sexta-feira, 22 de março de 2019

Aumento das penas de prisão por violência doméstica não é solução


Quem o assegura é a juíza Cristina Cardoso, 49 anos, que recentemente se doutorou, pela Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica, com uma tese sobre “a violência doméstica na vertente conjugal ou análoga”.
Licenciada pela Faculdade de Direito de Coimbra e mestre em Direito no âmbito das penas acessórias para este tipo de crime compara as leis portuguesas com o direito espanhol na sua tese de doutoramento “A violência doméstica na vertente conjugal ou análoga: será o direito penal espanhol um modelo a seguir?” – a editar em breve – onde conclui que “penas mais pesadas e de prisão efetiva nada resolvem”, sendo a educação o caminho. Discorda da criação de tribunais especializados e da consagração da violência sobre as mulheres como crime de género. Defende a importação da ordem de proteção em 72 horas (algo já apontado pelo Primeiro-Ministro), a implementação de programas em meio prisional para o agressor e o empoderamento da vítima. E, frisando que “há estereótipos de vítima” (ou é vulnerável ou irracional) e que “o sistema não pode decidir pela mulher”, define assim os juízes portugueses, a quem vê como parte da solução:  
Têm os preconceitos e os pré-juízos que os homens e as mulheres da sociedade em que vivemos possuem. Uns mais que outros.”.
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Em entrevista dada a público hoje, dia 21, pelo DN, a magistrada e académica dá conta das motivações e opções que verte na tese. Respigam-se alguns dos dados mais pertinentes.
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Foi a prática como magistrada que a levou ao aprofundamento académico da problemática da violência doméstica. Com efeito, antes da sua experiência no Tribunal de Execução de Penas, passou mais de uma década num juízo criminal vendo crescer até um nível muito elevado os casos de violência doméstica. Por um lado, atenta a sua condição de mulher, embora entenda não se tratar de questão de género, não dúvida de que “a maior parte dos agressores são homens e a maior parte das vítimas são mulheres” (está comprovado estatisticamente). Por outro lado, como juíza em tribunais criminais percebeu que o problema, ainda que não seja novo, “ganhou uma notoriedade que antes não tinha”. E diz:
Antes havia um por mês e, quando saí de Gaia, tinha dois ou três julgamentos por semana. Isto fez pensar no tema que já me suscitava interesse e com o qual eu me deparava enquanto juíza.”.
Depois, fala da evolução do problema e da perceção do mesmo:
Até 2007 era o crime de maus tratos contra cônjuge. O que acontece é que em todas as alterações legislativas as molduras penais foram alteradas, o número de penas acessórias também, e alargou-se [o universo d’] os sujeitos. Portanto, o que se verifica é o aumento do número de situações capazes de integrar hoje em dia o crime de violência doméstica. Antes era mais apertado. Nos sujeitos, por exemplo, hoje, além dos conjugues, temos os ex-cônjuges, os companheiros, os ex-companheiros, mesmo sem coabitação, e mais recentemente os namorados e ex-namorados. Os atos já eram crime, mas não se integravam na violência doméstica.”.
A opção pelo aprofundamento da vertente conjugal ou análoga não significa ignorar a relevância de outras formas de violência de violência doméstica ou paradoméstica, mas por ser diferente e por ser a dominante nos processos judiciais, como explicita:
Não trato nada da violência contra menores ou contra idosos na tese. São situações completamente diversas e, não obstante estarem previstas no art.º 152.º [do CP], na alínea d), pessoalmente até entendo que deviam estar previstas à parte porque têm especificidades relativamente à violência doméstica conjugal. Até os próprios pressupostos são diferentes. Na vertente conjugal, não é necessária a coabitação. Nas outras, com pessoas indefesas, em razão da idade, já se exige a coabitação. Na conjugal, exige-se a relação íntima e na contra menores ou idosos essa relação não é necessária. Optei por esta vertente porque é, sem dúvida, aquela que mais aparece nos tribunais. Mas acho que estamos a esquecer a violência contra os menores e sobretudo contra os idosos. Toda a preocupação da sociedade quer legislativa quer mediática tem sido no âmbito da violência doméstica contra a mulher. Convém não esquecer que há outras vítimas.”.
