sábado, 9 de março de 2019

“Os cravos eram vermelhos, hoje são brancos”


Foi sob o signo vertido em epígrafe que, a 8 de março de 2019, os enfermeiros saíram à rua, pela valorização e dignificação da profissão, em Marcha Branca pela Enfermagem que reuniu 10 milhares em Lisboa, mostrou a união da classe e teve o apoio dos sindicatos, a proteção da OE (Ordem dos Enfermeiros) e o beneplácito do presidente do “Aliança”, o novo partido liderado por Santana Lopes, que afirmou:
É tempo de se chegar a acordo”.
Apesar de não ter conotações sindicais, a Marcha teve o apoio dos sindicatos, nomeadamente do Sindepor (Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal) e da ASPE (Associação Sindical dos Profissionais de Enfermagem), que organizaram as duas greves cirúrgicas, bem como do SEP (Sindicato dos Enfermeiros Portugueses). E constituiu uma grande manifestação “pela valorização e dignificação da profissão” e serviu, no Dia Internacional da Mulher, para homenagear Florence Nightingale, a britânica que é considerada a “mãe da enfermagem”, e “as mulheres enfermeiras”.
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O mote dado para o início da Marcha Branca pela Enfermagem, organizada pelo Movimento Nacional dos Enfermeiros, foi: “Vamos lá acordar, enfermagem”! E os enfermeiros e enfermeiras, proclamando o sloganNinguém solta a mão de ninguém”, importado do Brasil após a eleição do Presidente Jair Bolsonaro, desfilaram de cravo branco na mão a reforçar e a dominar brancura do traje.
No percurso do Parque da Bela Vista até ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa, a classe mostrou-se unida e sentiu-se confortada com os apoios. E o desfile fez uma paragem na Ordem dos Enfermeiros, onde alguns profissionais simbolicamente depositaram na urna as suas cédulas profissionais (Já têm as novas, pelo que entregaram as antigas) – gesto simbólico que tem a ver com a forma como acham que devem ser tratados pelo país numa semana em que se soube que tem de haver mais de mil milhões para o Novo Banco, que “davam para resolver os problemas dos enfermeiros, dos técnicos, dos auxiliares e ainda sobraria muito dinheiro”.
O enfermeiro Hélder Marques, que veio de propósito da Suíça, onde trabalha há 6 anos, para a Marcha Branca pela Enfermagem, disse a Santana Lopes:
“O povo saiu à rua no 25 de Abril. Os cravos eram vermelhos, hoje são brancos. Portugal é dos portugueses, não é do PSI 20 e do Novo Banco.”.
E, referindo-se ao Primeiro-Ministro, que foi convidado do programa das manhãs da SIC, na passada terça-feira, afirmou indignado “a revolta de ver os nossos dirigentes a disponibilizarem tempo para fazerem receitas no ‘Programa da Cristina’ e não terem 5 minutos para estarem aqui com os nossos representantes” e reforçou:
Não queremos propaganda. Queremos que venham aqui a senhora Ministra, António Costa, seja quem for, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que está em Angola, mas devia estar aqui connosco, porque Portugal é dos portugueses”.
Santana, não temendo a acusação de aproveitamento político pelo apoio a esta luta, declarou:
Os enfermeiros têm dado provas de uma identidade profissional fantástica. Nós apoiamos as reivindicações profissionais desta classe. […] O estar solidário com as lutas profissionais tem de deixar de uma vez por todas de ser um feudo ou um exclusivo da extrema-esquerda ou da esquerda mais radical. […] É preciso mais compreensão para com esta luta.”.
Ao lado de Ana Rita Cavaco, bastonária da OE, Santana deixou recado ao Ministro das Finanças:
“O doutor Centeno já tem praticamente garantido o défice 0,0 ou 0,1. Acho que ele não perde a cadeira de presidente do Eurogrupo se for 0,2 ou 0,3 e conseguirmos uma paz social.”.
