Quem
o diz é o cardeal
norte-americano Seán O’Malley, arcebispo de Boston (desde
2003, na sequência do escândalo dos abusos sexuais que abalou os EUA) e presidente da Comissão Pontifícia para a Proteção dos
Menores, que esteve, esta semana, em Fátima a orientar o retiro espiritual de
Quaresma dos bispos portugueses, como é habitual fazerem nesta ocasião, para refletirem,
em silêncio e oração, sobre diversos temas da vida eclesial.
A relação do
purpurado com Portugal já é longa. Com efeito, sempre trabalhou com emigrantes
portugueses e com comunidades luso-americanas nos EUA, fala português e
já recebeu várias condecorações do Estado português.
O retiro
contou com a presença dos cerca de 40 bispos portugueses (entre bispos diocesanos, auxiliares e
eméritos), começou no
passado dia 11 e terminou no dia 15.
Embora a
temática do retiro tenha gravitado em torno da trilogia “oração, contemplação e
silêncio”, como ele decorreu no rescaldo da inédita cimeira do
Papa com os presidentes das conferências episcopais de todo o mundo, em
fevereiro passado, dedicada à responsabilidade da Igreja no escândalo dos
abusos sexuais de menores por membros do clero e religiosos (em que participou, em representação de
Portugal, o cardeal-patriarca de Lisboa, Dom Manuel Clemente), era inevitável que o tema fosse
aflorado neste encontro espiritual, até porque este decorreu sob a orientação do
cardeal Seán O’Malley, que, em 2014, foi nomeado por Francisco como presidente
da Comissão Pontifícia para a Proteção
dos Menores, um organismo criado pelo Papa Bergoglio para estudar
e propor reformas na Igreja Católica, no sentido de combater os abusos sexuais.
E este membro
do Sacro Colégio vincou a importância da tolerância zero no combate aos
abusos e frisou que uma das funções do bispo é mesmo a segurança das
crianças e adolescentes.
Por outro
lado, o retiro terminou com a apresentação do livro de O’Malley “Procura-se
amigos e lavadores de pés”, lançado no dia 15, em Portugal, pela editora
Paulinas e em que o autor faz uma reflexão teológica sobre vários temas,
incluindo os abusos sexuais na Igreja Católica, problema que tem enfrentado
desde a sua nomeação como bispo de Fall River, em 1992, nomeadamente no caso do
padre James Porter, um pedófilo em série, que havia abusado de centenas de
crianças naquela diocese. E no livro confessa:
“Para
mim, era incompreensível que esse problema pudesse ter ficado oculto por tanto
tempo. Por mais dolorosa e penosa que seja a atenção dos media, colocando
um holofote sobre o abuso sexual clerical, isso prestou, na verdade, um grande
serviço à Igreja. Obrigou-nos a reconhecer os nossos crimes e
pecados que causaram tanto dano a crianças e pessoas vulneráveis.”.
Dom Francisco
Senra Coelho, arcebispo de Évora e um dos participantes no retiro, explicou ao Observador que, apesar de a questão não
ter sido o tema o central do retiro (que se focou essencialmente na ‘oração, contemplação e
silêncio’), o cardeal norte-americano, um dos
membros do restrito conselho de cardeais que aconselha o Papa, evidenciou
sempre a sua experiência e a vivência que assumiu nas dioceses de Fall River e
de Boston. Foram estas as suas palavras:
“Percebemos
nitidamente a sua objetividade numa consciência absolutamente clara de que a
tolerância é zero em todas as circunstâncias, de que devemos fomentar na vida
da Igreja, por todos os meios e com todas as forças, a segurança das nossas
crianças, que não podemos nunca permitir que uma criança seja utilizada por
qualquer forma de violência ou de violação. Percebemos nitidamente
que tem de ser um assunto trabalhado de uma maneira especializada, que são
circunstâncias que não se improvisam. Por isso, nós temos de fazer acontecer a
segurança das nossas crianças na Igreja a partir de uma prevenção
especializada, que, enfim, todos temos de adquirir.”.
E disse que
O’Malley deixou entender a sua vivência nas entrelinhas das suas experiências,
com toda a sua personalidade, com toda a sua riqueza. E a sua vivência dita: tolerância
zero, atenção à prevenção, prevenção que gera segurança, segurança que
tem de ser a grande preocupação da Igreja, dos bispos e de todas as comunidades
cristãs, pois precisamos de readquirir a confiança do povo de Deus, que, nestas
circunstâncias, sentiu a sua confiança abalada.
