Dom Américo Manuel Alves
Aguiar, que foi ontem, 1 de março, nomeado pelo Papa Francisco Bispo titular de
Dagno e auxiliar do Patriarcado de Lisboa, escolheu para seu lema episcopal “In
manus tuas”, as primeiras palavras, a seguir ao vocativo “Pater” na
versão latina da invocação de Jesus ao Pai no alto da cruz antes de expirar: “Pater,
in manus tuas commendo spiritum meum” (Pai, nas tuas
mãos entrego o meu espírito – Lc 23,46).
Diz o Bispo eleito (cuja ordenação episcopal está
prevista para o próximo da 31, o domingo da alegria, na Igreja da Trindade, no
Porto) que este lema, para lá duma
consagração total, pretende ser uma homenagem a Dom António Francisco dos Santos,
cujo lema episcopal era exatamente este e “que nos deixou muito recentemente”,
sendo que Dom Américo quer “’acertar umas
continhas’ com ele, quando chegar lá acima, e homenageá-lo com a utilização
do seu próprio lema”.
Não conheço pessoalmente Dom Américo Aguiar, mas
impressionou-me a maneira devotada e saudosa como se referiu à personalidade e
ação de Dom António Francisco por ocasião do 1.º aniversário da sua morte. Por
isso, não estranho e acho simpático este assumir do mesmo fio condutor da ação
pastoral do Bispo que pontificou no Porto durante pouco mais de três anos, mas
onde deixou a marca da proximidade e do anseio da sinodalidade como estilo
pastoral.
Pronunciadas por Jesus, estas palavras, aliás como o
Salmo 31, adquirem a plenitude do seu sentido: a entrega confiante, o abandono
filial, o sofrimento sublimado, a esperança imarcescível, a certeza da libertação.
Importa referir que aquela oração de Cristo, precedida
do vocativo “Pai”, que o Senhor pronunciava tantas vezes e nos ensinou a
pronunciar (vd Mt 6,9; Lc 11,2), proferida
na sequência da oração no Horto, “Pai, se quiseres,
afasta de mim este cálice; contudo, não se faça a minha vontade, mas a tua” (Lc 22,42; cf Mt 26,39; Mc 14,36), replica o v 6 do Salmo 31(30), com a aposição afetiva do vocativo Pai, quando o salmista
diz, entre a entrega e a prece pela salvação, “Senhor, Deus fiel”. E o novo Bispo auxiliar do Patriarcado faz
equivaler a oração do Senhor antes de expirar à proclamação da disponibilidade
de Maria para aceitar ser cooperante na realização do mistério da encarnação e
da redenção: “Eis a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo
a vossa palavra” (Lc 1,39), que era o
mote da JMJ do Panamá. Diz o novel prelado a este respeito, em entrevista à Rádio Renascença e à agência Ecclesia:
“No dia em que fui para o Panamá, a 15
de janeiro, passei 15 dias a cantar o hino da Jornada Mundial da Juventude: ‘Eis
a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra’. Aquilo entrou no
coração e quando, há dias, chegou a notícia, senti que aquelas palavras, aquele
hino e aquela experiência, como sempre, não eram coincidência. Deus tem sonhos
para nós, tem projetos, eles acontecem e, por mais que os homens façam cálculos
e programações, as coisas acontecem quando menos esperamos.”.
E podia constituir uma
ressonância da resposta de Isaías ao chamamento de Deus. Quando o profeta ouviu
a voz do Senhor a questionar-se sobre quem havia de enviar, quem seria o seu
mensageiro, disponibilizou-se dizendo: “Eis-me aqui, envia-me” (cf Is 6,8) – como
pode ser a réplica de Hebreus (Heb 10,6-7.9):
“Não te agradaram holocaustos nem
sacrifícios pelos pecados. Então,
Eu disse: Eis que venho –
como está escrito no livro a meu respeito – para fazer, ó Deus, a tua
vontade. […] Disse em
seguida: Eis que venho para fazer a tua vontade.”.