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Fez comparação, neste âmbito, com o direito espanhol, “considerado paradigmático e inovador” no atinente à violência doméstica e “para encontrar aspetos que poderiam ser úteis na nossa legislação”, ou seja, verificar as lacunas apresentadas nela e importar soluções para colmatar tais lacunas. Porém, não encontrou muitos aspetos úteis, só alguns. E justifica-se com algum detalhe:    
O sistema penal espanhol na violência doméstica não é exatamente o mesmo que em Portugal. Em Espanha está muito ligado à violência de género nas relações de intimidade. Há dois crimes de violência doméstica ou de maus tratos. Tem o crime de maus tratos habituais que é semelhante ao nosso e tem outro diferente para maus tratos leves ou ocasionais. E este crime é um crime de género. Pressupõe necessariamente que o agressor seja um homem e a vítima uma mulher. Se o agressor for uma mulher e a vítima for um homem ou uma mulher, a pena limite mínima é inferior.”.
Este ordenamento, pelos vistos, levantou muitas questões em Espanha, mas o seu Tribunal Constitucional diz que não é inconstitucional, opção que a juíza não partilha “porque desde logo viola o princípio da igualdade”. aqui, em vez de sugerir importação, congratula o legislador por ter resistido a esta tentação, pois é “uma tentação populista de consagrar crimes de género”. E aponta ao sistema espanhol muitas contradições “porque o crime de género existe apenas no crime de maus tratos leve ou ocasional”, quando “nos homicídios ou na violação não é crime de género, mas nos crimes menos graves” (ofensas, injúria, difamação ou maus tratos ocasionais) é de género.
Também critica a hiperproteção da mulher no direito espanhol, sustentando que a hiperproteção feminina “não cabe no direito penal”, pois “homens e mulheres são iguais e têm que ser tratados da mesma forma” e “a ação não é mais desvaliosa por ser praticada por um homem contra uma mulher do que se for por uma mulher contra um homem”.
Porém, um dos aspetos positivos no direito espanhol é a chamada ordem de proteção” (sendo que o nosso estatuto da vitima de violência doméstica é inspirado na lei espanhola, com algumas exceções entre as quais a ordem de proteção). E explica em que consiste:
É um mecanismo através do qual o juiz, seja criminal ou nos julgados da violência contra a mulher, que são tribunais especializados criados em Espanha, em 72 horas tem que marcar uma conferência em que está presente o arguido, a vítima e os seus advogados. Nessa decisão, o juiz aplica medidas de natureza criminal e de natureza civil. Esta é a grande mais-valia desta ordem de proteção. O mesmo juiz na mesma decisão vai aplicar as medidas de coação – são muito semelhantes às nossas – e simultaneamente vai regular provisoriamente o poder paternal, a guarda, a pensão de alimentos e a atribuição da casa de morada de família.”.
A decisão é válida por 30 dias, que podem ser prorrogados por mais 30.
Em Portugal, embora as leis vão no sentido da imediata comunicação por parte do MP (Ministério Público) ao Tribunal de Família, demora-se muito mais que 72 horas e não é o mesmo juiz que decide. A eficácia decorre da rapidez e da simultaneidade. Por exemplo, aplicar medida de proibição de contacto com a vítima e não regular imediatamente o poder paternal cria ineficácia por desfasamento. Pensa que até nem são precisas grandes alterações na lei, como explica:
São medidas sempre provisórias e não vejo qualquer problema em serem aplicadas por um juiz de instrução criminal. As medidas de coação o juiz já as aplica, as de natureza civil visam proteger a vítima e evitar situações muito complicadas. O agressor pode considerar que continua a ter direito a ver os filhos, por estar autorizado, e vai a casa da mulher buscá-los. O juiz pode também não suspender as visitas mas sim regulamentar quem é que vai entregar os menores ao pai. Pode ser outra pessoa da família, mas fica regulado. Depois há questões práticas como saber onde a vítima vai viver, isto é muito importante.”.
E denuncia a insuficiência de comunicação e a burocracia:
O MP até pode comunicar logo, mas será outro MP, no Tribunal de Família, a receber e haverá ainda outro juiz para decidir. Isto é fácil resolver e não implica sequer a criação de tribunais especializados. Não é necessário. Aliás, em Espanha, nos sítios onde não há julgados de violência de género estas medidas são aplicadas pelo juiz de turno.”.
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Sobre a necessidade de tribunais especializados nesta matéria, pensa não se dever ir por aí:
Acho que os tribunais criminais podem julgar crimes de violência doméstica. Não vejo vantagem em criar tribunais ainda mais especializados que implicam desde logo uma alteração na Constituição. Não me parece que seja por aí que a violência doméstica irá diminuir. Em Espanha [que os tem] não diminuiu.”.