***
Em
entrevista, em português, a respeito
do seu novo livro, à agência Ecclesia, o cardeal falou sobre os abusos sexuais, o perfil
do sacerdote católico nos dias de hoje e o impulso dado à Igreja Católica por
Francisco.
Dela se retiram os dados tidos por mais pertinentes.
Justificou o título do
livro “Procura-se amigos e lavadores de pés…” assim:
“Na Quinta-feira Santa, Jesus, no seu
discurso de despedida, da Última Ceia, disse que os seus discípulos, apóstolos,
bispos, têm de ser amigos. E também lava os pés dos apóstolos, para
ensinar-lhes como amar-se, mutuamente. E assim, as caraterísticas que Jesus
quer nos seus sacerdotes são que sejam amigos e lavadores de pés.”.
E, porque os jovens que procuram o sentido da sua vida
querem um desafio, um ideal exigente de amor e serviço, que lhes pode dar muita
alegria, esperança, entusiasmo, é essa a
proposta que lhes faz, por exemplo, quando adianta este ideal sacerdotal aos
jovens.
***
Como o livro incide sobre o
que deve ser o padre e o bispo num momento marcado pela descredibilidade em
razão dos acontecimentos que ocorreram em todo o mundo, o entrevistador
perguntou como ultrapassar o descrédito que pode atingir a figura do padre. E o
cardeal, anotando que há muitos padres
generosos no ministério e que todos sofrem com estes casos, frisou que “o
sacerdócio é tão importante que temos de saber ajudar os nossos padres a
celebrar a sua identidade” e “ter a esperança de atrair os jovens a considerarem
a possibilidade de responderem a um chamamento para ser sacerdote”. Apontou que
“a Igreja é eucarística” e que “a bondade de Deus foi dar-nos, na Quinta-feira
Santa, a Eucaristia, cujo caminho é sempre o sacerdócio” e que esta é a forma
com que Jesus quis estar presente no mundo inteiro, em todas as épocas. E,
sobre a relação “Sacerdócio-Eucaristia-Igreja”, discorreu:
“A Eucaristia precisa do sacerdócio, para
que se celebre a Santa Missa. Assim, para nós, o destino do padre católico é
muito importante. Por um lado, como Igreja, temos de responder ao mundo, para
mostrar que somos uma Igreja que protege os menores, temos como nossa
prioridade a proteção de menores e a prevenção do abuso sexual. Mas, ao mesmo
tempo, temos de assegurar ao mundo que o sacerdócio é um instrumento de Cristo,
um dom muito especial que temos recebido, como Igreja, como comunidade de fé.”
Relativamente à consecução (ou não) dos objetivos do trabalho que se vem fazendo na
proteção de menores contra os abusos sexuais, sustenta que, “em muitas partes do mundo, só agora se está a começar a
falar do problema, a ver que existe” (tarde em sua opinião), mas que “há outros países onde, nos anos mais
recentes, tem sido feito um grande esforço para lhe fazer frente e criar uma
atmosfera de proteção, de prevenção”. Defende que precisamos duma enorme campanha de educação, na Igreja, “para
mentalizar o nosso povo”.
Reconhece que, depois de se
ter enfrentado o problema, de forma clara, os casos de abusos diminuíram
drasticamente, mas aponta uma dificuldade que surgiu:
“Durante muito tempo, os bispos não sabiam
como reagir ao problema e, infelizmente, os bispos e a sociedade em geral não
se davam conta do grande dano que o abuso provoca numa criança. Se tivessem
sabido, estou seguro de que a ação teria sido muito diferente.”.
Por isso, entende que é
importante ouvir as vítimas. E, a este respeito, revela:
“Quando o Papa Bento XVI foi à América
[2008], eu falei com ele para que tivesse uma reunião com vítimas e penso que
foi algo muito importante para o seu pontificado. Logo, fiz o mesmo com o Papa
Francisco. Só quando um bispo, um pastor, escuta as histórias pessoais das
vidas que têm sido, às vezes, destruídas por estes atos… É muito importante, é
um passo muito importante. Todos os anos, em Roma, uma das minhas tarefas na
comissão é dar uma conferência aos novos bispos, todos os bispos nomeados
durante o último ano, que ali se reúnem durante uma semana. A mim toca-me falar
da proteção de menores e levo sempre comigo uma vítima (…). Depois dessa
conferência, todos os anos, os novos bispos vêm dizer-me: esta foi a
conferência mais importante que recebemos nesta semana. Há um desejo de saber
mais, de poder prevenir, mas faz falta muita formação.”.
