sábado, 16 de março de 2019

“Precisamos de uma campanha de educação”


Quem o diz é o cardeal norte-americano Seán O’Malley, arcebispo de Boston (desde 2003, na sequência do escândalo dos abusos sexuais que abalou os EUA) e presidente da Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores, que esteve, esta semana, em Fátima a orientar o retiro espiritual de Quaresma dos bispos portugueses, como é habitual fazerem nesta ocasião, para refletirem, em silêncio e oração, sobre diversos temas da vida eclesial.
A relação do purpurado com Portugal já é longa. Com efeito, sempre trabalhou com emigrantes portugueses  e com comunidades luso-americanas nos EUA, fala português e já recebeu várias condecorações do Estado português.
O retiro contou com a presença dos cerca de 40 bispos portugueses (entre bispos diocesanos, auxiliares e eméritos), começou no passado dia 11 e terminou no dia 15. 
Embora a temática do retiro tenha gravitado em torno da trilogia oração, contemplação e silêncio, como ele decorreu no rescaldo da inédita cimeira do Papa com os presidentes das conferências episcopais de todo o mundo, em fevereiro passado, dedicada à responsabilidade da Igreja no escândalo dos abusos sexuais de menores por membros do clero e religiosos (em que participou, em representação de Portugal, o cardeal-patriarca de Lisboa, Dom Manuel Clemente), era inevitável que o tema fosse aflorado neste encontro espiritual, até porque este decorreu sob a orientação do cardeal Seán O’Malley, que, em 2014, foi nomeado por Francisco como presidente da Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores, um organismo criado pelo Papa Bergoglio para estudar e propor reformas na Igreja Católica, no sentido de combater os abusos sexuais.
E este membro do Sacro Colégio vincou a importância da tolerância zero no combate aos abusos e frisou que uma das funções do bispo é mesmo a segurança das crianças e adolescentes.
Por outro lado, o retiro terminou com a apresentação do livro de O’Malley “Procura-se amigos e lavadores de pés”, lançado no dia 15, em Portugal, pela editora Paulinas e em que o autor faz uma reflexão teológica sobre vários temas, incluindo os abusos sexuais na Igreja Católica, problema que tem enfrentado desde a sua nomeação como bispo de Fall River, em 1992, nomeadamente no caso do padre James Porter, um pedófilo em série, que havia abusado de centenas de crianças naquela diocese. E no livro confessa:
Para mim, era incompreensível que esse problema pudesse ter ficado oculto por tanto tempo. Por mais dolorosa e penosa que seja a atenção dos media, colocando um holofote sobre o abuso sexual clerical, isso prestou, na verdade, um grande serviço à Igreja. Obrigou-nos a reconhecer os nossos crimes e pecados que causaram tanto dano a crianças e pessoas vulneráveis.”.
Dom Francisco Senra Coelho, arcebispo de Évora e um dos participantes no retiro, explicou ao Observador que, apesar de a questão não ter sido o tema o central do retiro (que se focou essencialmente na oração, contemplação e silêncio), o cardeal norte-americano, um dos membros do restrito conselho de cardeais que aconselha o Papa, evidenciou sempre a sua experiência e a vivência que assumiu nas dioceses de Fall River e de Boston. Foram estas as suas palavras:
Percebemos nitidamente a sua objetividade numa consciência absolutamente clara de que a tolerância é zero em todas as circunstâncias, de que devemos fomentar na vida da Igreja, por todos os meios e com todas as forças, a segurança das nossas crianças, que não podemos nunca permitir que uma criança seja utilizada por qualquer forma de violência ou de violação. Percebemos nitidamente que tem de ser um assunto trabalhado de uma maneira especializada, que são circunstâncias que não se improvisam. Por isso, nós temos de fazer acontecer a segurança das nossas crianças na Igreja a partir de uma prevenção especializada, que, enfim, todos temos de adquirir..
E disse que O’Malley deixou entender a sua vivência nas entrelinhas das suas experiências, com toda a sua personalidade, com toda a sua riqueza. E a sua vivência dita: tolerância zero, atenção à prevenção, prevenção que gera segurança, segurança que tem de ser a grande preocupação da Igreja, dos bispos e de todas as comunidades cristãs, pois precisamos de readquirir a confiança do povo de Deus, que, nestas circunstâncias, sentiu a sua confiança abalada.
