Quem o assegura é a juíza Cristina Cardoso, 49 anos, que recentemente se doutorou,
pela Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica, com uma
tese sobre “a violência doméstica na vertente conjugal ou análoga”.
Licenciada pela Faculdade de Direito de Coimbra e mestre em Direito no
âmbito das penas acessórias para este tipo de crime compara as leis portuguesas
com o direito espanhol na sua tese de doutoramento “A violência doméstica na vertente conjugal ou análoga: será o direito
penal espanhol um modelo a seguir?” – a editar em breve – onde conclui que “penas
mais pesadas e de prisão efetiva nada resolvem”, sendo a educação o caminho. Discorda
da criação de tribunais especializados e da consagração da violência sobre as
mulheres como crime de género. Defende a importação da ordem de proteção em 72
horas (algo já apontado pelo Primeiro-Ministro), a implementação de programas em meio
prisional para o agressor e o empoderamento da vítima. E, frisando que “há
estereótipos de vítima” (ou é vulnerável ou irracional) e que “o sistema não pode
decidir pela mulher”, define assim os juízes portugueses, a quem vê como parte
da solução:
“Têm os preconceitos e os pré-juízos que os
homens e as mulheres da sociedade em que vivemos possuem. Uns mais que outros.”.
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Em entrevista dada a público hoje, dia 21, pelo DN, a magistrada e académica dá conta
das motivações e opções que verte na tese. Respigam-se alguns dos dados mais pertinentes.
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Foi a prática como magistrada que a levou ao
aprofundamento académico da problemática da violência doméstica. Com efeito,
antes da sua experiência no Tribunal de Execução de Penas, passou mais de uma década num juízo criminal
vendo crescer até um nível muito elevado os casos de violência doméstica. Por
um lado, atenta a sua condição de mulher, embora entenda não se tratar de
questão de género, não dúvida de que “a maior parte dos agressores são homens e
a maior parte das vítimas são mulheres” (está
comprovado estatisticamente). Por outro lado, como juíza em tribunais criminais percebeu que o
problema, ainda que não seja novo, “ganhou uma notoriedade que antes não tinha”.
E diz:
“Antes havia um por mês e, quando saí de
Gaia, tinha dois ou três julgamentos por semana. Isto fez pensar no tema que já
me suscitava interesse e com o qual eu me deparava enquanto juíza.”.
Depois, fala da evolução do problema e da
perceção do mesmo:
“Até 2007 era o crime de maus tratos contra
cônjuge. O que acontece é que em todas as alterações legislativas as molduras
penais foram alteradas, o número de penas acessórias também, e alargou-se [o
universo d’] os sujeitos. Portanto, o que se verifica é o aumento do número de
situações capazes de integrar hoje em dia o crime de violência doméstica. Antes
era mais apertado. Nos sujeitos, por exemplo, hoje, além dos conjugues, temos
os ex-cônjuges, os companheiros, os ex-companheiros, mesmo sem coabitação, e
mais recentemente os namorados e ex-namorados. Os atos já eram crime, mas não
se integravam na violência doméstica.”.
A opção pelo aprofundamento da vertente conjugal
ou análoga não significa ignorar a relevância de outras formas de violência de
violência doméstica ou paradoméstica, mas por ser diferente e por ser a dominante
nos processos judiciais, como explicita:
“Não trato nada da violência contra menores
ou contra idosos na tese. São situações completamente diversas e, não obstante
estarem previstas no art.º 152.º [do CP], na alínea d), pessoalmente até
entendo que deviam estar previstas à parte porque têm especificidades
relativamente à violência doméstica conjugal. Até os próprios pressupostos são
diferentes. Na vertente conjugal, não é necessária a coabitação. Nas outras,
com pessoas indefesas, em razão da idade, já se exige a coabitação. Na
conjugal, exige-se a relação íntima e na contra menores ou idosos essa relação
não é necessária. Optei por esta vertente porque é, sem dúvida, aquela que mais
aparece nos tribunais. Mas acho que estamos a esquecer a violência contra os
menores e sobretudo contra os idosos. Toda a preocupação da sociedade quer
legislativa quer mediática tem sido no âmbito da violência doméstica contra a
mulher. Convém não esquecer que há outras vítimas.”.
