quarta-feira, 27 de março de 2019

Oportunidade ou não da aprovação e promulgação da LBS


Os últimos dias da semana passada emolduraram umas cenas de divergência entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro sobre a oportunidade da discussão parlamentar, aprovação, promulgação e publicação da nova LBS (Lei de Bases da Saúde).
Efetivamente, as divergências sobre a aprovação da nova LBS saltaram dos bastidores políticos para a praça pública. No dia 23 de março, ambos os estadistas falaram abertamente sobre como e quando o diploma deve ver a luz do dia divergindo abertamente.
Marcelo, numa conferência sobre saúde, na Reitoria da Universidade do Porto, declarou:
Não é a altura ideal – é preferível um princípio de legislatura a um fim da legislatura – para debates serenos. Há sempre mais tempo no início da legislatura, mas as realidades sucedem quando sucedem. Não é possível programar de forma asséptica e neutral o momento em que os debates ocorrem. É o momento ideal? Não é. Mas é o que existe.”.
A seguir, o Primeiro-Ministro, no contexto duma visita ao Sardoal, afirmava aos jornalistas:
Há a vontade de todos para que a Lei de Bases seja, e bem, aprovada nesta sessão legislativa, aliás, para assinalar os 40 anos da criação do SNS, e a vontade que o Governo tem é que seja votada pela maior maioria possível, e é nesse sentido que estamos a trabalhar”.
Interpelado sobre se o Governo afrontará o Presidente se ele vetar o diploma por ser aprovado só pela esquerda e o PS avançará com a reconfirmação parlamentar sem alterações, Costa disse que a LBS “não é para afrontar ninguém” e frisou que a lei está apresentada pelo Governo há muitos meses na Assembleia da República (AR), já foi objeto de discussão pública e de um primeiro debate parlamentar, que agora está-se nos trabalhos de especialidade e o que se deseja “é que seja aprovada pela maior maioria possível, mas isso compete à AR”. Com efeito, a proposta de LBS, aprovada em Conselho de Ministros a 13 de dezembro de 2018 e cujas linhas gerais foram apresentadas pela Ministra da Saúde, Marta Temido, em sessão pública que decorreu no Centro de Saúde de Sete Rios, em Lisboa, foi submetida para apreciação e votação da AR. Trata-se de uma proposta do Governo baseada no projeto apresentado pela Comissão de Revisão da Lei de Bases da Saúde, presidida por Maria de Belém, e que foi objecto de discussão pública, envolvendo parceiros institucionais, agentes do setor e o público em geral.
A proposta de lei deu entrada na AR no dia 13 de dezembro do ano passado. Mas, já antes, o BE, em junho, e o PCP, em novembro, tinham apresentado projetos de lei. E também PSD e CDS-PP apresentaram iniciativas sobre esta matéria, em janeiro. Todos os diplomas baixaram sem votação à Comissão de Saúde, onde se encontram em fase de discussão na especialidade. 
A Lei de Bases de Saúde é a Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, aprovada pelo PSD e pelo CDS, no XI Governo Constitucional (o 1.º de maioria absoluta do PSD, chefiado por Cavaco Silva), com votos contra de PS, PCP e PRD, e promulgada pelo então Presidente da República, Mário Soares.
Já há uns tempos, o Presidente insistira na defesa de que a nova LBS seja aprovada com o PSD e, falando em “larguíssimo consenso quanto ao diagnóstico da saúde em Portugal”, desejou que esse consenso se alargasse à “terapêutica. E advertiu para o risco de uma aprovação apressada:
Por mais agradável que seja, espero que não tenhamos de nos reencontrar para rediscutir a Lei de Bases da Saúde por termos chegado à conclusão de que a discussão que foi feita afinal tinha sido apenas a antecipação de uma discussão definitiva”.