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Em entrevista, em português, a respeito do seu novo livro, à agência Ecclesia, o cardeal falou sobre os abusos sexuais, o perfil do sacerdote católico nos dias de hoje e o impulso dado à Igreja Católica por Francisco. Dela se retiram os dados tidos por mais pertinentes.
Justificou o título do livro “Procura-se amigos e lavadores de pés…” assim:
Na Quinta-feira Santa, Jesus, no seu discurso de despedida, da Última Ceia, disse que os seus discípulos, apóstolos, bispos, têm de ser amigos. E também lava os pés dos apóstolos, para ensinar-lhes como amar-se, mutuamente. E assim, as caraterísticas que Jesus quer nos seus sacerdotes são que sejam amigos e lavadores de pés.”.
E, porque os jovens que procuram o sentido da sua vida querem um desafio, um ideal exigente de amor e serviço, que lhes pode dar muita alegria, esperança, entusiasmo, é essa a proposta que lhes faz, por exemplo, quando adianta este ideal sacerdotal aos jovens.
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Como o livro incide sobre o que deve ser o padre e o bispo num momento marcado pela descredibilidade em razão dos acontecimentos que ocorreram em todo o mundo, o entrevistador perguntou como ultrapassar o descrédito que pode atingir a figura do padre. E o cardeal, anotando que há muitos padres generosos no ministério e que todos sofrem com estes casos, frisou que “o sacerdócio é tão importante que temos de saber ajudar os nossos padres a celebrar a sua identidade” e “ter a esperança de atrair os jovens a considerarem a possibilidade de responderem a um chamamento para ser sacerdote”. Apontou que “a Igreja é eucarística” e que “a bondade de Deus foi dar-nos, na Quinta-feira Santa, a Eucaristia, cujo caminho é sempre o sacerdócio” e que esta é a forma com que Jesus quis estar presente no mundo inteiro, em todas as épocas. E, sobre a relação “Sacerdócio-Eucaristia-Igreja”, discorreu:
A Eucaristia precisa do sacerdócio, para que se celebre a Santa Missa. Assim, para nós, o destino do padre católico é muito importante. Por um lado, como Igreja, temos de responder ao mundo, para mostrar que somos uma Igreja que protege os menores, temos como nossa prioridade a proteção de menores e a prevenção do abuso sexual. Mas, ao mesmo tempo, temos de assegurar ao mundo que o sacerdócio é um instrumento de Cristo, um dom muito especial que temos recebido, como Igreja, como comunidade de fé.
Relativamente à consecução (ou não) dos objetivos do trabalho que se vem fazendo na proteção de menores contra os abusos sexuais, sustenta que, “em muitas partes do mundo, só agora se está a começar a falar do problema, a ver que existe” (tarde em sua opinião), mas que “há outros países onde, nos anos mais recentes, tem sido feito um grande esforço para lhe fazer frente e criar uma atmosfera de proteção, de prevenção”. Defende que precisamos duma enorme campanha de educação, na Igreja, “para mentalizar o nosso povo”.
Reconhece que, depois de se ter enfrentado o problema, de forma clara, os casos de abusos diminuíram drasticamente, mas aponta uma dificuldade que surgiu:
Durante muito tempo, os bispos não sabiam como reagir ao problema e, infelizmente, os bispos e a sociedade em geral não se davam conta do grande dano que o abuso provoca numa criança. Se tivessem sabido, estou seguro de que a ação teria sido muito diferente.”.
Por isso, entende que é importante ouvir as vítimas. E, a este respeito, revela:
Quando o Papa Bento XVI foi à América [2008], eu falei com ele para que tivesse uma reunião com vítimas e penso que foi algo muito importante para o seu pontificado. Logo, fiz o mesmo com o Papa Francisco. Só quando um bispo, um pastor, escuta as histórias pessoais das vidas que têm sido, às vezes, destruídas por estes atos… É muito importante, é um passo muito importante. Todos os anos, em Roma, uma das minhas tarefas na comissão é dar uma conferência aos novos bispos, todos os bispos nomeados durante o último ano, que ali se reúnem durante uma semana. A mim toca-me falar da proteção de menores e levo sempre comigo uma vítima (…). Depois dessa conferência, todos os anos, os novos bispos vêm dizer-me: esta foi a conferência mais importante que recebemos nesta semana. Há um desejo de saber mais, de poder prevenir, mas faz falta muita formação.”.