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Fez comparação, neste âmbito, com o direito
espanhol, “considerado paradigmático e inovador” no atinente à violência doméstica e
“para encontrar aspetos que poderiam ser úteis na nossa legislação”, ou seja,
verificar as lacunas apresentadas nela e importar soluções para colmatar tais
lacunas. Porém, não encontrou muitos aspetos úteis, só alguns. E justifica-se
com algum detalhe:
“O sistema penal espanhol na violência
doméstica não é exatamente o mesmo que em Portugal. Em Espanha está muito
ligado à violência de género nas relações de intimidade. Há dois crimes de
violência doméstica ou de maus tratos. Tem o crime de maus tratos habituais que
é semelhante ao nosso e tem outro diferente para maus tratos leves ou
ocasionais. E este crime é um crime de género. Pressupõe necessariamente que o
agressor seja um homem e a vítima uma mulher. Se o agressor for uma mulher e a
vítima for um homem ou uma mulher, a pena limite mínima é inferior.”.
Este ordenamento, pelos vistos, levantou muitas questões em Espanha, mas o seu
Tribunal Constitucional diz que não é inconstitucional, opção que a juíza não
partilha “porque desde logo viola o princípio da igualdade”. aqui, em vez de sugerir importação, congratula
o legislador por ter resistido a esta tentação, pois é “uma tentação populista
de consagrar crimes de género”. E aponta ao sistema espanhol muitas
contradições “porque o crime de género existe apenas no crime de maus tratos
leve ou ocasional”, quando “nos homicídios ou na violação não é crime de género,
mas nos crimes menos graves” (ofensas, injúria, difamação ou
maus tratos ocasionais) é de género.
Também critica a hiperproteção da mulher no direito espanhol, sustentando
que a hiperproteção feminina “não cabe no direito penal”, pois “homens e
mulheres são iguais e têm que ser tratados da mesma forma” e “a ação não é mais
desvaliosa por ser praticada por um homem contra uma mulher do que se for por
uma mulher contra um homem”.
Porém, um dos aspetos positivos no direito espanhol é a chamada ordem de
proteção” (sendo que o nosso estatuto da vitima de
violência doméstica é inspirado na lei espanhola, com algumas exceções entre as
quais a ordem de proteção). E explica em que consiste:
“É um mecanismo através do qual o juiz, seja
criminal ou nos julgados da violência contra a mulher, que são tribunais
especializados criados em Espanha, em 72 horas tem que marcar uma conferência
em que está presente o arguido, a vítima e os seus advogados. Nessa decisão, o
juiz aplica medidas de natureza criminal e de natureza civil. Esta é a grande
mais-valia desta ordem de proteção. O mesmo juiz na mesma decisão vai aplicar
as medidas de coação – são muito semelhantes às nossas – e simultaneamente vai
regular provisoriamente o poder paternal, a guarda, a pensão de alimentos e a
atribuição da casa de morada de família.”.
A decisão é válida por 30 dias, que podem ser prorrogados por mais 30.
Em Portugal, embora as leis vão no sentido da imediata comunicação por
parte do MP (Ministério Público) ao Tribunal de Família,
demora-se muito mais que 72 horas e não é o mesmo juiz que decide. A eficácia
decorre da rapidez e da simultaneidade. Por exemplo, aplicar medida de
proibição de contacto com a vítima e não regular imediatamente o poder paternal
cria ineficácia por desfasamento. Pensa
que até nem são precisas grandes alterações na lei, como explica:
“São medidas sempre provisórias e não vejo
qualquer problema em serem aplicadas por um juiz de instrução criminal. As
medidas de coação o juiz já as aplica, as de natureza civil visam proteger a
vítima e evitar situações muito complicadas. O agressor pode considerar que
continua a ter direito a ver os filhos, por estar autorizado, e vai a casa da
mulher buscá-los. O juiz pode também não suspender as visitas mas sim
regulamentar quem é que vai entregar os menores ao pai. Pode ser outra pessoa
da família, mas fica regulado. Depois há questões práticas como saber onde a
vítima vai viver, isto é muito importante.”.
E denuncia a insuficiência de comunicação e a burocracia:
“O MP até pode comunicar logo, mas será
outro MP, no Tribunal de Família, a receber e haverá ainda outro juiz para
decidir. Isto é fácil resolver e não implica sequer a criação de tribunais
especializados. Não é necessário. Aliás, em Espanha, nos sítios onde não há
julgados de violência de género estas medidas são aplicadas pelo juiz de turno.”.
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Sobre a necessidade de tribunais especializados nesta matéria, pensa não se
dever ir por aí:
“Acho que os tribunais criminais podem
julgar crimes de violência doméstica. Não vejo vantagem em criar tribunais
ainda mais especializados que implicam desde logo uma alteração na
Constituição. Não me parece que seja por aí que a violência doméstica irá
diminuir. Em Espanha [que os tem] não diminuiu.”.
