Foi sob o signo
vertido em epígrafe que, a 8 de março de 2019, os enfermeiros saíram à rua, pela
valorização e dignificação da profissão, em Marcha Branca pela Enfermagem
que reuniu 10 milhares em Lisboa, mostrou a união da classe e teve o apoio dos
sindicatos, a proteção da OE (Ordem dos Enfermeiros) e o beneplácito do presidente
do “Aliança”, o novo partido liderado por Santana Lopes, que afirmou:
“É tempo de se chegar a acordo”.
Apesar de não
ter conotações sindicais, a Marcha
teve o apoio dos sindicatos, nomeadamente do Sindepor (Sindicato
Democrático dos Enfermeiros de Portugal) e da ASPE (Associação
Sindical dos Profissionais de Enfermagem), que organizaram as duas greves
cirúrgicas, bem como do SEP (Sindicato dos Enfermeiros Portugueses). E constituiu
uma grande manifestação “pela valorização e dignificação da profissão” e serviu,
no Dia Internacional da Mulher, para
homenagear Florence Nightingale, a britânica que é considerada a “mãe da
enfermagem”, e “as mulheres enfermeiras”.
***
O mote dado
para o início da Marcha Branca pela
Enfermagem, organizada pelo Movimento Nacional dos Enfermeiros, foi: “Vamos lá acordar, enfermagem”! E os
enfermeiros e enfermeiras, proclamando o slogan
“Ninguém solta a mão de ninguém”, importado
do Brasil após a eleição do Presidente Jair Bolsonaro, desfilaram de cravo
branco na mão a reforçar e a dominar brancura do traje.
No percurso do
Parque da Bela Vista até ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa, a classe
mostrou-se unida e sentiu-se confortada com os apoios. E o desfile fez uma
paragem na Ordem dos Enfermeiros, onde alguns profissionais simbolicamente
depositaram na urna as suas cédulas profissionais (Já têm as novas,
pelo que entregaram as antigas) – gesto simbólico que tem a ver com a forma como
acham que devem ser tratados pelo país numa semana em que se soube que tem de
haver mais de mil milhões para o Novo Banco, que “davam para resolver os
problemas dos enfermeiros, dos técnicos, dos auxiliares e ainda sobraria muito
dinheiro”.
O enfermeiro
Hélder Marques, que veio de propósito da Suíça, onde trabalha há 6 anos, para a
Marcha Branca pela Enfermagem, disse
a Santana Lopes:
“O povo saiu à
rua no 25 de Abril. Os cravos eram vermelhos, hoje são brancos. Portugal é dos
portugueses, não é do PSI 20 e do Novo Banco.”.
E, referindo-se
ao Primeiro-Ministro, que foi convidado do programa das manhãs da SIC, na
passada terça-feira, afirmou indignado “a
revolta de ver os nossos dirigentes a disponibilizarem tempo para fazerem
receitas no ‘Programa da Cristina’ e não terem 5 minutos para estarem aqui com
os nossos representantes” e reforçou:
“Não queremos propaganda. Queremos que
venham aqui a senhora Ministra, António Costa, seja quem for, o Presidente da
República, Marcelo Rebelo de Sousa, que está em Angola, mas devia estar aqui
connosco, porque Portugal é dos portugueses”.
Santana, não
temendo a acusação de aproveitamento político pelo apoio a esta luta, declarou:
“Os enfermeiros têm dado provas de uma
identidade profissional fantástica. Nós apoiamos as reivindicações
profissionais desta classe. […] O estar solidário com as lutas
profissionais tem de deixar de uma vez por todas de ser um feudo ou um
exclusivo da extrema-esquerda ou da esquerda mais radical. […] É
preciso mais compreensão para com esta luta.”.
Ao lado de Ana
Rita Cavaco, bastonária da OE, Santana deixou recado ao Ministro das Finanças:
“O doutor
Centeno já tem praticamente garantido o défice 0,0 ou 0,1. Acho que ele não
perde a cadeira de presidente do Eurogrupo se for 0,2 ou 0,3 e conseguirmos uma
paz social.”.