A bastonária fez notar que Hélder Marques, depois de 10 anos a trabalhar em Portugal, sendo um dos muitos enfermeiros que deixaram o país, integra o número dos “18 mil enfermeiros emigrados”. Deixou o país em 2011, quando o governo de Passos Coelho anunciou o corte no subsídio de Natal. E, porque não está arrependido, pois os enfermeiros são uma classe profissional valorizada na Suíça, confessou:
Com um horário completo, de 40 horas por semana, mas consigo ter uma qualidade de vida que não tinha aqui. Há especialização e é reconhecida, é recompensada, há progressão na carreira, há aumentos anuais.”.
Foram gritadas e exibidas em cartazes várias palavras de ordem como: Sem medo”, “A classe acorda”, “Não nos calamos”. E Sónia Viegas, do Movimento Nacional dos Enfermeiros (que mobilizou enfermeiros de norte a sul, das ilhas e também de fora do país), afirmou:
 Conseguimos demonstrar união na classe”.
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A classe protesta na OIT (Organização Internacional do Trabalho). Com efeito, Garcia Pereira, advogado do Sindepor, que esteve no desfile, anunciou que vai apresentar um protesto na OIT e ao CE (Conselho da Europa) por “violação do direito à greve e do direito à atividade sindical”. Em causa, diz, está a atuação sobre os enfermeiros nas duas greves cirúrgicas, que motivaram a requisição civil por parte do Governo e a homologação de um parecer da PGR (Procuradoria-Geral da República) a considerar a paralisação ilícita. Para o advogado, a requisição civil funciona como um “balão de ensaio”, que suporta teorias que, se passarem incólumes, farão com que o direito à greve acabe. No seu entender, a luta dos enfermeiros é também um movimento pela democracia. Por isso, esteve presente na Marcha a solidarizar-se, “como cidadão”, com uma classe “que tem sido muito mal tratada”, que “tem sido injuriada e objeto de uma manipulação da opinião pública como nunca se viu” (disse ao DN).
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Mais outra greve. Na verdade, Carlos Ramalho, presidente do Sindepor – uma das estruturas que convocou a greve cirúrgica –, anunciou, no dia 7, uma greve geral “dura e prolongada”. Presente na Marcha, o sindicalista preferiu dar ênfase à união dos enfermeiros, recusando falar em datas. Contudo, disse que vai ser em abril e que pode estender-se a maio.
Ao invés, Lúcia Leite, presidente da ASPE, outra das estruturas que convocou a paralisação nos blocos operatórios, presente na marcha, não concorda com a iniciativa do Sindepor e disse:
Neste momento não considero que é a estratégia adequada, mas nunca deixamos de apoiar as intervenções de outros sindicatos desde que as reivindicações sejam justas e coerentes com as nossas”.
No entanto, aquela dirigente sindical diz que a ASPE não vai aderir à greve geral, justificando:
Não é nosso objetivo. Entendemos que não é o momento, estamos em fase de audição pública do diploma de carreira e em fase de início de processo negocial.”.
Ironicamente fica demonstrado que, apesar de os sindicatos não estarem unidos nas negociações, “os enfermeiros estão unidos”. Ana Rita Cavaco, disse que esta marcha mostra que a sua missão enquanto bastonária está cumprida, pois, como disse no arranque do desfile, “os enfermeiros têm hoje uma identidade e um sentido de pertença” e a marcha, serve também para que se perceba que “os enfermeiros são pessoas com famílias, filhos e que também têm direito a manifestar-se pela sua dignidade”. Considera que “quem de direito”, tendo ouvido muito a voz destes profissionais, tem de “decidir qual é a prioridade para o país: se é salvar bancos ou investir na vida das pessoas”.
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Soube-se, em fevereiro, que há um grupo no WhatsApp chamado Greve Cirúrgica, que junta mais de 200 enfermeiros portugueses. E foi esta inédita paralisação dos enfermeiros dos blocos operatórios que adiou, entre 22 de novembro e 31 de dezembro do ano passado, mais de 7500 cirurgias no SNS. A greve, convocada por dois sindicatos, ambos recentemente criados, o SINDEPOR e a ASPE, criou uma tensão extrema com o Governo, que chegou a declarar o corte de relações com a OE e proceder à requisição civil para quatro hospitais, por não estarem a ser cumpridos os serviços mínimos.