Na verdade, o Bispo é
aquele que tem como especial incumbência servir o Senhor e a Palavra fazendo
com que ela se realize em si mesmo e nos outros a quem a serve como iguaria
divina; entrega-se totalmente nas mãos do Pai, quer quando exerce o seu múnus pastoral
ou cuida da sua espiritualidade, quer no momento em que o Senhor o chama para a
consumação do mistério na vida do mundo que há de vir; é um enviado do Pai como
Cristo para fazer a vontade divina; vem não para oferecer holocaustos, mas para
oferecer o sacrifício do próprio Cristo e o sacrifício de si mesmo por si mesmo
e por e com os outros.
Similar do lema episcopal “In
manus tuas” é o lema de Dom Rui Manuel Sousa Valério, Bispo das Forças
Armadas e das Forças de Segurança, “In manibus tuis”. Permita-se-me a
marcação meramente linguística da diferença, mas que pode sugerir
espiritualidades diferentes. No primeiro caso, temos a preposição latina “in”
com acusativo – equivalente à grega “eis”, também com o acusativo “kheirás
sou”, a convocar a ideia de movimento. No segundo, a preposição latina “in”
com ablativo corresponde à grega “en” com o dativo “khersí sou”,
parece convocar o repouso da alma no Senhor. Ambos os lemas apontam para a
intimidade com o Senhor, mas o primeiro indica um ato de percurso e entrega do
ser e da ação, ao passo que o segundo releva a contemplação repousante que pode
nortear o ser e a ação. Em ambos os casos, se releva a ideia de proteção inerente
à metonímia das mãos de Deus, não conexa com a fisicidade (a palavra kheirás no grego não vem precedida
de artigo nem está no género dual como se depreenderia do facto de o homem ter
apenas duas mãos), bem como a sensação de bem-estar sob as asas de
Deus (Deus não é uma ave) ou no seio do Pai. Mas este
repouso sob a proteção divina pode ser rampa de lançamento para nova ação. Note-se
que Jesus, depois de morto, ressurgiu, deu-Se a reconhecer aos discípulos que
passou a tratar por irmãos, deu-lhes as últimas instruções, entregou-lhes a
missão evangelizadora, santificadora e odegética e subiu aos Céus
garantindo-lhes o sustentáculo no desempenho da missão e o penhor da sua eficácia.
Creio que os lemas
escolhidos colam bem em quem os escolheu: Dom Rui Valério sabe que precisa do
repouso em Deus para não se esgotar nas andanças pelo país em prol da saúde da
fé dos membros do Ordinariato Castrense, enquanto Dom Américo Manuel, como Dom
António Francisco, empenha o seu trabalho no movimento para Deus através da
proximidade com as pessoas e as instituições no fervilhar das energias ou na
tranquilidade da contemplação muitas vezes conseguida nas situações mais
inesperadas e surpreendentes.
***
O Salmo
31 é a oração na hora de provação em que o salmista que lança, na sua aflição,
um apelo ao Senhor à libertação, protesta a sua esperança e promete a sua
alegria pela misericórdia e bondade divinas. O texto, desenvolvido na primeira
pessoa do singular, tem marcas de postura individual ante Deus e contém vários elementos específicos, nomeadamente de súplica, de confiança
e de ação de graças, tendo como apogeu um hino de louvor. No fim, encontra-se o
tema da comunidade. O texto percorre vários matizes que definem uma atitude modelar
de oração. O salmista sente-se assolado pelos inimigos e cercado pela tentadora
idolatria; reage procurando confiadamente refúgio no Senhor; e aqui, implora,
louva, chora e convida ao amor, à confiança e à coragem.
Pensam alguns que originariamente eram dois
salmos que se fundiram num só. Com efeito, os dois elementos fundamentais –
súplica e ação de graças – estão de tal modo fundidos que não é fácil
determinar se a ação de graças se refere a uma libertação precedente que
fundamenta a confiança que ora se exprime, ou se compagina a profunda convicção
do salmista de ter sido escutado pelo Senhor, que permite ver o futuro como
passado já realizado na ação divina (L. A. Schökel).