Adianta que, “nalguns países, têm sido feitos muitos esforços e estamos a ver os frutos”, pois, “antes, quando um bispo improvisava, cometia muitos erros, porque é uma situação muito complicada”. Com efeito, estão em causa “o bem-estar da vítima, os direitos do acusado, a relação com as autoridades civis, a comunidade, o presbitério, a paróquia, a família da vítima, os amigos”. Por isso, devem existir “protocolos claros, conhecidos, em que todo o mundo sabe de antemão o que vai acontecer, quando surge uma acusação”. E releva o que já existe:
O Papa Bento XVI pediu [em 2011] que todas as conferências episcopais, no mundo, preparassem os seus protocolos. Agora, quase todos os países têm, mas não é suficiente ter um documento, simplesmente. Tem de se saber como o colocar em prática. Agora, depois desta conferência de fevereiro, foi anunciado que a Congregação para a Doutrina da Fé está a preparar um vade-mécum para os bispos, que os ajudará. Também a nossa comissão de proteção de menores está sempre disposta a ajudar as conferências episcopais a melhorar os seus documentos e protocolos, sobretudo para ter mais informação sobre a pastoral para as vítimas e a prevenção.”.
Sustenta que agora, ao invés dos protocolos que se prepararam, restritos a questões canónicas e de reação a uma acusação, os novos protocolos terão de incluir e privilegiar a prevenção, pois, como refere no seu livro, “vale mais um grama de prevenção do que muitos quilos de cura”.
Não sabe quando vai sair o vade-mécum da Doutrina da Fé, mas diz que sairá em breve.
Sobre a coragem que teve de automobilizar para, ao chegar a Fall River, enfrentar um auditório cheio de vítimas, explicita:
Foi um choque, porque eu não sabia que existia este problema. De repente, estava diante de uma realidade tão difícil, mas marcou-me profundamente e ajudou-me a compreender a importância de formar uma Igreja que, realmente, tem como sua prioridade a proteção das crianças. Se não fizermos isto, o nosso povo não vai ter confiança na Igreja, porque, logicamente, a nossa primeira obrigação é cuidar das crianças. O próprio Jesus fala de um castigo duro para a pessoa que escandaliza um dos nossos pequeninos e a Igreja tem de ter o coração de Jesus, para proteger as crianças.”.
E conclui:
Só escutando os testemunhos das vítimas podemos chegar a conhecer a seriedade deste problema”.
Sobre a predita cimeira de fevereiro no Vaticano, reconhece ter sido “um passo muito importante, porque quase todas as conferências e os testemunhos das vítimas foram dados por pessoas dos países fora do mundo anglófono”, quando muitos pensavam que o problema existia só na América ou na Austrália, pois “é um problema humano, está em todas as partes, e o importante é saber reagir corretamente e formar os líderes na Igreja para poder ter uma Igreja que oferece segurança aos nossos jovens e às nossas crianças”.
Admite a legitimidade de as associações de vítimas terem esperado medidas mais concretas da cimeira, sobretudo na América, porque ali havia já ideias sobre a responsabilização dos bispos. Todavia, esta conferência era para o mundo inteiro, para muitas Igrejas, muitas conferências, algumas das quais estavam a ouvir estas coisas pela primeira vez, pelo que, em certa medida, “tinha de se começar pelo início, falar da importância da transparência, da responsabilidade, a tolerância zero e, como digo sempre, o cuidado pastoral das vítimas”.
No capítulo da proteção de menores, aponta como uma das possíveis consequências do encontro no Vaticano que, quando os bispos vão em visita Ad Limina, a informação sobre os abusos esteja entre os itens do relatório a entregar. Na verdade, o que a comissão tem pedido ao Papa é que se prepare um instrumento de auditoria que cada conferência episcopal possa estudar para a implementação dos seus protocolos e para, na visita Ad Limina, os bispos poderem dar informações sobre sucessos e fracassos na implementação dos protocolos. Isto no respeito e articulação com a autonomia de cada diocese.
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Em relação a outros temas, fala de relance na sinodalidade – tema querido pelo Papa – relevando que o novo paradigma de Governo da Igreja dá mais importância às conferências episcopais e que isso esta a acontecer.