Já fora da predita conferência, questionado sobre a notícia de que o Governo não acataria o veto, Marcelo salientou que a LBS está em comissão parlamentar, afirmou optar por esperar, pois é prematuro conjecturar sobre um trabalho que está em curso no Governo e acrescentou, que não se pode “antecipar” ao trabalho da AR e que “uma coisa é o Presidente da República desejar, neste como em outros domínios, que haja o máximo de entendimento possível”, outra é “imiscuir-se na vida do Parlamento”.
E António Costa respondeu à ideia do Presidente de que a lei tem de ser aprovada com o PSD:
A qualidade da lei não se mede por quem a aprova, mede-se pelo seu conteúdo e pelos seus resultados, e aquilo que é absolutamente fundamental é termos uma lei que cumpra o que está na Constituição e que é o modelo essencial do SNS, que é ter um SNS público, universal e tendencialmente gratuito”.
E o que importa, na ótica de Costa, é conseguir uma lei que permita “acomodar os novos desafios que hoje a inovação terapêutica coloca ao SNS, a nova dinâmica demográfica” para “criar aqui essas bases daquilo que deve ser a saúde das próximas décadas para os portugueses”.
Também na predita conferência do Porto em que participou ao lado do Presidente, a Ministra da Saúde admitiu que o papel do SNS enquanto financiador e prestador se “agravou” e disse ser urgente encontrar soluções para uma nova Lei de Bases “forte” e “modernizada”.
Assim, é expectável que a nova LBS venha a ser mesmo aprovada pela maioria parlamentar que apoia o Governo, ainda que Marcelo tenha defendido a necessidade de PS e PSD negociarem para conseguir um consenso alargado – ideia que o Governo não pretende acatar, pois, segundo o Público, Costa está decidido a levar o diploma negociado com o PCP e o BE em frente e a ideia é que o mesmo seja aprovado “antes do final da legislatura”. Como garantiu um governante, as negociações “estão a decorrer a bom ritmo” e até “podem incluir o PSD”, mas a prioridade é a negociação à esquerda.
O Executivo acredita que o Presidente não vetará a lei, mas, caso isso aconteça, a decisão está tomada: o Governo considera o tema uma linha vermelha e não pretende ceder para agradar a Belém: “Se ele vetar por causa do PSD, a Assembleia reconfirmará o diploma e isso será a derrota política do Presidente”. Isto, ao invés do que tem sucedido até agora, com o PS a alterar as leis conforme as sugestões do Chefe de Estado.
Porém, agora o PS acha que é demais e a proposta alterou o anteprojeto precisamente para, como se lê no Comunicado do Conselho de Ministros de 13 de dezembro passado, “reafirmar o papel do Estado” apostando “numa maior clarificação das relações entre os setores público, privado e social”, com vista a garantir “o direito à proteção da saúde através do SNS e de outras instituições públicas, assegurando um melhor acesso das pessoas aos cuidados de saúde, incluindo o acesso apropriado a cuidados de saúde de qualidade”.
***
A nova LBS vem sendo torpedeada por vozes extraparlamentares. Exemplo disso são as declarações do bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, que, a 11 de fevereiro, dizia que o SNS tem estado quase paralisado e até que estará pior do que há 20 anos, destacando que é a evolução da medicina que tem contribuído para “dar um certo equilíbrio” à capacidade de resposta do SNS. Acusa os políticos de falta de vontade de resolver os problemas do SNS e considera que o enfoque na alteração da Lei de Bases serviu para “desviar atenções”.
Marcelo Rebelo de Sousa disse, em tempos, que se revia no projeto de Maria de Belém. Agora, na Universidade do Porto, onde participou na conferência “O Sistema de Saúde para o Cidadão”, defendeu que este “não é o momento ideal” para discutir a lei, sendo preferível que a mesma fosse discutida em “princípio de legislatura”. E, citado pela Lusa, admitiu estar a ser “intencionalmente abstrato e genérico” para refletir sobre uma questão “sem o melindre de poder ser considerado condicionante ao trabalho da Assembleia da República”. Discursando numa sala onde estava a Ministra da Saúde, disse que agora tinha de “esperar, acompanhar e aguardar os próximos debates na esperança de não ter de rediscutir a lei”, “por termos chegado à conclusão de que a discussão que foi feita afinal tinha sido apenas a antecipação de uma discussão definitiva”.
