O Comunicado do Conselho de Ministros (CM) de hoje, dia 7 de março,
deu a conhecer que o Governo aprovou a proposta de lei que altera a supervisão
financeira em Portugal, em linha com o modelo existente a nível europeu, pela
qual se cria e regula o funcionamento do Sistema Nacional de Supervisão Financeira (SNSF) e se
reorganizam as funções atribuídas às autoridades de regulação e supervisão do
setor bancário, Banco de Portugal (BdP), dos
mercados de capitais, Comissão do Mercado de Valores
Mobiliários (CMVM), e do
setor segurador e fundos de pensões, Autoridade de
Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF).
A proposta tem como principal marca o reforço da coordenação entre as
autoridades de supervisão nacionais e a autonomização das funções de resolução
e por finalidade o aumento da eficácia da supervisão e o reforço da
estabilidade financeira. Este reforço da coordenação será assegurado
pelo CNSF (Conselho Nacional de
Supervisores Financeiros), criado em 2000, que passa também a assumir novas funções em matéria
macroprudencial, para melhor detetar e prevenir riscos sistémicos no setor
financeiro. A resolução é confiada a uma nova entidade, a Autoridade de
Resolução e Administração de Sistemas de Garantia (ARASG), com autonomia orgânica que, assim, garante a adequada segregação, como
recomendam as regras europeias. Esta entidade inclui também a gestão dos
sistemas de garantia que podem ser acionados numa medida de resolução – FdR (Fundo de Resolução), FGD (Fundo de Garantia de Depósitos) e SII (Sistema de Indemnização aos Investidores).
Esta reforma foi aprovada quase três anos e meio depois de ter sido anunciada
pelo Governo e quando a liderança do BdP está em especial destaque pelos piores
motivos.
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O super-regulador é a base das alterações, que
passarão também pelas funções do BdP e pela nomeação do governador e que gravitam
em torno do reforço dos poderes do CNSF, que passará a ser composto por 5
membros: dois representantes do BdP, mas
apenas um da CMVM e outro da ASF, sendo o quinto elemento pelo Ministério das Finanças. E, como
explicou Centeno na conferência de imprensa subsequente à sessão do CM, os supervisores partilharão
a presidência do CNSF, de forma rotativa, por períodos de um ano. A este
respeito, disse:
“Vai tornar-se rotativa a presidência do
CNSF, que vai ter responsabilidades na política macroprudencial. Não é uma
redução das responsabilidades do BdP; é uma partilha com os outros
supervisores. O que aprendemos da crise financeira é que as coisas correm
pior quando os supervisores não partilham responsabilidades. É um passo
muito significativo.”.
É no âmbito destas mudanças que serão separadas as funções de resolução
e de supervisor bancário. A autoridade de resolução e administração de
sistemas de garantia sai do âmbito de atividade do BdP, passando para uma nova
entidade criada para o efeito.
A resolução passa a ser responsabilidade de uma nova
entidade, a ARASG, com as caraterísticas apontadas no supradito comunicado do
CM. E o Ministro das Finanças esclareceu, apontando
para uma “redução nos cargos de topo” e um “alinhamento mais próximo das regras
de funcionamento dos vários supervisores”:
“Não estamos a criar novas funções no
sistema financeiro, nem novas entidades. Na realidade estamos a diminuir as
entidades que supervisionam e o número de lugares. Em particular, estamos a
reduzir o número de nomeações do Governo para essas entidades.”.
Estas alterações justificam que Centeno antecipe que não haja aumentos nas
taxas para os supervisionados, o que era um risco apontado pelos
supervisores. Apesar de não serem conhecidos pormenores, o Ministro explicou
que o financiamento do CNSF será como agora.