Greve em força!”, sugerira um dos dirigentes da Ordem, enquanto outros sugeriram a estratégia e definiram a política de comunicação do protesto sindical – o que a lei proíbe de forma clara.
No predito grupo do WhatsApp, a luta era preparada ao pormenor por quem o deve fazer, como os líderes sindicais da ASPE, por exemplo, e por quem está proibido por lei de manter qualquer atividade sindical, como é o caso de João Paulo Carvalho, Presidente da secção regional do Norte da OE. Este dirigente da OE era direto nas sugestões que faz aos enfermeiros e aos sindicatos:
Greve por tempo indeterminado... com mínimos iguais aos turnos de domingo... o pessoal recebia e a produção seria afetada. […] Noutra ocasião, Continuemos a fazer o mais importante... greve em força, enervar o governo e os [a]dministradores.”.
A lei é clara, já que o n.º 2 do art.º 5.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro (que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais), aprovada pelo Governo de Passos Coelho, estabelece:
As associações públicas profissionais estão impedidas de exercer ou de participar em atividades de natureza sindical ou que se relacionem com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus membros”.
O predito dirigente sabe dessa limitação. É ele quem a recorda, após ser interpelado por uma dirigente sindical da ASPE que lhe pedia apoio financeiro para as manifestações e escrevia no grupo Greve Cirúrgica, a propósito de manifestação que preparava:
Espero que a Ordem, que é de todos os enfermeiros, se disponha a ajudar os enfermeiros a estarem presentes e a mostrar ao ministério e ao governo que não vamos desistir enquanto não tivermos o que queremos.”. 
Entre outras coisas, alegava a sindicalista que a “organização de transporte será difícil”, sem o apoio da OE, porque o sindicato “não tem estrutura para isso”. E João Paulo Carvalho responde: 
Olá Lúcia... Como sabes a Ordem não pode comparticipar atividades sindicais... é a Lei... Podemos ajudar movimentos independentes de enfermeiros tal como já fizemos.”. 
Sobre o teor das mensagens que terá produzido, o dirigente regional da OE admite que há “uma linha ténue” a separar a atividade sindical da que é a opinião dum enfermeiro em funções na OE, que nunca foi sua intenção “ultrapassar essa linha”, que só tem apoiado os colegas e que a Ordem nunca foi parte ativa das negociações, nem da coordenação do protesto.
A própria página oficial da Ordem esclarece em estilo catequético:
Pode a Ordem dos Enfermeiros ter um papel mais ativo nas negociações da carreira e negociações salariais? Não. A Ordem dos Enfermeiros não pode, sequer, participar em qualquer processo negocial de natureza sindical e que se relacione com as relações profissionais ou económicas dos enfermeiros.”.
Todavia, persistem dúvidas sobre se o fez, nos últimos tempos. A bastonária tem participado nestes grupos fechados com mensagens áudio. Por exemplo, numa delas, explicava:
Acho que os sindicatos, nomeadamente o SINDEPOR, estiveram muito bem nesta negociação. Por isso, meus amigos, bola para a frente. Já fizemos o mais difícil, porque ‘eles’ nem a categoria queriam admitir. E, portanto, é não baixar os braços. Estamos na luta!”.
Ana Rita Cavaco explicou ao DN que nada disto pode ser entendido como uma intervenção sindical da Ordem, mas uma forma de mediação para que o poder não caia na rua (Era a argumentação de Marcello Caetano a 25 de abril de 1974!): 
Expliquei a reunião negocial, entre os sindicatos e o Governo, aos enfermeiros. A Ordem não convoca greves, não decide salários. O que disse nessas gravações é o que digo publicamente. É um apoio aos enfermeiros.”.
Todo este período tenso, desde que foi decretada a greve às cirurgias, foi meticulosamente comentado por outros dirigentes da OE. João Paulo Carvalho sugeria estratégias de comunicação, por exemplo, para que o povo não se voltasse contra a classe; dava munições para o ataque ao Governo (“Vou enviar um assunto que penso poder ser aproveitado a nosso favor quando os senhores do governo e outros vierem falar dos direitos dos utentes”); e até sugeria a relação ideal dos sindicatos com a comunicação social. É que o receio do dirigente da Ordem era justificado pelo facto de este Governo ser “mestre e dono da comunicação”, pelo que a solução era enervar o Governo e os administradores. E os enfermeiros conseguiram esse enervamento a ponto de o Governo ter cortado relações com a Ordem e António Costa, numa entrevista à SIC, ter acusado a entidade de usar “meios ilegais” e anunciado uma queixa judicial por “manifesta violação das regras”.