Também não se resolve o problema colocando os condenados mais tempo na prisão. Com efeito, em Espanha as penas não têm uma moldura superior, mas a suspensão é muito inferior (Lá é 2 anos o máximo, aqui são 5). Por isso, sustenta que “a política de aumentar as penas teria algum sentido se ao aumento da punição correspondesse uma diminuição da criminalidade”, mas não corresponde, antes pelo contrário. Assim, em sua opinião, não importa discutir o aumento das penas na violência doméstica, pois não é por aí que ela diminuirá.
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Cristina Cardoso defende que a discussão para a diminuição da violência doméstica passa pela educação, que supõe ser “a única forma de resolver este flagelo social”, devendo começar na escola do 1.º ciclo e conseguir que “daqui a uma geração produza efeitos”, não pela erradicação, mas pela diminuição significativa. Mas o acento na educação implica uma reforma estrutural na sociedade. Ora, enquanto ela não acontece e não produz efeitos, não se podem deixar “as vítimas desprotegidas nem os agressores impunes”. Para tanto, há que implementar, a curto prazo, a ordem de proteção e intervir sobre os agressores. E discorre sobre este último ponto:
Os espanhóis têm vários programas para agressores e têm estatísticas disso, nós não. A reincidência em Espanha no caso de agressores que frequentaram os programas é apenas de 4%. (…) Todo o combate à violência doméstica surgiu com os movimentos feministas e sempre se defendeu que importava antes de mais proteger a vítima. (…) A questão é mais saber se uma das formas de proteger a vítima não é precisamente a intervenção sobre o agressor. (…) Se aplicamos uma pena de prisão efetiva e colocamos o agressor dois anos num estabelecimento prisional, sem qualquer programa, não podemos esperar uma alteração de comportamento da parte do agressor. Quando sair, poderá acontecer que mude de vítima. Ou não, também é muito frequente na violência doméstica as relações terminarem e depois reatarem.”.
Lamenta que não tenhamos esses programas a funcionar nos estabelecimentos prisionais:
Em Espanha os programas nasceram no âmbito prisional e passaram para o exterior. Em Portugal nasceram no meio livre, mas nunca passaram para a cadeia. Nos casos mais graves, de reincidência, não temos programas específicos para a violência doméstica em meio prisional. (…) E temos um programa que funciona em meio livre, era só adaptá-lo ao meio prisional.”.
Estes programas podem ser aplicados como medida da coação e no âmbito das sentenças, tal como podem ser condição para a suspensão provisória do processo, para a suspensão da pena de prisão ou ainda como pena acessória.
Tendo falado da intervenção sobre o agressor, passa a falar da vítima, começando por identificar dois estereótipos sobre a vítima mulher: o da vítima extremamente vulnerável (fragilizada após anos de maus tratos e sem capacidade de decisão); e o da vítima irracional (que hoje apresenta queixa e amanhã já não quer queixar-se). E a tentação, de que discorda, é decidir pela vítima. E frisa:
Em situações graves e reiteradas de violência doméstica, a vítima não tem força, mas acho que a forma de ajudar não é decidir por ela. É ajudá-la, empoderá-la, a ganhar a força que perdeu e a decidir por ela [por si própria]. Não podemos tratar as mulheres como incapazes ou menores.”.
A seguir, fala da conceção ideal de vítima que perpassa pela nossa sociedade, indicando:
É a vítima que se queixa, que se quer separar, que se divorcia, que presta depoimento. Tanto em fase de inquérito como em julgamento, que quer a condenação do agressor em pena de prisão efetiva. (…) O que acontece é que nem todas as vítimas são as ideais. As situações de violência doméstica são muito díspares. Não há uma vítima, há uma multiplicidade de vítimas e muitas não cabem neste conceito de vítima ideal.”.
E a solução passa pelo empoderamento: “ajudar a mulher com apoio psicológico”, ajudá-la “a ganhar a força que perdeu durante os anos em que foi vítima”. O crime é público, mas o sistema decide pela vítima. Entende-se que o melhor “é a vítima separar-se, depor e querer a condenação do agressor”, mas isso nem sempre funciona. E a académica juíza refere:
Mais de 50% dos julgamentos. Aliás, 98% das absolvições devem-se ao facto da vítima chegar a julgamento e não depor. Apesar de ser testemunha, tem esse direito, dada a relação conjugal, como familiar.”.