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De acordo com a proposta do Governo, o regulador da banca irá sofrer outras
alterações no seu funcionamento: o mandato do governador do
BdP, bem como dos administradores, será único e alargado de 5 para 7 anos. O
número de administradores passa a ter um teto máximo de 6. Até agora, governador
e membros do Conselho de Administração do BdP exercem funções pelo prazo de 5 anos, renovável uma vez;
e o Conselho de Administração atualmente é composto pelo
governador, que preside, por um ou dois vice-governadores e por 3 a 5
administradores.
O novo período de nojo para os administradores
determina que, à entrada, não possam deliberar sobre entidades com as quais
tiveram vínculos laborais nos três anos antes. À saída, este período é de dois
anos e é alargado ao BdP.
A IGF (Inspeção-Geral de Finanças) passará
também a fiscalizar a gestão financeira do BdP (ou seja, todas as ações, exceto as
relacionadas com as funções de banqueiro central). Ainda assim, Mário Centeno garantiu que “não há mudanças no quadro legal
da IGF”, acrescentando que o Governo cumpre a “independência” associada ao
banco central enquanto membro do Eurossistema.
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A reforma da supervisão financeira foi anunciada quase no início da
legislatura (dezembro de 2015) e o
processo passou por várias fases, incluindo pareceres dos supervisores. Os três
supervisores portugueses cumpriram o prazo dado pelo Governo para o envio de
comentários (até 11 de fevereiro passado), ao invés
do BCE (Banco
Central Europeu). E o Ministro
das Finanças admitiu que esse parecer continua em falta, mas desvalorizou a
questão, discorrendo:
“Ainda não recebemos o parecer
do BCE. Deixámos correr o prazo legal para que chegasse, mas estas
situações são comuns e o quadro legal europeu prevê que o processo legislativo
possa decorrer. É uma reforma trabalhada durante longuíssimos meses, iniciada
por um pedido meu a conjunto de 13 individualidades. Todos os supervisores
tiveram um trabalho muito próximo.”.
A proposta de lei agora seguirá para a Assembleia da República (AR), aonde chegará numa altura sensível para o tema, e
os partidos farão as suas apreciações e propostas de alterações, apesar de a
proposta do Governo já incorporar algumas destas opiniões.
Mário Centeno lembrou que esta reforma é aprovada numa
altura de “grande debate” sobre as questões da supervisão à banca, apontando
para a sua audição parlamentar na COMFA (Comissão de Orçamento, Finanças e
Modernização Administrativa) sobre a injeção de 1,149 milhões de euros no Novo
Banco (NB), a fazer através do FdR (Fundo de
Resolução), mas parcialmente financiada pelo
Estado. Será a segunda em dois anos e acresce aos 792 milhões de euros de 2017.
E disse o Ministro que “é muito importante que se perceba que podemos fazer
melhor”.
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As novas regras da proposta governamental de
reforma da supervisão financeira, cujo modelo tem por base o super-regulador e
cujas alterações passam também pelas funções do BdP e pela nomeação do governador, não
agradam aos
supervisores, que apontam
críticas aos poderes, responsabilidades e forma de financiamento do novo modelo, embora se mantenha a tripartição espelhada
no modelo existente, visto que o CNSF inclui representantes do BdP, da CMVM e
da ASF. Não obstante,
a par dos reguladores, que irão
partilhar a presidência deste órgão de forma rotativa e por um ano, integrá-lo-á
um administrador executivo externo nomeado pelo Ministério das Finanças; e, além
disso, é criada uma nova entidade, a ARASG, e extinto o Conselho Nacional do
Mercado de Valores Mobiliários.
Os reguladores, concordando com o reforço da partilha de informação entre
si, vincam os riscos.
Assim, a ASF, num parecer inicial, alertou para “eventuais acréscimos de complexidade,
redução de flexibilidade e aumento de encargos que a solução envolve, acusando
o Governo de não ter realizado “um diagnóstico que identifique as causas e
consequências das fragilidades da atual arquitetura do sistema de supervisão
financeira”. E Gabriela Figueiredo Dias, presidente do supervisor dos
mercados, afirmou num discurso no final de fevereiro:
“Qualquer sistema de supervisão deve assentar num
princípio de estreita cooperação entre supervisores ou entre áreas de
supervisão. Os respetivos mecanismos terão de ser tanto mais apurados quanto
mais fragmentada for a supervisão e quanto maior for a distância estabelecida
entre as diversas modalidades de supervisão (comportamental e prudencial) e os
diversos setores financeiros.”.