Também não se resolve o problema colocando os
condenados mais tempo na prisão. Com efeito, em Espanha as penas não têm uma moldura
superior, mas a suspensão é muito inferior (Lá é 2 anos o
máximo, aqui são 5). Por isso, sustenta que “a política de aumentar as penas teria algum
sentido se ao aumento da punição correspondesse uma diminuição da criminalidade”,
mas não corresponde, antes pelo contrário. Assim, em sua opinião, não importa
discutir o aumento das penas na violência doméstica, pois não é por aí que ela
diminuirá.
***
Cristina Cardoso defende que a discussão para a diminuição da violência
doméstica passa pela educação, que supõe ser “a única forma de resolver este
flagelo social”, devendo começar na escola do 1.º ciclo e conseguir que “daqui
a uma geração produza efeitos”, não pela erradicação, mas pela diminuição
significativa. Mas o acento na
educação implica uma reforma estrutural na sociedade. Ora, enquanto ela não
acontece e não produz efeitos, não se podem deixar “as vítimas desprotegidas
nem os agressores impunes”. Para tanto, há que implementar, a curto prazo, a
ordem de proteção e intervir sobre os agressores. E discorre sobre este último
ponto:
“Os espanhóis têm vários programas para
agressores e têm estatísticas disso, nós não. A reincidência em Espanha no caso
de agressores que frequentaram os programas é apenas de 4%. (…) Todo o combate
à violência doméstica surgiu com os movimentos feministas e sempre se defendeu
que importava antes de mais proteger a vítima. (…) A questão é mais saber se
uma das formas de proteger a vítima não é precisamente a intervenção sobre o
agressor. (…) Se aplicamos uma pena de prisão efetiva e colocamos o agressor
dois anos num estabelecimento prisional, sem qualquer programa, não podemos
esperar uma alteração de comportamento da parte do agressor. Quando sair,
poderá acontecer que mude de vítima. Ou não, também é muito frequente na
violência doméstica as relações terminarem e depois reatarem.”.
Lamenta que não tenhamos esses programas a funcionar nos estabelecimentos
prisionais:
“Em Espanha os programas nasceram no âmbito
prisional e passaram para o exterior. Em Portugal nasceram no meio livre, mas
nunca passaram para a cadeia. Nos casos mais graves, de reincidência, não temos
programas específicos para a violência doméstica em meio prisional. (…) E temos
um programa que funciona em meio livre, era só adaptá-lo ao meio prisional.”.
Estes programas podem ser aplicados como medida
da coação e no âmbito das sentenças, tal como podem ser condição para a suspensão
provisória do processo, para a suspensão da pena de prisão ou ainda como pena
acessória.
Tendo falado da intervenção sobre o agressor,
passa a falar da vítima, começando por identificar dois estereótipos sobre a vítima
mulher: o da vítima extremamente vulnerável (fragilizada
após anos de maus tratos e sem capacidade de decisão); e o da vítima irracional (que hoje apresenta queixa e amanhã já não quer queixar-se). E a tentação, de que
discorda, é decidir pela vítima. E frisa:
“Em situações graves e reiteradas de
violência doméstica, a vítima não tem força, mas acho que a forma de ajudar não
é decidir por ela. É ajudá-la, empoderá-la, a ganhar a força que perdeu e a
decidir por ela [por si própria]. Não podemos tratar as mulheres como incapazes
ou menores.”.
A seguir, fala da conceção ideal de vítima que perpassa pela nossa
sociedade, indicando:
“É a vítima que se queixa, que se quer
separar, que se divorcia, que presta depoimento. Tanto em fase de inquérito
como em julgamento, que quer a condenação do agressor em pena de prisão
efetiva. (…) O que acontece é que nem todas as vítimas são as ideais. As
situações de violência doméstica são muito díspares. Não há uma vítima, há uma
multiplicidade de vítimas e muitas não cabem neste conceito de vítima ideal.”.
E a solução passa pelo empoderamento: “ajudar a mulher
com apoio psicológico”, ajudá-la “a ganhar a força que perdeu durante os anos
em que foi vítima”. O crime é público, mas o sistema decide pela vítima.
Entende-se que o melhor “é a vítima separar-se, depor e querer a condenação do
agressor”, mas isso nem sempre funciona. E a académica juíza refere:
“Mais de 50% dos julgamentos.
Aliás, 98% das absolvições devem-se ao facto da vítima chegar a julgamento e
não depor. Apesar de ser testemunha, tem esse direito, dada a relação conjugal,
como familiar.”.
