parte, a da “I. Morfologia”, com o capítulo da Introdução aos casos (relevando o seu interesse sintático e de compreensão, a sua historia, a diferenciação do vocativo nos nomes da 2.ª declinação terminados em -us e os resquícios do antigo locativo indo-europeu, mas não mencionando o instrumental); seis capítulos dedicados aos Substantivos (Lourenço mantém esta designação em vez de “nomes”, que Stock adota), um por cada uma das 5 declinações e outro para os substantivos compostos; o capítulo da Introdução ao verbo latino (explicando por que motivo não há futuro do conjuntivo, esclarecendo o sentido dos modos verbais e distinguindo os tempos do imperfectum e do perfectum; mantem a designação do verbo pela 1.ª pessoa do singular do presente do indicativo, mas dispensando a menção da 2.ª na enunciação do verbo); O verbo sum’; Verbos (presente, futuro e imperfeito) Verbos. ‘Perfectum’ (perfeito, mais-que-perfeito e futuro perfeito); Quadro completo das quatro conjugações; Verbos irregulares e defetivos; Principais verbos depoentes; Pronomes; Adjetivos; e Advérbios.
Além das pertinentes explicações de cada uma das classes gramaticais e da formação e evolução das palavras e comparação com as similares em diversas línguas antigas e modernas, são de relevar: a indicação de forma verbal para a 2.ª pessoa do plural do imperativo futuro da passiva; amamino, inexistente na 2.ª conjugação, regimino, capimino e audimino; a não menção da terminação -ere na 3.ª pessoa do plural do perfeito do indicativo; a menção da vogal breve entre o tema verbal em consoante e a desinência; a comparação recorrente entre as formas latinas e as gregas; os casos de anaptixe e de apofonia (notei que refere palavras compostas em situações prefixação, que se têm hoje por derivadas por sufixação); a não menção do demonstrativo iste ou de neuter e alteruter no âmbito do que chama – e bem – adjetivos pronominais de conjugação mista.     
Segue-se a 2.ª parte, a da “II. Sintaxe”, com: Introdução ao estudo da sintaxe latina; Conjunções; Preposições; Sintaxe dos casos (acusativo, dativo, genitivo ablativo); Consecutivo temporum; Guia prático de orações subordinadas (infinitivas, finais, consecutivas, condicionais, causais, temporais, concessivas, comparativas, relativas); Interrogativas diretas e indiretas; Ordens diretas e indiretas (Não se trata da ordem das palavras na frase, mas da formulação de pedidos, exortações ou ordens pela afirmativa ou pela negativa); Orações de quin e quominus’; verbos que exprimem receio; verbos impessoais; Particípios; gerúndio e gerundivo; supino.
É de sublinhar a inclusão das conjunções e preposições na Sintaxe; o relevo dado à sintaxe dos casos especificando, em cada um, os diversos tipos e as palavras que os regem; o tratamento específico, em Sintaxe, das formas adjetivas (gerundivo e particípios) e substantivas (infinitivo, gerúndio e supino) do verbo, depois de as ter identificado na Morfologia; e a dedicação dum capítulo às Ordens diretas e indiretas.
Por fim, em “III. Varia”, abordam-se os Numerais – cardinais e ordinais (omitindo os distributivos e os adverbiais); Noções de fonética histórica do latim (com relevo para muitos fenómenos fonéticos conhecidos da gramática histórica do português, mas bem aplicados na origem e na história do latim); Noções de métrica latina: poesia; Noções de métrica latina: prosa (Além da minuciosa explicação da diacronia e da sincronia da versificação com os diverso tipos de pés e versos, releva-se a métrica na prosa, em que sobressai o ritmo); Datas romanas (com a origem dos nomes dos meses, o processo de formação da designação do dia do mês e a sua aplicação por extenso e por abreviatura a cada um dos dias de cada mês – coisa nunca vista); Abreviaturas romanas; Vocabulário essencial da língua latina (que Lourenço entende ser objeto de memorização); Antologia de textos (para criar hábito de ler latim: desde o ‘Epitáfio de Cláudia’ ao Epitáfio de Gregório V); Bibliografia (abundante); Índice temático (útil, embora pouco extenso).
Lourenço usa a nova ortografia, embora não o Dicionário Terminológico em vigor.
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Enfim, apesar de alguns (poucos) reparos entrelidos e sem evidenciar todas as vantagens, é de saudar a gramática da pena de Lourenço, elaborada em permanente diálogo com a história das línguas, com os autores latinos e com a comunidade de investigadores e estudiosos. Prosit!  
2019.03.30 – Louro de Carvalho

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