E, mesmo sem se referir especificamente ao assunto, a presidente da CMVM
sustentou:
“Um modelo de supervisão financeira deve assegurar em absoluto a independência dos reguladores, não só
em relação ao poder político como em relação a qualquer
possibilidade de interferência de quaisquer entidades externas ou
supervisionadas no processo de decisão do regulador”.
Já o BdP é o regulador que está menos desfavorável em relação
ao super-regulador. Em maio de 2018, o governador Carlos Costa disse, na
AR, que o reforço da coordenação dos supervisores era bem-vindo, mesmo que lhe seja
aposto nome diferente. E o seu alerta foi outro:
“Entendemos que fazemos parte de uma
arquitetura europeia e os desvios entre a nossa arquitetura e a europeia são
como os desvios entre a corrente fornecida num edifício e a que alimenta um
aparelho elétrico”.
Os ditos “desvios” face ao desenho europeu constituem a base das críticas do
BdP, sobretudo no atinente a alterações significativas às funções do banco
central português. Com efeito, as competências de supervisão e atuação sobre o
sistema financeiro como um todo, ou seja, a supervisão macroprudencial, sairiam
da esfera do BdP para um comité dentro do CNSF. Sobre esta matéria, refere o
parecer inicial do BdP, comentando o relatório do grupo de trabalho que serviu de
base à proposta do Governo:
“Segundo as orientações definidas pelo BCE
neste domínio, reconhece-se que existem benefícios em acoplar
as responsabilidades dos bancos centrais no Eurossistema à sua intervenção nas
áreas da supervisão micro e macro prudencial, o que de resto é
confirmado pelas próprias competências do BCE no MUS [Mecanismo Único de
Supervisão]”.
Indiretamente, a mudança de funções é também a base da crítica do BdP à
forma de financiamento do super-regulador. A proposta indica que o CNSF
terá recursos próprios e financiamento assegurado por contribuições dos três
supervisores, que terão liberdade de aplicar taxas aos supervisionados, e o
orçamento terá de ser aprovado pelo Ministro das Finanças.
O BdP lembra que os bancos centrais nacionais não
podem financiar entidades do setor público (devido à proibição do financiamento
monetário). Se as funções forem classificadas
como central bank tasks, não haverá qualquer problema de
incompatibilidade, mas havê-lo-ia se estas fossem transferidas para uma nova
entidade pública e classificadas como government tasks.
Também os outros dois supervisores criticam o modelo de financiamento,
focando-se nos custos para os agentes do sistema financeiro. Sustenta Gabriela
Figueiredo a este respeito:
“Qualquer alteração ao modelo de supervisão
deve orientar‐se para o objetivo de alcançar o melhor resultado possível, em
termos de eficácia e eficiência e de robustecimento das autoridades envolvidas,
com o menor custo possível imputado aos supervisionados,
devendo sempre ser selecionadas as alternativas que permitam assegurar um
determinado resultado com menos encargos”.
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Outro ponto crítico é a maior intervenção do Governo na supervisão através
do Ministério das Finanças, que é bem-vinda no respeitante à resolução da
banca, mas não tanto na escolha do administrador do CNSF. Carlos Costa considerou, na AR, que faz sentido “progredir no
sentido de institucionalização e envolvimento efetivo do Ministério das
Finanças”.