Depois, explana como se verifica tão grande
diferença entres os números de denúncias/queixas, acusações e condenações,
tornando-se estas de muito difícil consecução:
“Sendo o crime de natureza pública, o MP
inicia o processo mesmo sem queixa (…). Depois, o processo prossegue, mesmo
contra a vontade da vítima. Pode dizer ‘eu quero desistir’, mas, sendo público,
isso não tem qualquer efeito. Em julgamento, a vítima – sendo mulher ou mesmo
ex-mulher [ex-esposa, diria eu e não ex-mulher] – vai depois dizer que não quer prestar depoimento. Na violência
doméstica, o depoimento da vítima é fundamental para alicerçar uma condenação.
O arguido tem o direito ao silêncio, a testemunha vítima tem direito a não
prestar depoimento, e as restantes testemunhas se forem familiares, filhos ou
pais, gozam do mesmo direito de não falar. Conseguir uma condenação nestes
casos é muito difícil. E depois há uma absolvição que a população tem
dificuldade em compreender.”.
Também não é correta a ideia de que todas as vítimas
que desistem o fazem por serem coagidas pelo agressor. O problema é outro:
“Há situações em que a vítima não quer a
resposta do direito penal. Há muitas vítimas de violência doméstica que não
querem a condenação do agressor a uma pena de prisão. Querem outra coisa. Se
calhar querem que ele se trate. Uma coisa querem sempre: é não ser mais
agredidas. Agora as situações da vida real são muito amplas e são mais
ricas do que aquilo que o legislador conseguiu prever. Há casos em que no
momento do julgamento o casal está separado e se calhar até já tem uma boa
relação. A vítima pode, legitimamente, não querer a condenação do pai dos
filhos. Devo respeitar a vontade da vítima.”.
Em todo o caso, “nas situações mais graves, quando saem de casa e têm
acompanhamento, as vítimas depõem”. É certo que “a maioria dos casos não
termina em homicídio nem em tentativa”, mas não deixa de ser grave. A violência
doméstica de que se fala a maior parte das vezes “não abre os telejornais não
tem armas envolvidas”.
E sustenta que a nossa legislação deve ser alterada tendo em conta um tipo especial de
vítima. Com efeito, o facto de o menor assistir à violência interparental
qualifica o crime do agressor, mas sem haver crime sobre o menor, do que a
juíza discorda completamente, justificando:
“Um menor que assiste à violência entre os
pais não é uma vítima indireta. É uma vítima direta e os estudos psicológicos
provam isso. Para mim, seriam dois crimes, um de violência contra a mulher e
outro contra os menores. (…) As crianças são as vítimas esquecidas e não há
diferença entre os menores que são agredidos em contexto de violência doméstica
e os que veem a mãe ser agredida.”.
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Tem ainda uma palavra sobre a mediação penal, que existe a nível penal, mas
não no âmbito da violência doméstica, e que “é adequada em muitas situações de
violência doméstica e para muitas mulheres”. E esclarece:
“Na mediação penal a vítima tem o lugar
principal. A nível penal esquece-se a vítima – não é sequer um sujeito
processual. Na mediação penal ela é central e tudo funciona à volta dela. A
vontade dela é respeitada. Pode querer tentar compreender o que levava o
companheiro a agredi-la, ou que ele faça um tratamento. É óbvio que nem tudo
pode ser resolvido pela mediação penal. Além disso, é voluntária e exige o
acordo do agressor e da vítima. Se o direito penal não resolve tudo, é tempo de
começar a ver que a mediação em certas situações é uma hipótese.”.
Quanto à discussão de casos e acórdãos polémicos, acha que “os juízes fazem
parte da solução”. E, sem comentar os casos em concreto, adverte:
“Não se pode esperar que o direito penal
resolva o problema da violência doméstica. Não se pode exigir mais do que
aquilo que é capaz de dar. Os casos de que se fala são dois, três, quatro ou
cinco decisões. Há milhares de sentenças e de acórdãos proferidos no âmbito da
violência doméstica. Claro que devemos investir na formação dos magistrados,
dos polícias, dos psicólogos. (…) Agora, o juiz não é alguém que caiu do
céu e se sentou na cadeira. É um homem ou uma mulher da sociedade em que
vivemos. E vai também ter os preconceitos e os pré-juízos que homens e mulheres
da sociedade em que vivemos possuem. Uns mais que outros.”.
***
Enfim, é de aplaudir a opção pela batalha da educação (em certa medida poética), morosa e que exige uma revolução sistémica, de mentalidades, atitudes e
comportamentos, bem como a instituição da ordem de proteção, a implementação de
programas de formação e de tratamento para agressores em meio prisional, a
mediação penal, “que o crime de violência doméstica não seja um crime público”
como outros crimes públicos, mas “um crime público atípico em que a mulher tem
voz” e que não se espere que a solução se esgote no sistema penal.
Que a lucidez impere!
2019.03.21 –
Louro de Carvalho
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