E Maria de Belém acha-a inconstitucional por impor a responsabilidade individual pela saúde.
***
Do lado dos defensores da aprovação da lei nesta sessão legislativa, além do PS e do Governo, surge o secretário-geral do PCP a sustentar que “há condições” para aprovar uma lei necessária à defesa do SNS e a afirmar não perceber “a preocupação” de Marcelo Rebelo de Sousa. E diz:
Não percebo a preocupação do Presidente da República porque na década de 90 a lei foi aprovada pelo PSD e CDS e ninguém teve esse prurido, de contar com os outros”.
Obviamente o dirigente comunista referia-se ao diploma aprovado em 1990, com os votos favoráveis do PSD e do CDS e contra da esquerda parlamentar. Falando aos jornalistas à margem da manifestação dos professores, na Avenida da Liberdade, em Lisboa, após ter sido questionado sobre uma notícia do Público que referia uma “ameaça de veto” à LBS, caso o diploma seja negociado e aprovado sem incluir o PSD, sublinhou que “há um processo negocial que decorre” e que “há condições para aprovar uma lei necessária à defesa do Serviço Nacional de Saúde”, afirmando que o PCP está disponível para essa discussão. E acrescentou:
Quem é determinante naturalmente é o PS, contem connosco para avançar e garantir o Serviço Nacional de Saúde”. 
Também Vital Moreira, no blogue “Causa Nossa” declarou, a 20 de março, não ver a suposta inconstitucionalidade de norma que estipule “a responsabilidade individual pela proteção da saúde própria e alheia”. Com efeito, “a Constituição estabelece explicitamente um dever de defender e proteger a saúde e não distingue entre a saúde própria e a de terceiros”. Depois, aduz que, “em matéria e direitos sociais não deve haver direitos individuais sem responsabilidade individual”, pois “os direitos sociais são pagos por todos e a irresponsabilidade individual fica cara à coletividade”. E adverte que não vale alegar que “tal dever não é suscetível de sanção ou que poderia abrir caminho a sanções absurdas como a recusa de cuidados de saúde” a quem o desrespeitasse. E, concedendo que “pode haver (e há) “normas imperfeitas”, sem sanção, sem por isso perderem o seu sentido normativo, como ‘deveres cívicos’, permitindo a censura comunitária sobre comportamentos que as ignorem”, diz não ver, “por exemplo, porque é que uma obrigação legal de vacinação não pode ser sancionada (por via contraordenacional, por exemplo) ou porque é que é que um fumador não há de ser discriminado, por exemplo, no pagamento de taxas moderadoras pelos cuidados de saúde decorrentes da sua adicção”. E conclui: 
É tempo de equilibrar uma hipercultura de direitos  contra o Estado e a sociedade com um módico de cultura de responsabilidade individual perante a coletividade. E, se a moral social dominante não favorece essa responsabilidade individual (pelo contrário), que seja a lei a incentivá-la.”.
É bom que alguém como Moreira (com autoridade académica) ponha a questão nos devidos termos.
***
A 7 de fevereiro, o Presidente, face ao eco gerado na opinião pública pelas suas palavras sobre a matéria, negou que haja prometido um veto e disse ver espaço para acordo alargado sobre a LBS, dependendo da perceção. Disse-o no programa da TVI24 “Circulatura do Quadrado”, da TVI, gravado no Palácio de Belém, em Lisboa, em que participou como convidado especial. E, questionado se há um veto prometido da sua parte, respondeu:
Não há veto prometido nenhum, porque pura e simplesmente depende da versão final da lei”.