Recorde-se que a reforma da supervisão financeira
surgiu exatamente dos conflitos de interesses levantados aquando da resolução dos
bancos BES e Banif. Agora, a resolução bancária passará do BdP para um
departamento autónomo dentro do super-regulador, que é liderado pelo
administrador executivo indicado pelas Finanças. Na prática, será o Governo a
ter a última palavra em casos de medidas de resolução a bancos que tenham
impacto nas contas públicas. O BdP e a CMVM concordam com esta separação de
poderes. Porém, a ASF não quer pagar
por estas funções. Refere o parecer do supervisor dos seguros:
“Não ignorando que um processo de resolução
bancária tem efeitos diretos e indiretos nas entidades e atividades
supervisionadas pela ASF e CMVM, considera-se não ser adequado que os custos de
financiamento dessas funções, incluindo o de gestão do fundo de resolução,
sejam imputados de forma tripartida aos supervisores sem qualquer outro
elemento de ponderação para além da proporção face aos orçamentos de supervisão”.
Apesar de as linhas gerais serem conhecidas, os
pormenores da reforma da supervisão financeira serão conhecidos apenas depois de
o documento, aprovado pelo Governo, ter dado entrada na AR. O tema já esteve, antes, para ser discutido em
Conselho de Ministros, mas foi adiado, até porque o BCE não cumpriu a data de
11 de fevereiro para enviar um parecer ao Governo, ao contrário do que
aconteceu com os supervisores portugueses.
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Segundo noticiava o Jornal de Negócios do passado dia 4, a gestão financeira de todas
as ações do supervisor passará a ser fiscalizada pela Inspeção-Geral de
Finanças. Com efeito, a reforma da supervisão financeira irá, na ótica do Executivo, colocar a IGF a fiscalizar
a gestão financeira do BdP, incluindo
todas as ações de supervisão, mas excetuando as relacionadas com as funções de
banqueiro central. Na verdade, como a IGF já fiscaliza os demais serviços e
entidades públicas, o Governo pretende que passe também a fazê-lo ao BdP. Assim,
na malha das Finanças irão cair todos os contratos públicos
assinados pela instituição ainda liderada por Carlos Costa, como carros,
cartões de crédito ou subsídios. Por outro lado, todas as funções de banco
central ficam de fora, tal como acontece com o Tribunal de Contas (TdC).
Até agora, o BdP tem estatuto de pessoa coletiva de direito público, mas
goza de autonomia administrativa e financeira e de património próprio. A
alteração incluída no diploma da reforma da supervisão financeira implica uma alteração
à lei orgânica do BdP, devendo a norma referir:
“O Banco não está sujeito ao
regime de inspeção e auditoria dos serviços do Estado no que diz respeito às
matérias relativas à sua participação no desempenho das atribuições cometidas
ao Sistema Europeu de Bancos Centrais”.
Depreende-se, assim, que todas as outras matérias ficam sujeitas a esse
controlo.
O diploma da supervisão financeira que foi discutido
em Conselho de Ministros inclui a mudança em causa. Mas poderá ainda ser alterado na AR, já que o
Governo pode receber ainda o parecer do BCE.
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Enfim, não se poderá aceitar que o BdP se constitua como Estado dentro do
Estado na parte de leão da soberania financeira, sobretudo quando se torna evidente
que as suas funções de regulação e de supervisão andaram por caminhos ínvios,
fazendo vista grossa a desmandos perpetrados em instituições bancárias e tendo recorrido
a um modelo de resolução bancária, não praticada em nenhum outro país e com
excessivos custos para o sistema financeiro português, a mando da Comissão Europeia
e do BCE, onde ocupava cargo relevante um português que tinha presidido ao BdP,
tudo em prol do depauperamento do nosso sistema financeiro e a favor dos interesses
estrangeiros, nomeadamente da Espanha. Assim, não!
Também não se sabe o que pretende a ASF, que não aceita a participação equitativa
em caso de acionamento do FdR, não quer avaliar a idoneidade de administradores
das associações mutualistas que supervisiona e não teceu comentários sustentáveis
a esta reforma da supervisão financeira.
E o BCE não pode condicionar a elaboração e a aplicação das leis nos países
do euro.
2019.03.07 –
Louro de Carvalho
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