Adianta que, “nalguns países, têm sido feitos muitos
esforços e estamos a ver os frutos”, pois, “antes, quando um bispo improvisava,
cometia muitos erros, porque é uma situação muito complicada”. Com efeito,
estão em causa “o bem-estar da vítima, os direitos do acusado, a relação com as
autoridades civis, a comunidade, o presbitério, a paróquia, a família da
vítima, os amigos”. Por isso, devem existir “protocolos claros, conhecidos, em
que todo o mundo sabe de antemão o que vai acontecer, quando surge uma acusação”.
E releva o que já existe:
“O Papa Bento XVI pediu [em 2011] que todas
as conferências episcopais, no mundo, preparassem os seus protocolos. Agora,
quase todos os países têm, mas não é suficiente ter um documento, simplesmente.
Tem de se saber como o colocar em prática. Agora, depois desta conferência de
fevereiro, foi anunciado que a Congregação para a Doutrina da Fé está a
preparar um vade-mécum para os bispos, que os ajudará. Também a nossa comissão
de proteção de menores está sempre disposta a ajudar as conferências episcopais
a melhorar os seus documentos e protocolos, sobretudo para ter mais informação sobre
a pastoral para as vítimas e a prevenção.”.
Sustenta que agora, ao invés dos protocolos que se
prepararam, restritos a questões canónicas e de reação a uma acusação, os novos
protocolos terão de incluir e privilegiar a prevenção, pois, como refere no seu
livro, “vale mais um grama de prevenção do que muitos quilos de cura”.
Não sabe quando vai sair o vade-mécum da Doutrina da Fé, mas diz
que sairá em breve.
Sobre a coragem que teve de
automobilizar para, ao chegar a Fall River, enfrentar um auditório cheio de
vítimas, explicita:
“Foi um choque, porque eu não sabia que
existia este problema. De repente, estava diante de uma realidade tão difícil,
mas marcou-me profundamente e ajudou-me a compreender a importância de formar
uma Igreja que, realmente, tem como sua prioridade a proteção das crianças. Se
não fizermos isto, o nosso povo não vai ter confiança na Igreja, porque,
logicamente, a nossa primeira obrigação é cuidar das crianças. O próprio Jesus
fala de um castigo duro para a pessoa que escandaliza um dos nossos pequeninos
e a Igreja tem de ter o coração de Jesus, para proteger as crianças.”.
E conclui:
“Só escutando os testemunhos das vítimas
podemos chegar a conhecer a seriedade deste problema”.
Sobre a predita cimeira de
fevereiro no Vaticano, reconhece ter sido “um
passo muito importante, porque quase todas as conferências e os testemunhos das
vítimas foram dados por pessoas dos países fora do mundo anglófono”, quando muitos
pensavam que o problema existia só na América ou na Austrália, pois “é um problema humano, está em todas as
partes, e o importante é saber reagir corretamente e formar os líderes na
Igreja para poder ter uma Igreja que oferece segurança aos nossos jovens e às
nossas crianças”.
Admite a legitimidade de as
associações de vítimas terem esperado medidas mais concretas da cimeira,
sobretudo na América, porque ali havia já
ideias sobre a responsabilização dos bispos. Todavia, esta conferência era para
o mundo inteiro, para muitas Igrejas, muitas conferências, algumas das quais estavam
a ouvir estas coisas pela primeira vez, pelo que, em certa medida, “tinha de se
começar pelo início, falar da importância da transparência, da
responsabilidade, a tolerância zero e, como digo sempre, o cuidado pastoral das
vítimas”.
No capítulo da proteção de
menores, aponta como uma das possíveis consequências do encontro no Vaticano
que, quando os bispos vão em visita Ad Limina, a informação sobre os
abusos esteja entre os itens do relatório a entregar. Na verdade, o que
a comissão tem pedido ao Papa é que se prepare um instrumento de auditoria que
cada conferência episcopal possa estudar para a implementação dos seus
protocolos e para, na visita Ad Limina, os bispos poderem dar informações sobre
sucessos e fracassos na implementação dos protocolos. Isto no respeito e
articulação com a autonomia de cada diocese.
***
Em relação a outros temas, fala de relance na sinodalidade
– tema querido pelo Papa – relevando que
o novo paradigma de Governo da Igreja dá mais importância às conferências
episcopais e que isso esta a acontecer.
