quinta-feira, 14 de março de 2019

A fuga à lei, ambígua, e o serviço a interesses interessantes…



É sobejamente conhecida a mui recente polémica em torno das avaliações de idoneidade de determinadas personalidades colocadas em lugares nevrálgicos da sociedade. Estão obviamente em causa o governador do BdP (Banco de Portugal) e o reeleito e reempossado presidente da AMMG (Associação Mutualista Montepio Geral), a maior associação mutualista do país.
Sabido que o governador do BdP não responde pelo seu desempenho numa das passadas administrações da CGD nem pelo desempenho das funções de governador do banco central perante o seu conselho de administração, que pediu, com êxito, escusa de conduzir o processo de avaliação de antigos administradores bancários, que se sujeita ao veredicto da comissão de ética do BdP e da do Banco Central Europeu (BCE) e que o Governo terá muita dificuldade em exonerar o governador do BdP –, persiste a questão da idoneidade em torno de Tomás Correia.
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O caso Tomás Correia, já badalado na campanha eleitoral para os órgãos sociais da AMMG, veio visivelmente à tona quando o BdP o condenou a pagar 1,25 milhões de euros (como aliás a outros ex-administradores) por irregularidades registadas no tempo em que foi presidente da CEMG (Caixa Montepio Geral), ora designada por Banco Montepio, entre 2009 e 2014.
Com esta decisão do supervisor da banca, colocou-se de imediato a questão da idoneidade do atual presidente da principal dona do Montepio, tendo ficado em aberto a quem incumbiria tal função. E a polémica, porque tal prerrogativa, com a recente entra em vigor do novo CAM (Código das Associações Mutualistas), deixou de ser do BdP, estalou entre o Governo, pela voz do Ministro do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, Vieira da Silva, e a ASF (Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões), pela voz do seu presidente, José Almaça.
No entendimento de Almaça, compete ao Executivo esse trabalho, ao passo que, na ótica do Governo, compete ao novo regulador. O Governo aduz a alegada clareza do articulado do novo CAM; e o presidente da ASF argumenta com o período transitório que o CAM estabelece.
Desde o primeiro momento que o regulador liderado por José Almaça entendia que o novo CAM não lhe dava atualmente poder para avaliar os requisitos de idoneidade dos órgãos sociais das grandes mutualistas, que vão passar para a sua alçada de supervisão. E justificava esse entendimento com o facto de haver um período transitório durante o qual a ASF apenas podia verificar se as mútuas estavam em convergência para o novo regime de supervisão e que, só depois de superado este período de transição, é que eram plenos poderes da ASF. E alegava:
O período transitório é de convergência e é para que as associações mutualistas convirjam para o setor segurador, que se aproximem daquilo que é o setor segurador. Naturalmente que o regime a aplicar, se é para convergir para o setor segurador, é o do setor segurador.”.
Almaça sempre disse que é à tutela, nomeadamente ao Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social que incumbia a competência de avaliar Tomás Correia. Já o ministério de Vieira da Silva empurrou essa responsabilidade para a ASF. Perante o impasse, foram várias as críticas a ambos. E, neste caso, 7 de março, o PSD chegou a questionar a cumplicidade do Governo do PS e Tomás Correia.
Ouvido no Parlamento,  Almaça recusou estar a fugir às suas responsabilidades e esclareceu que, se tomasse alguma decisão relativamente à idoneidade de Tomás Correia estaria a desrespeitar a lei. Adiantou o regulador das seguradoras que vai aplicar as mesmas regras a que submete o setor segurador na hora de avaliar a idoneidade de Correia. E apontou que isso “inclui as avaliações de idoneidade dos órgãos sociais” e tudo, “mas só ao fim de 12 anos”.
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Para lá da gravitação de amigos em torno de Tomás Correia, que lhe juram reiterada e efetiva fidelidade, foi criado à sua volta um vácuo regulatório que o protege de ser corrido da AMMG: o BdP deixou de o poder avaliar; a ASF diz que só o pode fazer daqui a 12 anos; e a tutela é criticada por vir andando há meses a assobiar para o lado, chegando ao cúmulo de ter defendido que 200 milhões de euros de dinheiro da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) poderiam ser canalizados para o banco de Tomás Correia.
Escreve o Observador que Tomás Correia gosta de se apelidar de “ratinho da lezíria” para sublinhar as suas origens humildes. Só que de “ratinho” pouco ou nada tem hoje o que foi o homem forte do Montepio e que logrou montar à sua volta uma teia de cumplicidades de gente bem colocada que o protege, independentemente das suspeições e condenações. Alguns dizem que é, antes, “um gato com sete vidas”, pois, cada vez que está em queda iminente, “há sempre um político, um regulador, um maçom, um ministro, um padre para o amparar na queda”. Com efeito, na sua órbita continuam a gravitar políticos, figuras públicas e eclesiásticas, que criaram à volta dele um buraco negro regulatório que o protege de ser corrido do Montepio.