Depois, explana como se verifica tão grande diferença entres os números de denúncias/queixas, acusações e condenações, tornando-se estas de muito difícil consecução:
Sendo o crime de natureza pública, o MP inicia o processo mesmo sem queixa (…). Depois, o processo prossegue, mesmo contra a vontade da vítima. Pode dizer ‘eu quero desistir’, mas, sendo público, isso não tem qualquer efeito. Em julgamento, a vítima – sendo mulher ou mesmo ex-mulher [ex-esposa, diria eu e não ex-mulher] – vai depois dizer que não quer prestar depoimento. Na violência doméstica, o depoimento da vítima é fundamental para alicerçar uma condenação. O arguido tem o direito ao silêncio, a testemunha vítima tem direito a não prestar depoimento, e as restantes testemunhas se forem familiares, filhos ou pais, gozam do mesmo direito de não falar. Conseguir uma condenação nestes casos é muito difícil. E depois há uma absolvição que a população tem dificuldade em compreender.”.
Também não é correta a ideia de que todas as vítimas que desistem o fazem por serem coagidas pelo agressor. O problema é outro:
Há situações em que a vítima não quer a resposta do direito penal. Há muitas vítimas de violência doméstica que não querem a condenação do agressor a uma pena de prisão. Querem outra coisa. Se calhar querem que ele se trate. Uma coisa querem sempre: é não ser mais agredidas. Agora as situações da vida real são muito amplas e são mais ricas do que aquilo que o legislador conseguiu prever. Há casos em que no momento do julgamento o casal está separado e se calhar até já tem uma boa relação. A vítima pode, legitimamente, não querer a condenação do pai dos filhos. Devo respeitar a vontade da vítima.”.
Em todo o caso, “nas situações mais graves, quando saem de casa e têm acompanhamento, as vítimas depõem”. É certo que “a maioria dos casos não termina em homicídio nem em tentativa”, mas não deixa de ser grave. A violência doméstica de que se fala a maior parte das vezes “não abre os telejornais não tem armas envolvidas”.
E sustenta que a nossa legislação deve ser alterada tendo em conta um tipo especial de vítima. Com efeito, o facto de o menor assistir à violência interparental qualifica o crime do agressor, mas sem haver crime sobre o menor, do que a juíza discorda completamente, justificando:
Um menor que assiste à violência entre os pais não é uma vítima indireta. É uma vítima direta e os estudos psicológicos provam isso. Para mim, seriam dois crimes, um de violência contra a mulher e outro contra os menores. (…) As crianças são as vítimas esquecidas e não há diferença entre os menores que são agredidos em contexto de violência doméstica e os que veem a mãe ser agredida.”.
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Tem ainda uma palavra sobre a mediação penal, que existe a nível penal, mas não no âmbito da violência doméstica, e que “é adequada em muitas situações de violência doméstica e para muitas mulheres”. E esclarece:
Na mediação penal a vítima tem o lugar principal. A nível penal esquece-se a vítima – não é sequer um sujeito processual. Na mediação penal ela é central e tudo funciona à volta dela. A vontade dela é respeitada. Pode querer tentar compreender o que levava o companheiro a agredi-la, ou que ele faça um tratamento. É óbvio que nem tudo pode ser resolvido pela mediação penal. Além disso, é voluntária e exige o acordo do agressor e da vítima. Se o direito penal não resolve tudo, é tempo de começar a ver que a mediação em certas situações é uma hipótese.”.
Quanto à discussão de casos e acórdãos polémicos, acha que “os juízes fazem parte da solução”. E, sem comentar os casos em concreto, adverte:
Não se pode esperar que o direito penal resolva o problema da violência doméstica. Não se pode exigir mais do que aquilo que é capaz de dar. Os casos de que se fala são dois, três, quatro ou cinco decisões. Há milhares de sentenças e de acórdãos proferidos no âmbito da violência doméstica. Claro que devemos investir na formação dos magistrados, dos polícias, dos psicólogos. (…) Agora, o juiz não é alguém que caiu do céu e se sentou na cadeira. É um homem ou uma mulher da sociedade em que vivemos. E vai também ter os preconceitos e os pré-juízos que homens e mulheres da sociedade em que vivemos possuem. Uns mais que outros.”.
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Enfim, é de aplaudir a opção pela batalha da educação (em certa medida poética), morosa e que exige uma revolução sistémica, de mentalidades, atitudes e comportamentos, bem como a instituição da ordem de proteção, a implementação de programas de formação e de tratamento para agressores em meio prisional, a mediação penal, “que o crime de violência doméstica não seja um crime público” como outros crimes públicos, mas “um crime público atípico em que a mulher tem voz” e que não se espere que a solução se esgote no sistema penal.
Que a lucidez impere!
2019.03.21 – Louro de Carvalho

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