Tendo em conta que, ao
falar do sacerdócio, é necessário falar de muitas caraterísticas e que livro começa
pela misericórdia, responde à questão colocada pelo entrevistador se o selo do
sacerdote hoje é ser capaz de pedir perdão pessoal e coletivamente, com a
Igreja:
“O sacerdote tem de estar muito consciente
da sua vocação, da sua missão na Igreja, de ser parte de um presbitério. O
individualismo cultural, às vezes, faz muito mal aos nossos sacerdotes, temos
de desenvolver uma mentalidade de fraternidade sacerdotal, de trabalhar em
conjunto para fazer visível o amor do Bom Pastor, na forma em que servimos o
nosso povo.”.
Sendo que o livro se
inspira no modo de vida de Jesus e criticando a sede de ativismo, discorre:
“Jesus passou 10 vezes mais tempo em Nazaré,
na sua vida contemplativa, do que em Cafarnaum, que representa a sua pastoral,
digamos, o seu ministério público. O sacerdote tem de viver com um pé em Nazaré
– vida de oração, fraternidade, Eucaristia, Bíblia – e outro pé em Cafarnaum,
praticando essa proximidade, como diz o Papa, ao nosso povo – partilhando as
suas dores e alegrias, ajudando-os a viver a sua vocação de discípulos
missionários de Cristo.”.
Sobre a asserção do livro de
que o púlpito é “a arena principal e o nosso martírio”, diz:
“O homem moderno está muito acostumado à
televisão, escutar um sermão custa. Mas a Palavra de Deus é muito importante (…).
Os católicos modernos exigem que o padre ofereça um sermão que ajude a viver a
Palavra de Deus, no nosso viver quotidiano. O povo tem cada vez mais educação,
é mais exigente, e é preciso mantê-los acordados, despertos. É importante
preparar, não só o texto da homilia, mas também os nossos corações, para
partilhar com o nosso povo a fé, a nossa experiência, as nossas lutas
interiores, para que eles saibam que estamos a acompanhá-los.”.
Da celebração da fé na
Eucaristia e a espiritualidade sacerdotal, destaca:
“A Liturgia ensina-nos a fé. E, na Liturgia,
há três momentos em que o padre beija o altar, o livro dos Evangelhos e também
dá o beijo da paz. São símbolos do amor do sacerdote, que têm de definir o seu
ministério: o amor a Cristo, o amor à Palavra de Deus e o amor à noiva de
Cristo, que é o Povo de Deus. (…) É tão importante refletir sobre o sentido dos
gestos da Liturgia, para a podermos viver com mais entusiasmo.”.
Inspirado no cardeal
Martini, aponta para a importância duma “regra de vida” para cada dia, à luz das
prioridades de Jesus, entre elas a proximidade com o outro, confessando:
“Quando li o livro do cardeal Martini [Como geria Jesus o seu tempo: pequena regra
de vida para o discípulo do Senhor], de que gostei muito, fiquei
surpreendido porque a primeira prioridade era a misericórdia. Eu pensei que ia
ser a pregação da Boa Nova, o anúncio do Reino de Deus. Mas depois, ao pensar,
sim, é certo: o cuidado dos doentes, as obras de misericórdia, é um contexto no
qual se pode anunciar a Boa Nova. Temos de convencer as pessoas de que as amamos,
para que possam acreditar na nossa palavra, aceitar o anúncio do Evangelho.”.
Acha que Francisco, assumindo a misericórdia como
valor essencial, “vive o seu ideal com tanto entusiasmo, com tanta fidelidade”
e fala “da sua experiência de jovem, ao ser inspirado pelos jesuítas da
Argentina, do seu zelo missionário, fraternidade e disciplina” – “valores que
estão tão vivos na sua vida, a sua simplicidade, bondade, desejo de reavivar a
Igreja com a partilha da alegria do Evangelho”.
Sobre a frase inaciana “Reza
como se tudo dependesse de Deus e trabalha como se tudo dependesse de ti”,
enfatiza:
“Demonstra que a oração e o trabalho são
muito importantes; só trabalhando e rezando muito conseguiremos cumprir a nossa
missão de sacerdotes. O Papa Francisco diz, também, que os dois caminhos da
santidade são a oração e a comunidade. Um padre tem de trabalhar muito, mas tem
de trabalhar em equipa, juntamente com os irmãos sacerdotes e o seu bispo, para
poder formar um presbitério realmente eficaz.”.
Por fim, sustenta que são muitas as mudanças que o
Pontífice tem feito e que vai ser ajudado: na reforma da Cúria Romana, nos
novos dicastérios, na comissão de proteção de menores – iniciativas do próprio
Papa, que tem muito entusiasmo e desejo de continuar a promover estas
iniciativas. Ora, os cardeais estão ali para ajudar no que puderem.
***
Assim seja!
2019.03.15 –
Louro de Carvalho
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