Apesar das crescentes tensões, Tomás Correia não mostra sinais de querer deixar a liderança da AMMMG. O dirigente da mutualista garante que, ao invés do que indicou o Governo, não irá haver qualquer avaliação da sua idoneidade, ao que o padre Vítor Melícias, presidente da assembleia geral da associação mutualista, acrescentou que não é um secretariozeco ou um qualquer ministro que vai afastar os órgãos sociais”. Efetivamente, na reunião do conselho geral do dia 12, Correia passou a mensagem de absoluta tranquilidade em relação à permanência no cargo, garantindo que está confiante de que não haverá qualquer avaliação de idoneidade. Isto, segundo fonte conhecedora do processo, que frisou que o presidente da mutualista considerou a contraordenação do BdP um “ataque miserável” à sua liderança. A propósito, Correia entregou aos conselheiros o teor duma defesa contra essa contraordenação, tendo já anunciado que irá recorrer.
Por sua vez, no final do encontro, o padre Vítor Melícias reforçou:
“Isto não pode ser assim, os órgãos sociais da Associação Mutualista foram legitimamente eleitos e não é nenhum secretariozeco nem nenhum ministro que vão retirar do cargo pessoas democraticamente escolhidas pelos associados”.
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No passado dia 7, perante o vazio legal que o próprio Governo criou e acabou por reconhecer com o novo CAM, o Primeiro-Ministro prometeu, no Parlamento, fazer aprovar em conselho de ministros uma “norma clarificadora” que esclareça que cabe à ASF avaliar a idoneidade do presidente da mutualista, retirando àquele supervisor “qualquer álibi” para fazer aquilo que lhe compete, “que também é avaliar a idoneidade de quem gere as associações mutualistas e, no caso concreto, o Dr. Tomás Correia”. Ficava a dúvida sobre se uma “norma clarificadora” seria suficiente e daria segurança jurídica à ASF para avaliar e, eventualmente, retirar a idoneidade a Correia, como esperam muitos observadores, incluindo alguns candidatos às últimas eleições para a mutualista. 
Segundo o Público on line, de 14 de março, a iniciativa segue-se à tomada de posição do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que defendeu a necessidade de esclarecer qual a entidade que deve fiscalizar as mutualistas, e a partir de que momento.
Por seu turno, José Almaça disse no Parlamento que a ASF aguarda pela norma interpretativa que o Governo anunciou que ia redigir e publicar para decidir depois como vai atuar no caso da idoneidade de Tomás Correia. E adiantou que não vai fugir às responsabilidades, assegurando que vai cumprir a lei. Mas, neste momento, a lei em vigor não lhe dá poder para avaliar a idoneidade de nenhum membro das mutualistas que vão passar para a alçada da ASF. E desafiou: Se querem que eu avalie já, alterem a lei.
O Código das Associações Mutualistas e o regime jurídico do setor segurador têm regras diferentes no atinente aos requisitos de idoneidade dos órgãos sociais das entidades supervisionadas, o que tem gerado várias interpretações quanto o que poderá acontecer a Tomás Correia – isto para lá das dúvidas sobre quem pode avaliar a idoneidade neste momento: o regulador ou o Governo. E José Almaça foi claro neste assunto.
Quer isto dizer que, quando a ASF for avaliar a idoneidade de Tomás Correia, vai ter em conta o que vem no regime de supervisão aplicado às seguradoras, que determina as seguintes condições para chumbar algum nome:
A acusação, a pronúncia ou a condenação, em Portugal ou no estrangeiro, por crimes contra o património, crimes de falsificação e falsidade, crimes contra a realização da justiça, crimes cometidos no exercício de funções públicas, crimes fiscais, crimes especificamente relacionados com o exercício de uma atividade financeira e com a utilização de meios de pagamento e, ainda, crimes previstos no Código das Sociedades Comerciais”.
Ora, hoje, dia 14 de março, como refere comunicado Conselho de Ministros adrede divulgado e a conferência de imprensa (em que não esteve presente o ministro que tutela as mutualistas) subsequente à sessão deste órgão de soberania, foi aprovado o decreto-lei que clarifica o regime transitório de supervisão das associações mutualistas, com a seguinte justificação:
Perante algumas dúvidas sobre o atual quadro jurídico por parte dos agentes do setor, o diploma agora aprovado procede à interpretação autêntica de alguns pontos daquela legislação, nomeadamente no que respeita aos poderes da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões e, em concreto, à competência desta entidade reguladora para apreciar a qualificação profissional, a idoneidade e eventuais incompatibilidades ou impedimentos dos titulares dos órgãos sociais das associações mutualistas abrangidas pelo período transitório”.
E, como consta da nota divulgada na página web da Presidência da República, “considerando essencial o aditamento efetuado”, o Presidente da República promulgou aquele diploma do Governo que vem clarificar “o regime transitório de supervisão das associações mutualistas”.