Essa queixa junta-se a uma investigação em curso no MP (Ministério Público) e que investiga a gestão financeira da OE, como há suspeita de pagamentos a dirigentes através de mecanismos de evasão fiscal (reembolsos fictícios de quilómetros feitos em carro próprio, por exemplo), entre outras.
Por seu turno, os enfermeiros apresentaram queixa na PGR contra o Governo por alegadamente ter invocado sem razão a não observância de serviços mínimos, tendo a PGR respondido que a remetera para o MP, depois de lhe ter dado a devida atenção.
Outra dúvida, esta levantada pelo Presidente da República, recai sobre a legalidade da angariação de fundos que apoia a greve dos enfermeiros:
Quem promove o ‘crowdfunding’ é um movimento cívico, um movimento cívico não pode declarar greve. O ‘rowdfunding’ é legalmente previsto para alguém reunir fundos para desenvolver certa atividade. Legalmente, não pode um movimento cívico substituir-se ao sindicato.”.

Em todo o caso, soube-se, a 2 de março, que Graça Machado, que era vice-presidente da Ordem dos Enfermeiros, fora acusada por Ana Rita Cavaco e suspensa de exercer enfermagem por 5 anos.
Esta enfermeira, com 24 anos de experiência, acusa:
Muitas das decisões tomadas unilateralmente pela bastonária levaram a Ordem a incorrer em ilegalidades”.
Da lista, que é longa, ressaltam: ajudas de custo decididas de forma informal, casas de função, salários pagos a dobrar, interferência no mundo sindical.
Para Graça Machado, a greve dos enfermeiros tem sido “instrumentalizada como arma de arremesso pela Ordem”. Segundo a dirigente suspensa, “muitos dos que estão na atual equipa a gerir a Ordem têm ambições próprias, muito além da Ordem e da enfermagem”, sendo isso que justifica a contratação de várias pessoas “com ligações ao PSD” e sem experiência na área da saúde. Por isso, lamenta-se, mas persiste:
 Estou cansada, magoada, desiludida, mas não mudo uma única vírgula ao que denunciei.
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A lei proíbe às ordens o exercício ou participação na atividade sindical e as leis da greve impõem grandes restrições para que um coletivo não sindical decrete a greve. Mas o art.º 57.º da CRP não exige serem sindicatos ou plenários a decretar greves (nem o remete para a lei). Leia-se:
1. É garantido o direito à greve. 2. Compete aos trabalhadores definir o âmbito de interesses a defender através da greve, não podendo a lei limitar esse âmbito. 3. A lei define as condições de prestação, durante a greve, de serviços necessários à segurança e manutenção de equipamentos e instalações, bem como de serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis.”.
A isto, J. J. Canotilho e Vital Moreira escreviam em 1984:
O direito de greve é um direito dos trabalhadores em si mesmos, de todos e de cada um deles, e não diretamente das organizações dos trabalhadores. Não tem, por isso, fundamento constitucional a norma legal que, em via de princípio, reserva aos sindicatos (e respetivas associações) o direito de decidir e declarar greves (…). Faz parte do próprio conceito de greve que este tem de pressupor uma decisão coletiva e uma atuação com o fim de defender ou promover interesses coletivos (…). Basta que se trate de um grupo de trabalhadores com interesses objetivamente solidários (…). A reserva de declaração de greve aos sindicatos traduz-se em negar o direito de greve aos trabalhadores não sindicalizados que, embora podendo participar nas greves declaradas pelo sindicato correspondente, nunca podem participar na decisão da declaração de greve.” (vd Constituição da Republica Portuguesa anotada, 2.ª ed. Coimbra Editora, pgs 315-316).
Em que ficamos? Pode o “Greve Cirúrgica” decretar greve? Teremos lei inconstitucional?   
2019.03.06 – Louro de Carvalho

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