Tendo em conta que, ao falar do sacerdócio, é necessário falar de muitas caraterísticas e que livro começa pela misericórdia, responde à questão colocada pelo entrevistador se o selo do sacerdote hoje é ser capaz de pedir perdão pessoal e coletivamente, com a Igreja:
O sacerdote tem de estar muito consciente da sua vocação, da sua missão na Igreja, de ser parte de um presbitério. O individualismo cultural, às vezes, faz muito mal aos nossos sacerdotes, temos de desenvolver uma mentalidade de fraternidade sacerdotal, de trabalhar em conjunto para fazer visível o amor do Bom Pastor, na forma em que servimos o nosso povo.”.
Sendo que o livro se inspira no modo de vida de Jesus e criticando a sede de ativismo, discorre:
Jesus passou 10 vezes mais tempo em Nazaré, na sua vida contemplativa, do que em Cafarnaum, que representa a sua pastoral, digamos, o seu ministério público. O sacerdote tem de viver com um pé em Nazaré – vida de oração, fraternidade, Eucaristia, Bíblia – e outro pé em Cafarnaum, praticando essa proximidade, como diz o Papa, ao nosso povo – partilhando as suas dores e alegrias, ajudando-os a viver a sua vocação de discípulos missionários de Cristo.”.
Sobre a asserção do livro de que o púlpito é “a arena principal e o nosso martírio”, diz:
O homem moderno está muito acostumado à televisão, escutar um sermão custa. Mas a Palavra de Deus é muito importante (…). Os católicos modernos exigem que o padre ofereça um sermão que ajude a viver a Palavra de Deus, no nosso viver quotidiano. O povo tem cada vez mais educação, é mais exigente, e é preciso mantê-los acordados, despertos. É importante preparar, não só o texto da homilia, mas também os nossos corações, para partilhar com o nosso povo a fé, a nossa experiência, as nossas lutas interiores, para que eles saibam que estamos a acompanhá-los.”.
Da celebração da fé na Eucaristia e a espiritualidade sacerdotal, destaca:
A Liturgia ensina-nos a fé. E, na Liturgia, há três momentos em que o padre beija o altar, o livro dos Evangelhos e também dá o beijo da paz. São símbolos do amor do sacerdote, que têm de definir o seu ministério: o amor a Cristo, o amor à Palavra de Deus e o amor à noiva de Cristo, que é o Povo de Deus. (…) É tão importante refletir sobre o sentido dos gestos da Liturgia, para a podermos viver com mais entusiasmo.”.
Inspirado no cardeal Martini, aponta para a importância duma “regra de vida” para cada dia, à luz das prioridades de Jesus, entre elas a proximidade com o outro, confessando:
Quando li o livro do cardeal Martini [Como geria Jesus o seu tempo: pequena regra de vida para o discípulo do Senhor], de que gostei muito, fiquei surpreendido porque a primeira prioridade era a misericórdia. Eu pensei que ia ser a pregação da Boa Nova, o anúncio do Reino de Deus. Mas depois, ao pensar, sim, é certo: o cuidado dos doentes, as obras de misericórdia, é um contexto no qual se pode anunciar a Boa Nova. Temos de convencer as pessoas de que as amamos, para que possam acreditar na nossa palavra, aceitar o anúncio do Evangelho.”.
Acha que Francisco, assumindo a misericórdia como valor essencial, “vive o seu ideal com tanto entusiasmo, com tanta fidelidade” e fala “da sua experiência de jovem, ao ser inspirado pelos jesuítas da Argentina, do seu zelo missionário, fraternidade e disciplina” – “valores que estão tão vivos na sua vida, a sua simplicidade, bondade, desejo de reavivar a Igreja com a partilha da alegria do Evangelho”.
Sobre a frase inaciana Reza como se tudo dependesse de Deus e trabalha como se tudo dependesse de ti”, enfatiza:
Demonstra que a oração e o trabalho são muito importantes; só trabalhando e rezando muito conseguiremos cumprir a nossa missão de sacerdotes. O Papa Francisco diz, também, que os dois caminhos da santidade são a oração e a comunidade. Um padre tem de trabalhar muito, mas tem de trabalhar em equipa, juntamente com os irmãos sacerdotes e o seu bispo, para poder formar um presbitério realmente eficaz.”.
Por fim, sustenta que são muitas as mudanças que o Pontífice tem feito e que vai ser ajudado: na reforma da Cúria Romana, nos novos dicastérios, na comissão de proteção de menores – iniciativas do próprio Papa, que tem muito entusiasmo e desejo de continuar a promover estas iniciativas. Ora, os cardeais estão ali para ajudar no que puderem.
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Assim seja!
2019.03.15 – Louro de Carvalho

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