A bastonária
fez notar que Hélder Marques, depois de 10 anos a trabalhar em Portugal, sendo
um dos muitos enfermeiros que deixaram o país, integra o número dos “18 mil
enfermeiros emigrados”. Deixou o país em 2011, quando o governo de Passos
Coelho anunciou o corte no subsídio de Natal. E, porque não está arrependido,
pois os enfermeiros são uma classe profissional valorizada na Suíça, confessou:
“Com um horário completo, de 40 horas por
semana, mas consigo ter uma qualidade de vida que não tinha aqui. Há
especialização e é reconhecida, é recompensada, há progressão na carreira, há
aumentos anuais.”.
Foram gritadas e
exibidas em cartazes várias palavras de ordem como: “Sem medo”, “A classe acorda”, “Não nos
calamos”. E Sónia Viegas, do Movimento
Nacional dos Enfermeiros (que mobilizou enfermeiros de norte a sul, das ilhas
e também de fora do país), afirmou:
“Conseguimos
demonstrar união na classe”.
***
A classe
protesta na OIT (Organização Internacional do Trabalho). Com efeito,
Garcia Pereira, advogado do Sindepor, que esteve no desfile, anunciou
que vai apresentar um protesto na OIT e ao CE (Conselho da
Europa) por “violação do direito à greve e do direito à
atividade sindical”. Em causa, diz, está a atuação sobre
os enfermeiros nas duas greves cirúrgicas, que motivaram a requisição civil por
parte do Governo e a homologação de um parecer da PGR (Procuradoria-Geral
da República) a considerar a paralisação ilícita. Para o advogado,
a requisição civil funciona como um “balão de ensaio”, que suporta teorias que,
se passarem incólumes, farão com que o direito à greve acabe. No seu entender,
a luta dos enfermeiros é também um movimento pela democracia. Por isso, esteve
presente na Marcha a solidarizar-se, “como cidadão”, com uma classe “que tem
sido muito mal tratada”, que “tem sido injuriada e objeto de uma manipulação da
opinião pública como nunca se viu” (disse ao DN).
***
Mais outra
greve. Na verdade, Carlos Ramalho, presidente do Sindepor – uma das
estruturas que convocou a greve cirúrgica –, anunciou, no dia 7, uma
greve geral “dura e prolongada”. Presente na Marcha, o sindicalista preferiu
dar ênfase à união dos enfermeiros, recusando falar em datas. Contudo, disse
que vai ser em abril e que pode estender-se a maio.
Ao invés, Lúcia
Leite, presidente da ASPE, outra das estruturas que convocou a paralisação nos
blocos operatórios, presente na marcha, não concorda com a iniciativa
do Sindepor e disse:
“Neste momento não considero que é a
estratégia adequada, mas nunca deixamos de apoiar as intervenções de outros
sindicatos desde que as reivindicações sejam justas e coerentes com as nossas”.
No entanto, aquela
dirigente sindical diz que a ASPE não vai aderir à greve geral, justificando:
“Não é nosso objetivo. Entendemos que não é
o momento, estamos em fase de audição pública do diploma de carreira e em fase
de início de processo negocial.”.
Ironicamente
fica demonstrado que, apesar de os sindicatos não estarem unidos nas
negociações, “os enfermeiros estão unidos”. Ana Rita Cavaco, disse que esta
marcha mostra que a sua missão enquanto bastonária está cumprida, pois, como
disse no arranque do desfile, “os
enfermeiros têm hoje uma identidade e um sentido de pertença” e a marcha,
serve também para que se perceba que “os enfermeiros são pessoas com famílias,
filhos e que também têm direito a manifestar-se pela sua dignidade”. Considera
que “quem de direito”, tendo ouvido muito a voz destes profissionais, tem
de “decidir qual é a prioridade para o país: se é salvar bancos ou investir na
vida das pessoas”.
***
Soube-se, em fevereiro, que há um grupo no WhatsApp chamado Greve
Cirúrgica, que junta mais de 200 enfermeiros portugueses. E foi esta
inédita paralisação dos enfermeiros dos blocos operatórios que adiou, entre 22
de novembro e 31 de dezembro do ano passado, mais de 7500 cirurgias no SNS. A
greve, convocada por dois sindicatos, ambos recentemente criados, o SINDEPOR e
a ASPE, criou uma tensão extrema com o Governo, que chegou a declarar o corte
de relações com a OE e proceder à requisição civil para quatro hospitais, por
não estarem a ser cumpridos os serviços mínimos.
“Greve em força!”, sugerira um
dos dirigentes da Ordem, enquanto outros sugeriram a estratégia e definiram a
política de comunicação do protesto sindical – o que a lei proíbe de forma
clara.