E considerou:
Em si mesma, esta proposta é uma proposta que não fica muito longe do texto da comissão que tinha sido originalmente elaborado. E não é necessariamente aquela de que se falou em termos de discurso mais aberto e mais conflituante”.
Referia-se ao articulado da proposta do Governo, que leu, na versão final, e que o fez voltar a crer num acordo implícito alargado no domínio da saúde. E justificou:
O articulado não é exatamente igual na sua densidade doutrinária ao preâmbulo, nem ao debate parlamentar, nem ao debate público, que é um debate feito, essencialmente, como se compreende, em termos de alinhamentos, num contexto pré-eleitoral. Ou seja, eu acho que há espaço.”.
Citou a proposta do Governo no que respeita ao “ponto polémico, que é o problema dos setores” público, privado e social, dizendo que “devem atuar de acordo com o princípio da cooperação, pautando-se por regras de transparência”. E prosseguiu: 
Dentro do Serviço Nacional de Saúde (SNS), gestão pública preferentemente, mas previsão expressa de contratos com setor social, setor privado e trabalhadores sempre que necessário, a título subsidiário, isto é, supletivamente e temporário”.
O Chefe de Estado disse que a “fórmula flexível” a que tem apelado – “que dê para situações de prosperidade económica, mas também de crise, flexível a articulação dos setores e realista, e por isso duradoura” – corresponde ao “que está no articulado” da proposta de lei. E concluiu:
Podemos agora discutir se é mais flexível ou menos flexível e como é que será. O Parlamento é soberano para decidir como será.”.
***
Ora, o Presidente fala abundantemente sobre os processos legislativos em várias matérias e, no caso da saúde, não deixa dúvidas em relação ao que entrevê, pretende e fará. E fá-lo, quer na substância, quer no processo, quer na oportunidade. Porém, confrontado implicitamente com a suposta interferência com o poder do Parlamento, escuda-se no caráter abstrato das suas declarações, dizendo que é preciso esperar, que o Parlamento é soberano e que se pronunciará só quando o texto definitivo lhe chegar às mãos. Mas opina, vai adiante, recua e volta a falar.   
Assim, adverte com razão Vital Moreira, a 19 de março, no blogue já referido e citado, que o Presidente se vem permitindo “pronunciar-se publicamente, com alguma frequência, sobre matérias pendentes de procedimento legislativo na AR” (chegando a enviar notas à AR sobre leis em debate), e condicionar desse modo “diretamente o exercício da função legislativa que cabe em exclusivo ao Parlamento”. E o constitucionalista diz que, “numa república parlamentar, o debate legislativo cabe aos partidos políticos representados na AR e às organizações da sociedade civil” (estas em termos de ‘democracia participativa’). E o PR dever-se-ia “manter à margem dele”, pois compete-lhe, no final, “ajuizar, face à formulação concreta dos diplomas aprovados, sobre um eventual veto político, recusando a sua promulgação”.
Porem, sustenta que são “mais problemáticos os casos em que o Presidente antecipadamente deixa entender ou indicia diretamente que não promulgará uma lei pendente de votação na AR, em função da solução legislativa em consideração ou caso não seja aprovada por maioria qualificada”. Com efeito, “estes casos de ‘veto antecipado’ e, em especial, a exigência de aprovação de leis por maioria qualificada, nos casos em que a Constituição não a estipula, revestem maior gravidade do que as situações anteriores, por a perspetiva de veto presidencial levar as oposições a radicalizarem as suas posições na disputa legislativa, dispensando-as de negociar soluções de compromisso com a maioria governativa”. E justifica:
Por definição, o eventual veto legislativo só deve ser equacionado a posteriori, face ao resultado final do labor legislativo, não devendo poder fundar-se na falta de uma maioria qualificada que a Constituição não exige”.
***
É de crer que Marcelo, professor de Direito Público e de Ciência Política saiba isso tudo, mas talvez a qualificação académica o faça esticar até ao limite (e ultrapassá-lo) o poder presidencial!
2019.03.26 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário