Os últimos
dias da semana passada emolduraram umas cenas de divergência entre o Presidente
da República e o Primeiro-Ministro sobre a oportunidade da discussão
parlamentar, aprovação, promulgação e publicação da nova LBS (Lei de Bases
da Saúde).
Efetivamente,
as divergências sobre a aprovação da nova LBS saltaram dos bastidores políticos
para a praça pública. No dia 23 de março, ambos os estadistas falaram
abertamente sobre como e quando o diploma deve ver a luz do dia divergindo
abertamente.
Marcelo,
numa conferência sobre saúde, na Reitoria da Universidade do Porto, declarou:
“Não
é a altura ideal – é preferível um princípio de legislatura a um fim da
legislatura – para debates serenos. Há sempre mais tempo no início da
legislatura, mas as realidades sucedem quando sucedem. Não é possível programar
de forma asséptica e neutral o momento em que os debates ocorrem. É o momento
ideal? Não é. Mas é o que existe.”.
A seguir, o
Primeiro-Ministro, no contexto duma visita ao Sardoal, afirmava aos
jornalistas:
“Há
a vontade de todos para que a Lei de Bases seja, e bem, aprovada nesta sessão
legislativa, aliás, para assinalar os 40 anos da criação do SNS, e a vontade
que o Governo tem é que seja votada pela maior maioria possível, e é nesse
sentido que estamos a trabalhar”.
Interpelado
sobre se o Governo afrontará o Presidente se ele vetar o diploma por ser
aprovado só pela esquerda e o PS avançará com a reconfirmação parlamentar sem
alterações, Costa disse que a LBS “não é para afrontar ninguém” e frisou que a
lei está apresentada pelo Governo há muitos meses na Assembleia da República (AR), já foi objeto de discussão pública e de um primeiro debate
parlamentar, que agora está-se nos trabalhos de especialidade e o que se deseja
“é que seja aprovada pela maior maioria possível, mas isso compete à AR”. Com
efeito, a proposta de LBS, aprovada em
Conselho de Ministros a 13 de dezembro de 2018 e cujas linhas gerais foram
apresentadas pela Ministra da Saúde, Marta Temido,
em sessão pública que decorreu no Centro de Saúde de Sete Rios, em Lisboa, foi
submetida para apreciação e votação da AR. Trata-se de uma proposta do Governo
baseada no projeto apresentado pela Comissão de Revisão da Lei de Bases da
Saúde, presidida por Maria de Belém, e que foi objecto de discussão pública,
envolvendo parceiros institucionais, agentes do setor e o público em geral.
A proposta
de lei deu entrada na AR no dia 13 de dezembro do ano passado. Mas, já
antes, o BE, em junho, e o PCP, em novembro, tinham apresentado projetos de lei.
E também PSD e CDS-PP apresentaram iniciativas sobre esta matéria, em
janeiro. Todos os diplomas baixaram sem votação à Comissão de Saúde, onde
se encontram em fase de discussão na especialidade.
A Lei de
Bases de Saúde é a Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, aprovada pelo PSD e pelo CDS, no XI Governo
Constitucional (o 1.º de maioria absoluta do PSD, chefiado por Cavaco
Silva), com votos contra de PS, PCP e
PRD, e promulgada pelo então Presidente da República, Mário Soares.
Já há uns
tempos, o Presidente insistira na defesa de que a nova LBS seja aprovada com o
PSD e, falando em “larguíssimo consenso quanto ao diagnóstico da saúde em
Portugal”, desejou que esse consenso se alargasse à “terapêutica. E advertiu
para o risco de uma aprovação apressada:
“Por mais agradável que seja, espero que não
tenhamos de nos reencontrar para rediscutir a Lei de Bases da Saúde por termos
chegado à conclusão de que a discussão que foi feita afinal tinha sido apenas a
antecipação de uma discussão definitiva”.
Já fora da predita
conferência, questionado sobre a notícia de que o Governo não acataria o veto,
Marcelo salientou que a LBS está em comissão parlamentar, afirmou optar por
esperar, pois é prematuro conjecturar sobre um trabalho que está em curso no
Governo e acrescentou, que não se pode “antecipar” ao trabalho da AR e que “uma
coisa é o Presidente da República desejar, neste como em outros domínios, que
haja o máximo de entendimento possível”, outra é “imiscuir-se na vida do
Parlamento”.
E António Costa
respondeu à ideia do Presidente de que a lei tem de ser aprovada com o PSD:
“A
qualidade da lei não se mede por quem a aprova, mede-se pelo seu conteúdo e
pelos seus resultados, e aquilo que é absolutamente fundamental é termos uma
lei que cumpra o que está na Constituição e que é o modelo essencial do SNS,
que é ter um SNS público, universal e tendencialmente gratuito”.
E o que
importa, na ótica de Costa, é conseguir uma lei que permita “acomodar os novos desafios que hoje a
inovação terapêutica coloca ao SNS, a nova dinâmica demográfica” para “criar
aqui essas bases daquilo que deve ser a saúde das próximas décadas para os
portugueses”.
Também na predita
conferência do Porto em que participou ao lado do Presidente, a Ministra da
Saúde admitiu que o papel do SNS enquanto financiador e prestador se “agravou”
e disse ser urgente encontrar soluções para uma nova Lei de Bases “forte” e
“modernizada”.
Assim, é
expectável que a nova LBS venha a ser mesmo aprovada pela maioria parlamentar
que apoia o Governo, ainda que Marcelo tenha defendido a necessidade de PS e
PSD negociarem para conseguir um consenso alargado – ideia que o Governo não
pretende acatar, pois, segundo o Público, Costa está decidido
a levar o diploma negociado com o PCP e o BE em frente e a ideia é que o mesmo
seja aprovado “antes do final da legislatura”. Como garantiu um governante, as
negociações “estão a decorrer a bom ritmo” e até “podem incluir o PSD”, mas a
prioridade é a negociação à esquerda.
O Executivo
acredita que o Presidente não vetará a lei, mas, caso isso aconteça, a decisão
está tomada: o Governo considera o tema uma linha vermelha e não pretende ceder
para agradar a Belém: “Se ele vetar por
causa do PSD, a Assembleia reconfirmará o diploma e isso será a derrota
política do Presidente”. Isto, ao invés do que tem sucedido até agora, com
o PS a alterar as leis conforme as sugestões do Chefe de Estado.
Porém,
agora o PS acha que é demais e a proposta alterou o anteprojeto precisamente
para, como se lê no Comunicado do Conselho de Ministros de 13 de dezembro
passado, “reafirmar
o papel do Estado” apostando “numa maior clarificação das relações entre
os setores público, privado e social”, com vista a garantir “o
direito à proteção da saúde através do SNS e de outras instituições públicas,
assegurando um melhor acesso das pessoas aos cuidados de saúde, incluindo o
acesso apropriado a cuidados de saúde de qualidade”.
***
A nova LBS vem sendo torpedeada por vozes extraparlamentares. Exemplo disso
são as declarações do
bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, que, a 11 de fevereiro,
dizia que o SNS tem estado quase paralisado e até que estará pior do que há 20
anos, destacando que é a evolução da medicina que tem contribuído para “dar um
certo equilíbrio” à capacidade de resposta do SNS. Acusa os políticos de falta
de vontade de resolver os problemas do SNS e considera que o enfoque na alteração
da Lei de Bases serviu para “desviar atenções”.
Marcelo
Rebelo de Sousa disse, em tempos, que se revia no projeto de Maria de Belém.
Agora, na Universidade do Porto, onde participou na conferência “O Sistema de Saúde para o Cidadão”, defendeu
que este “não é o momento ideal” para discutir a lei, sendo preferível que a
mesma fosse discutida em “princípio de legislatura”. E, citado pela Lusa, admitiu estar a ser “intencionalmente
abstrato e genérico” para refletir sobre uma questão “sem o melindre de poder
ser considerado condicionante ao trabalho da Assembleia da República”. Discursando
numa sala onde estava a Ministra da Saúde, disse que agora tinha de “esperar,
acompanhar e aguardar os próximos debates na esperança de não ter de rediscutir
a lei”, “por termos chegado à conclusão de que a discussão que foi feita afinal
tinha sido apenas a antecipação de uma discussão definitiva”.
E Maria de
Belém acha-a inconstitucional por impor a responsabilidade individual pela
saúde.
***
Do lado dos
defensores da aprovação da lei nesta sessão legislativa, além do PS e do
Governo, surge o secretário-geral do PCP a sustentar que “há condições” para
aprovar uma lei necessária à defesa do SNS e a afirmar não perceber “a preocupação”
de Marcelo Rebelo de Sousa. E diz:
“Não percebo a preocupação do Presidente da República porque na década
de 90 a lei foi aprovada pelo PSD e CDS e ninguém teve esse prurido, de contar
com os outros”.
Obviamente o
dirigente comunista referia-se ao diploma aprovado em 1990, com os votos
favoráveis do PSD e do CDS e contra da esquerda parlamentar. Falando aos
jornalistas à margem da manifestação dos professores, na Avenida da Liberdade,
em Lisboa, após ter sido questionado sobre uma notícia do Público que referia uma “ameaça de veto” à LBS, caso o diploma seja
negociado e aprovado sem incluir o PSD, sublinhou que “há um processo negocial
que decorre” e que “há condições para aprovar uma lei necessária à defesa do
Serviço Nacional de Saúde”, afirmando que o PCP está disponível para essa
discussão. E acrescentou:
“Quem é determinante naturalmente é o PS, contem connosco para avançar e
garantir o Serviço Nacional de Saúde”.
Também Vital Moreira, no blogue “Causa Nossa” declarou, a 20 de março, não
ver a
suposta inconstitucionalidade de norma que estipule “a responsabilidade
individual pela proteção da saúde própria e alheia”. Com efeito, “a
Constituição estabelece explicitamente um dever de defender e proteger a saúde
e não distingue entre a saúde própria e a de terceiros”. Depois, aduz que, “em matéria e direitos sociais não deve haver
direitos individuais sem responsabilidade individual”, pois “os direitos
sociais são pagos por todos e a irresponsabilidade individual fica cara à
coletividade”. E adverte que não vale
alegar que “tal dever não é suscetível de sanção ou que poderia abrir caminho a
sanções absurdas como a recusa de cuidados de saúde” a quem o desrespeitasse.
E, concedendo que “pode haver (e há) “normas
imperfeitas”, sem sanção, sem por isso perderem o seu sentido normativo, como
‘deveres cívicos’, permitindo a censura comunitária sobre comportamentos que as
ignorem”, diz não ver, “por exemplo, porque é que uma obrigação legal de
vacinação não pode ser sancionada (por
via contraordenacional, por exemplo) ou porque é que é que um fumador não há de ser
discriminado, por exemplo, no pagamento de taxas moderadoras pelos cuidados de
saúde decorrentes da sua adicção”. E
conclui:
“É tempo de equilibrar uma hipercultura de
direitos contra o Estado e a sociedade com um módico de cultura de
responsabilidade individual perante a coletividade. E, se a moral social
dominante não favorece essa responsabilidade individual (pelo contrário), que
seja a lei a incentivá-la.”.
É bom
que alguém como Moreira (com autoridade académica) ponha a questão nos devidos termos.
***
A
7 de fevereiro, o Presidente, face ao eco gerado na opinião pública pelas suas
palavras sobre a matéria, negou que haja prometido um veto e disse ver espaço para
acordo alargado sobre a LBS, dependendo da perceção. Disse-o no programa da TVI24 “Circulatura do Quadrado”, da TVI, gravado no Palácio de Belém, em
Lisboa, em que participou como convidado especial. E, questionado se há um veto prometido da sua parte,
respondeu:
“Não há veto prometido nenhum, porque pura e
simplesmente depende da versão final da lei”.
E
considerou:
“Em si mesma, esta proposta é uma proposta
que não fica muito longe do texto da comissão que tinha sido originalmente
elaborado. E não é necessariamente aquela de que se falou em termos de discurso
mais aberto e mais conflituante”.
Referia-se
ao articulado da proposta do Governo, que leu, na versão final, e que o fez
voltar a crer num acordo implícito alargado no domínio da saúde. E justificou:
“O articulado não é exatamente igual na sua
densidade doutrinária ao preâmbulo, nem ao debate parlamentar, nem ao debate
público, que é um debate feito, essencialmente, como se compreende, em termos
de alinhamentos, num contexto pré-eleitoral. Ou seja, eu acho que há espaço.”.
Citou a
proposta do Governo no que respeita ao “ponto polémico, que é o problema dos
setores” público, privado e social, dizendo que “devem atuar de acordo com o
princípio da cooperação, pautando-se por regras de transparência”. E
prosseguiu:
“Dentro do Serviço Nacional de Saúde (SNS),
gestão pública preferentemente, mas previsão expressa de contratos com setor
social, setor privado e trabalhadores sempre que necessário, a título
subsidiário, isto é, supletivamente e temporário”.
O Chefe de
Estado disse que a “fórmula flexível” a que tem apelado – “que dê para
situações de prosperidade económica, mas também de crise, flexível a
articulação dos setores e realista, e por isso duradoura” – corresponde ao “que
está no articulado” da proposta de lei. E concluiu:
“Podemos agora discutir se é mais flexível
ou menos flexível e como é que será. O Parlamento é soberano para decidir como
será.”.
***
Ora, o Presidente
fala abundantemente sobre os processos legislativos em várias matérias e, no
caso da saúde, não deixa dúvidas em relação ao que entrevê, pretende e fará. E
fá-lo, quer na substância, quer no processo, quer na oportunidade. Porém,
confrontado implicitamente com a suposta interferência com o poder do
Parlamento, escuda-se no caráter abstrato das suas declarações, dizendo que é
preciso esperar, que o Parlamento é soberano e que se pronunciará só quando o
texto definitivo lhe chegar às mãos. Mas opina, vai adiante, recua e volta a falar.
Assim, adverte com razão Vital
Moreira, a 19 de março, no blogue já referido e citado, que o Presidente se
vem permitindo “pronunciar-se publicamente, com alguma frequência, sobre
matérias pendentes de procedimento legislativo na AR” (chegando a enviar notas à AR sobre leis em debate), e condicionar desse modo “diretamente o
exercício da função legislativa que cabe em exclusivo ao Parlamento”. E o constitucionalista
diz que, “numa república parlamentar, o debate legislativo cabe aos partidos
políticos representados na AR e às organizações da sociedade civil” (estas em termos de ‘democracia participativa’). E o PR dever-se-ia “manter à margem dele”,
pois compete-lhe, no final, “ajuizar, face à formulação concreta dos diplomas
aprovados, sobre um eventual veto político, recusando a sua promulgação”.
Porem, sustenta que são
“mais problemáticos os casos em que o Presidente antecipadamente deixa entender
ou indicia diretamente que não promulgará uma lei pendente de votação na AR, em
função da solução legislativa em consideração ou caso não seja
aprovada por maioria qualificada”. Com efeito, “estes casos de ‘veto antecipado’ e,
em especial, a exigência de aprovação de leis por maioria qualificada, nos
casos em que a Constituição não a estipula, revestem maior gravidade
do que as situações anteriores, por a perspetiva de veto presidencial
levar as oposições a radicalizarem as suas posições na disputa legislativa,
dispensando-as de negociar soluções de compromisso com a maioria governativa”. E
justifica:
“Por definição, o eventual veto
legislativo só deve ser equacionado a posteriori, face ao resultado
final do labor legislativo, não devendo poder fundar-se na falta de uma
maioria qualificada que a Constituição não exige”.
***
É de
crer que Marcelo, professor de Direito Público e de Ciência Política saiba isso
tudo, mas talvez a qualificação académica o faça esticar até ao limite (e
ultrapassá-lo) o
poder presidencial!
2019.03.26 –
Louro de Carvalho
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