O seu desenvolvido estrutural apresenta três
blocos: i) nos vv 2 a 9 (o v 1 é preenchido apenas
pela notação “Ao diretor do coro. Salmo. De David”), o salmista, em grande aflição, clama que se refugia no Senhor, a
quem invoca como rocha e fortaleza, em cujas mãos entrega o seu espírito, em
quem põe a sua confiança (2-7) e que já
o salvou noutras ocasiões (8-9); ii) nos vv 10 a 17, na sua grande debilidade e como se tornou
motivo de desprezo para os inimigos e até para os desconhecidos (10-14), confia-se a Deus e pede-Lhe que o livre
dos que o perseguem e lhe mostre a sua face (15-17); iii) e, nos vv 18 a 25, conhece a bondade do Senhor para os que
Nele esperam, mesmo quando não parece haver razões para a esperança (20-23), o que o leva a exortar os fiéis a amarem o
Senhor e a terem coragem para a superação das adversidades (24-25).
Uma leitura cristã do salmo, inspirada em
Santo Agostinho, faz-nos ver neste salmo um discurso de Cristo e, depois, o de
todo o povo redimido pelo seu precioso sangue, povo que dá graças a Deus pela
maravilha da redenção e sabe que pode aproximar-se confiadamente do trono da
graça e alcançar misericórdia (vd Heb 4,16, cf Ef 3,12). Fala Cristo, pois fala a Igreja em Cristo e Cristo na Igreja.
Cristo, consumada a sua obra (Jo 19,30), entregou o espírito ao Pai (Lc 23,46) e expirou para que do seu lado adormecido nascesse a Igreja (cf Jo 19,34.35.37).
Unidos a Cristo somos fortes, sem Ele somos
fracos; com Ele somos ramos da videira prontos a dar muito fruto, sem Ele, o
que Deus não permita, somos vides cortadas, destinadas ao fogo.
E diz-nos Santo Agostinho:
“Se o salmo ora, orai; se chora,
chorai; se exulta, exultai; se espera, esperai; se teme, temei. Tudo o que está
escrito aqui é o nosso espelho.”.
Como
o salmista, também Jesus pôde rezar:
“Tu és para mim uma rocha de refúgio, uma
fortaleza que me salva. Tu és o meu rochedo e a minha fortaleza (…) Senhor, Deus fiel, salva-me.”.
A partir
desta experiência de sofrimento, de esperança e de salvação, o salmista, Jesus
e toda a Igreja convidam-nos ao amor e à esperança, à coragem e à valentia de coração,
pois “o Senhor atende os que Lhe são fiéis”.
Também Lutero
disse que este salmo “é falado na pessoa de Cristo e seus santos, que são
afligidos toda a sua vida, internamente pelo tremor e o alarme e externamente
pela perseguição, calúnia e desprezo por amor da palavra de Deus, e mesmo assim
são livrados por Deus de todos estes fatores de aflição e confortados”. Este
comentário luterano baseia-se no facto de o Salvador crucificado ter usado palavras
que iniciam o v 6 no momento da sua morte (vd Lc 23,46) e na interpretação messiânica do v 10 de que Jesus suportou os pecados
do mundo.
Por outro
lado, o v 6 deste salmo é paradigmático da atitude orante da entrega confiante
em Deus: David confiou-se ao Senhor na grande aflição; as crianças hebreias
foram educadas para a recitação do versículo antes de entrarem no sono no fim
do dia; Jesus proferiu estas palavras antes de entrar no último sono desta vida
mortal; Estêvão, dirigindo-se ao Senhor Jesus, rogou que lhe recebesse o espírito
(cf At,59); e a Liturgia propõe que rezemos o
versículo inteiro na Hora de Completas antes do adormecer.