No predito grupo do WhatsApp, a luta era
preparada ao pormenor por quem o deve fazer, como os líderes sindicais da ASPE,
por exemplo, e por quem está proibido por lei de manter qualquer atividade
sindical, como é o caso de João Paulo Carvalho, Presidente da secção regional do Norte da
OE. Este dirigente da OE era direto
nas sugestões que faz aos enfermeiros e aos sindicatos:
“Greve por tempo indeterminado... com
mínimos iguais aos turnos de domingo... o pessoal recebia e a produção seria
afetada. […] Noutra ocasião, Continuemos
a fazer o mais importante... greve em força, enervar o governo e os
[a]dministradores.”.
A lei é clara, já que o n.º 2 do art.º 5.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de
janeiro (que estabelece o regime jurídico de criação, organização e
funcionamento das associações públicas profissionais), aprovada pelo Governo de Passos
Coelho, estabelece:
“As associações públicas profissionais estão
impedidas de exercer ou de participar em atividades de natureza sindical ou que
se relacionem com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus
membros”.
O predito dirigente sabe dessa limitação. É ele quem a recorda, após ser
interpelado por uma dirigente sindical da ASPE que lhe pedia apoio financeiro
para as manifestações e escrevia no grupo Greve
Cirúrgica, a propósito de manifestação que preparava:
“Espero que a Ordem, que é de todos os
enfermeiros, se disponha a ajudar os enfermeiros a estarem presentes e a
mostrar ao ministério e ao governo que não vamos desistir enquanto não tivermos
o que queremos.”.
Entre outras coisas, alegava a sindicalista que a
“organização de transporte será difícil”, sem o apoio da OE, porque o sindicato
“não tem estrutura para isso”. E João Paulo Carvalho responde:
“Olá Lúcia... Como sabes a Ordem não pode comparticipar atividades
sindicais... é a Lei... Podemos ajudar movimentos independentes de enfermeiros
tal como já fizemos.”.
Sobre o teor das mensagens que terá produzido, o dirigente regional da OE admite que há “uma linha ténue” a separar a
atividade sindical da que é a opinião dum enfermeiro em funções na OE, que
nunca foi sua intenção “ultrapassar essa linha”, que só tem apoiado os
colegas e que a Ordem nunca foi parte ativa das negociações, nem da coordenação
do protesto.
A própria página oficial da Ordem esclarece em estilo catequético:
“Pode a Ordem dos Enfermeiros ter um papel
mais ativo nas negociações da carreira e negociações salariais? Não. A Ordem dos Enfermeiros não pode, sequer,
participar em qualquer processo negocial de natureza sindical e que se
relacione com as relações profissionais ou económicas dos enfermeiros.”.
Todavia, persistem dúvidas sobre se o fez, nos últimos tempos. A bastonária
tem participado nestes grupos fechados com mensagens áudio. Por exemplo, numa
delas, explicava:
“Acho que os sindicatos, nomeadamente o
SINDEPOR, estiveram muito bem nesta negociação. Por isso, meus amigos, bola para a frente. Já fizemos o mais difícil,
porque ‘eles’ nem a categoria queriam admitir. E, portanto, é não baixar os
braços. Estamos na luta!”.
Ana Rita Cavaco explicou ao DN
que nada disto pode ser entendido como uma intervenção sindical da Ordem, mas
uma forma de mediação para que o poder não caia na rua (Era a argumentação de Marcello Caetano a 25 de abril de 1974!):
“Expliquei a reunião negocial, entre os sindicatos e o Governo, aos
enfermeiros. A Ordem não convoca greves, não decide salários. O que disse nessas
gravações é o que digo publicamente. É um apoio aos enfermeiros.”.
Todo este período tenso, desde que foi decretada a greve às cirurgias, foi
meticulosamente comentado por outros dirigentes da OE. João Paulo Carvalho
sugeria estratégias de comunicação, por exemplo, para que o povo não se
voltasse contra a classe; dava munições para o ataque ao Governo (“Vou enviar um assunto que penso poder ser aproveitado a nosso favor quando
os senhores do governo e outros vierem falar dos direitos dos utentes”); e até sugeria a relação ideal
dos sindicatos com a comunicação social. É que o receio do dirigente da Ordem
era justificado pelo facto de este Governo ser “mestre e dono da comunicação”, pelo que a solução era enervar o Governo
e os administradores. E os enfermeiros conseguiram esse enervamento a ponto de
o Governo ter cortado relações com a Ordem e António Costa, numa entrevista à
SIC, ter acusado a entidade de usar “meios ilegais” e anunciado uma queixa
judicial por “manifesta violação das regras”.