Fica, assim, desfeito o impasse na avaliação da idoneidade de Tomás Correia, pois o novel diploma obriga o regulador dos seguros examinar já as condições de idoneidade do presidente da AMMG que foi recentemente condenado pelo BdP por irregularidades em que incorreu quando era presidente do Banco Montepio. Além disso, diga-se, em abono da verdade, que tem mais um processo de contraordenação a correr no BdP por causa de infrações na lei de branqueamento de capitais e está a ser investigado pelo Ministério Público por causa do Finibanco Angola.
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O comentário do padre Melícias, que já foi presidente do Montepio (e da AMMG) de 1983 a 1988 e agora é presidente da AMMG há muito tempo, merece algum reparo. A eleição democrática dos órgãos sociais duma agremiação, independentemente de ela ter sido totalmente lisa ou não o ter eventualmente sido, não pode ser uma capa sob a qual possam ficar tapadas eventuais irregularidades, erros, ilícitos contraordenacionais ou mesmo ilícitos criminais. Ninguém está acima do código civil, muito menos acima do código penal. Ademais, além da responsabilidade civil ou da criminal que lhes seja imputada, os eleitos podem perder o mandato e os nomeados podem ser exonerados. Depois, os eleitos e os nomeados merecem respeito como pessoas que são e como titulares de órgãos do poder soberano ou do poder autárquico para os quais foram eleitos direta ou indiretamente.
Ora quem conhece o padre Melícias estranha que fale assim de ministro ou de secretário de Estado. Com efeito, se os deputados são eleitos democraticamente, os membros do Governo são nomeados por um titular do poder político que foi eleito democraticamente (o Presidente da República), que ouve os partidos com assento na Assembleia da República, cujos elementos foram eleitos democraticamente e, graças ao sistema de representação proporcional, são a voz institucional das diversas tendências políticas que emergem da sociedade portuguesa. Por isso, têm legitimidade para praticar os atos que se encaixam no elenco das suas competências. Tanto assim é que o padre Melícias aceitou com postura cívica a sua nomeação para provedor da SCML e a sua exoneração, tendo esta acontecido para dar lugar a Fernanda Mota Pinto. Ora, os ministros que procederam à nomeação ou à exoneração tinham legitimidade de democrática.    
Por isso, bem podia ter escapado à pena de Pedro Sousa carvalho, que em artigo no ECO lembra que, há 10 anos, a par de Manuel Alegre (em campanha para as presidenciais, mas sem saber que estava a participar numa campanha publicitária para o BPP) e mais 60 figuras da sociedade portuguesa, Melícias entrou a dar a cara pelos produtos do BPP que estavam a ser promovidos pela agência BBDO  
Os textos, segundo o articulista, foram publicados em jornais, com anotações à margem feitas pelo próprio BPP a promover os seus produtos”, nomeadamente o produto do retorno absoluto “vendido como se de um depósito a prazo se tratasse”. E muitos foram enganados e ficaram sem qualquer palavra de consolo a posteriori.
No seu texto publicitário, Melícias escrevia que o dinheiro
É apenas um instrumento, cheio de tantos perigos, como de potencialidades para fazer o bem e impulsionar o desenvolvimento da humanidade”.
Porém, o termo “potencialidades” gerou uma nota à margem do BPP:
Com a nossa Estratégia de Retorno Absoluto, que garante valorizações reais e potenciais muito competitivas e a conservação do capital investido, são bem mais as potencialidades do que os perigos”. 
Agora, o franciscano defende um outro banco e a sua principal dona – o Montepio e a Associação Mutualista – mesmo depois de Tomás Correia ter sido condenado pelo BdP “por, entre outras coisas, realizar operações ilegais para esconder créditos em incumprimento e mesmo depois de se saber “que Tomás Correia é arguido pelo MP (Ministério Público) e suspeito, entre outras coisas, de ter recebido 1,5 milhões do construtor civil José Guilherme”.
Obviamente, como o padre Melícias sustentou no conselho geral da AMMG, uma decisão condenatória só o é depois de transitada em julgado. Todavia, não podem as entidades supervisoras ficar impedidas torpedeadas de promover as necessárias avaliações e de tomar as consequentes decisões administrativas e disciplinares que sejam da sua competência – o que não impede do recurso aos tribunais, que terão a última palavra. Porém, há situações em que, pelo interesse público, os supervisores devem antecipar decisões que o poder judicial sancionará ou não, consoante a força e a evidência das provas.      
Em todo o caso, é enigmático verificar como o padre Melícias, com o que se sabe de Correia, o continua a apoiar e como é que tantas figuras públicas acham normal que alguém condenado pelo BdP continue a ser responsável por gerir as poupanças de 620 mil portugueses.
2019.03.14 – Louro de Carvalho

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