Na Liturgia, é o salmo do Ofício de Leituras
de segunda-feira da II semana. Com Jesus, entregando o seu espírito nas mãos do
Pai, pedimos-Lhe que volte para nós o seu rosto, incline para nós os seus
ouvidos e nos salve; que faça brilhar sobre nós o esplendor da sua face e nós
damos-Lhe graças pela sua misericórdia.
É também, na sua forma reduzida (vv2-9), o
primeiro salmo da Hora de Completas de quarta-feira; e o seu v. 2, com o “Glória
ao Pai” (e, no Tempo Pascal, também com o “Aleluia”), forma o responsório breve desta hora litúrgica de todos os dias.
Assim, todos os dias rezamos, com toda a confiança, no fim de cada dia, a
oração de Cristo no termo da sua vida mortal: “Em tuas mãos entrego o meu
espírito”.
E, em Sexta-Feira Santa, a seguir à 1.ª
Leitura da Liturgia da Palavra da Celebração da Paixão do Senhor, rezamos ou
cantamos, como salmo responsorial, alguns versículos deste Salmo 31 na certeza
de que todo o homem provado e humilhado pode fazer sua a oração de Cristo na
cruz. O salmo responsorial situa-se entre a passagem de Isaías (Is 52,13 – 53,12), que prevê o Servo de Deus trespassado
por causa das nossas culpas e o enaltece, e a da Carta aos Hebreus (Heb 4,14-16; 5,7-9), que apresenta Jesus que
aprendeu a obediência e Se tornou causa de salvação para todos os que Lhe
obedecem – prévias ao relato da Paixão segundo São João.
***
As palavras de Cristo no
alto da cruz, bem como todo o salmo 31, serão uma boa alavanca para o trabalho
pastoral daquele que entende que pessoas olham para os bispos, padres, diáconos, consagrados, religiosos e
religiosas, querendo ver neles e nelas “o rosto de Cristo, o rosto do Bom
Pastor”, o sinal e do estilo duma “Igreja pobre ao serviço dos mais frágeis”.
Será este um bom ponto de conforto para a ação do bispo
que nos tempos mais próximos se encarregará
da veemente logística da preparação da próxima Jornada Mundial da Juventude,
ele que já participou em algumas jornadas, em Sidney e em Cracóvia e
recentemente no Panamá, onde esteve em novembro do ano passado e este ano em
janeiro, e tem plena consciência que é um desafio que nos ultrapassa e que nos
esmaga, completamente.
Trata-se de um bispo que pensa que ninguém pode ter a
veleidade de afirmar que está à altura do desafio se pensar realizá-lo sozinho.
E, recordando que o Arcebispo do Panamá, que tinha expressões muito divertidas
que havemos de lembrar no futuro próximo, dizia que somos todos distintos, mas
não somos distantes, professa que “há de ser na diferença de cada um, nas
capacidades de cada um que conseguiremos constituir uma equipa, transversal no
território nacional, no que significam todas as nossas dioceses, obviamente com
o núcleo duro e operacional em Lisboa, mas só seremos capazes de vencer – e
vamos ser capazes de vencer, como é óbvio”. E garante que “amos organizar a
melhor Jornada Mundial da Juventude de sempre, como acontece nos Jogos
Olímpicos! – se nos sentirmos corresponsáveis” e que “ninguém está dispensado”.
(vd a mencionada
entrevista, in Eccclesia, https://agencia.ecclesia.pt/portal/entrevista-d-americo-aguiar-foi-eleito-bispo-com-a-jornada-mundial-da-juventude-em-lisboa-no-horizonte/).
***
Um bom trabalho pastoral e
um bom e eloquente testemunho daquele que expirou nas mãos do Pai, mas Se
levantou redivivo do túmulo e orienta a Igreja dando-lhe em cada dia o pão da
força da fé, da garra da esperança e da empatia da caridade.
2019.03.03 – Louro de Carvalho
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