Essa queixa junta-se a uma investigação em curso no MP (Ministério Público) e que investiga a gestão financeira da OE, como há suspeita de pagamentos
a dirigentes através de mecanismos de evasão fiscal (reembolsos fictícios de quilómetros feitos em carro próprio, por exemplo), entre outras.
Por seu turno, os enfermeiros apresentaram queixa na PGR contra o Governo
por alegadamente ter invocado sem razão a não observância de serviços mínimos,
tendo a PGR respondido que a remetera para o MP, depois de lhe ter dado a
devida atenção.
Outra dúvida, esta levantada pelo Presidente da República, recai sobre a
legalidade da angariação de fundos que apoia a greve dos enfermeiros:
“Quem promove o ‘crowdfunding’ é um
movimento cívico, um movimento cívico não pode declarar greve. O ‘rowdfunding’
é legalmente previsto para alguém reunir fundos para desenvolver certa
atividade. Legalmente, não pode um movimento cívico substituir-se ao sindicato.”.
Em todo o
caso, soube-se, a 2 de março, que Graça
Machado, que era vice-presidente da Ordem dos Enfermeiros, fora acusada por Ana
Rita Cavaco e suspensa de exercer enfermagem por 5 anos.
Esta enfermeira,
com 24 anos de experiência, acusa:
“Muitas das decisões tomadas unilateralmente
pela bastonária levaram a Ordem a incorrer em ilegalidades”.
Da lista, que é longa, ressaltam: ajudas de custo decididas de forma
informal, casas de função, salários pagos a dobrar, interferência no mundo
sindical.
Para Graça Machado, a greve dos enfermeiros tem sido “instrumentalizada como arma de arremesso pela Ordem”. Segundo a
dirigente suspensa, “muitos dos que estão
na atual equipa a gerir a Ordem têm ambições próprias, muito além da Ordem e da
enfermagem”, sendo isso que justifica a contratação de várias pessoas “com
ligações ao PSD” e sem experiência na área da saúde. Por isso, lamenta-se, mas persiste:
“Estou cansada, magoada, desiludida, mas não
mudo uma única vírgula ao que denunciei”.
***
A lei proíbe às ordens o exercício ou participação na atividade sindical e as
leis da greve impõem grandes restrições para que um coletivo não sindical decrete
a greve. Mas o art.º 57.º da CRP não exige serem sindicatos ou plenários a
decretar greves (nem o remete para a lei). Leia-se:
“1. É garantido o direito à greve. 2. Compete aos trabalhadores definir o
âmbito de interesses a defender através da greve, não podendo a lei limitar
esse âmbito. 3.
A lei define as
condições de prestação, durante a greve, de serviços necessários à segurança e manutenção
de equipamentos e instalações, bem como de serviços mínimos indispensáveis para
ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis.”.
A isto, J. J. Canotilho e Vital
Moreira escreviam em 1984:
“O direito de
greve é um direito dos trabalhadores
em si mesmos, de todos e de cada um deles, e não diretamente das organizações dos
trabalhadores. Não tem, por isso, fundamento constitucional a norma legal que,
em via de princípio, reserva aos sindicatos (e respetivas associações) o direito
de decidir e declarar greves (…). Faz parte do próprio conceito de greve que
este tem de pressupor uma decisão coletiva e uma atuação com o fim de defender
ou promover interesses coletivos (…). Basta que se trate de um grupo de
trabalhadores com interesses objetivamente solidários (…). A reserva de declaração
de greve aos sindicatos traduz-se em negar o direito de greve aos trabalhadores
não sindicalizados que, embora podendo participar nas greves declaradas pelo
sindicato correspondente, nunca podem participar na decisão da declaração de
greve.” (vd
Constituição da Republica Portuguesa
anotada, 2.ª ed. Coimbra Editora, pgs 315-316).
Em que ficamos? Pode o “Greve Cirúrgica” decretar greve? Teremos
lei inconstitucional?
2019.03.06 – Louro de Carvalho
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