É sobejamente conhecida a mui recente polémica
em torno das avaliações de idoneidade de determinadas personalidades colocadas
em lugares nevrálgicos da sociedade. Estão obviamente em causa o governador do BdP
(Banco de Portugal) e o reeleito e reempossado presidente da AMMG (Associação Mutualista Montepio Geral), a maior
associação mutualista do país.
Sabido que o governador do BdP não responde
pelo seu desempenho numa das passadas administrações da CGD nem pelo desempenho
das funções de governador do banco central perante o seu conselho de
administração, que pediu, com êxito, escusa de conduzir o processo de avaliação
de antigos administradores bancários, que se sujeita ao veredicto da comissão
de ética do BdP e da do Banco Central Europeu (BCE) e que o Governo terá muita
dificuldade em exonerar o governador do BdP –, persiste a questão da idoneidade
em torno de Tomás Correia.
***
O caso Tomás Correia, já badalado na campanha
eleitoral para os órgãos sociais da AMMG, veio visivelmente à tona quando o BdP o condenou a pagar
1,25 milhões de euros (como
aliás a outros ex-administradores) por irregularidades registadas no tempo em que foi
presidente da CEMG (Caixa
Montepio Geral), ora
designada por Banco Montepio, entre 2009 e 2014.
Com esta
decisão do supervisor da banca, colocou-se de imediato a questão da idoneidade
do atual presidente da principal dona do Montepio, tendo ficado em aberto a quem
incumbiria tal função. E a polémica, porque tal prerrogativa, com a
recente entra em vigor do novo CAM (Código das Associações Mutualistas), deixou de ser do BdP, estalou
entre o Governo, pela voz do Ministro do Trabalho, da Solidariedade e da
Segurança Social, Vieira da Silva, e a ASF (Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos
de Pensões), pela voz do
seu presidente, José Almaça.
No
entendimento de Almaça, compete ao Executivo esse trabalho, ao passo que, na
ótica do Governo, compete ao novo regulador. O Governo aduz a alegada clareza
do articulado do novo CAM; e o presidente da ASF argumenta com o período
transitório que o CAM estabelece.
Desde
o primeiro momento que o regulador liderado por José Almaça entendia que o novo
CAM não lhe dava atualmente poder para avaliar os requisitos de idoneidade dos
órgãos sociais das grandes mutualistas, que vão passar para a sua alçada de
supervisão. E justificava esse entendimento com o facto de haver um período transitório
durante o qual a ASF apenas podia verificar se as mútuas estavam em
convergência para o novo regime de supervisão e que, só depois de superado este
período de transição, é que eram plenos poderes da ASF. E alegava:
“O
período transitório é de convergência e é para que as associações mutualistas
convirjam para o setor segurador, que se aproximem daquilo que é o setor
segurador. Naturalmente que o regime a aplicar, se é para convergir para o
setor segurador, é o do setor segurador.”.
Almaça
sempre disse que é à tutela, nomeadamente ao Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social que
incumbia a competência de avaliar Tomás Correia. Já o ministério de Vieira da
Silva empurrou essa responsabilidade para a ASF. Perante o impasse, foram várias
as críticas a ambos. E, neste caso, 7 de março, o PSD chegou a questionar a
cumplicidade do Governo do PS e Tomás Correia.
Ouvido
no Parlamento, Almaça recusou estar a fugir às suas responsabilidades e
esclareceu que, se tomasse alguma decisão relativamente à idoneidade de Tomás
Correia estaria a desrespeitar a lei. Adiantou o regulador das seguradoras que vai
aplicar as mesmas regras a que submete o setor segurador na hora de avaliar a
idoneidade de Correia. E apontou que isso “inclui as avaliações de idoneidade
dos órgãos sociais” e tudo, “mas só ao fim de 12 anos”.
***
Para lá da gravitação de amigos em torno de Tomás Correia, que lhe juram
reiterada e efetiva fidelidade, foi criado à sua volta um vácuo
regulatório que o protege de ser corrido da AMMG: o BdP deixou de o
poder avaliar; a ASF diz que só o pode fazer daqui a 12 anos; e a tutela é
criticada por vir andando há meses a assobiar para o lado, chegando ao cúmulo
de ter defendido que 200 milhões de euros de dinheiro da Santa Casa da
Misericórdia de Lisboa (SCML) poderiam
ser canalizados para o banco de Tomás Correia.
Escreve o Observador que Tomás
Correia gosta de se apelidar de “ratinho da lezíria” para sublinhar as suas
origens humildes. Só que de “ratinho” pouco ou nada tem hoje o que foi o homem
forte do Montepio e que logrou montar à sua volta uma teia de cumplicidades de
gente bem colocada que o protege, independentemente das suspeições e
condenações. Alguns dizem que é, antes, “um gato com sete
vidas”, pois, cada vez que está em queda iminente, “há sempre um político, um
regulador, um maçom, um ministro, um padre para o amparar na queda”. Com
efeito, na sua órbita continuam a gravitar políticos, figuras públicas e
eclesiásticas, que criaram à volta dele um buraco negro regulatório que o
protege de ser corrido do Montepio.
Apesar
das crescentes tensões, Tomás Correia não mostra sinais de querer deixar a
liderança da AMMMG. O dirigente da mutualista garante que, ao invés do que
indicou o Governo, não irá haver qualquer avaliação da sua idoneidade, ao que o
padre Vítor Melícias, presidente da assembleia geral da associação mutualista,
acrescentou que “não é um secretariozeco ou um qualquer ministro que vai afastar os órgãos sociais”. Efetivamente,
na reunião do conselho geral do dia 12, Correia passou a mensagem de absoluta tranquilidade em relação à permanência
no cargo,
garantindo que está confiante de que não haverá qualquer avaliação de
idoneidade. Isto, segundo fonte conhecedora do processo, que frisou que o
presidente da mutualista considerou a contraordenação do BdP um “ataque miserável” à sua liderança. A propósito, Correia entregou aos
conselheiros o teor duma defesa contra essa contraordenação, tendo já anunciado
que irá recorrer.
Por
sua vez, no final do encontro, o padre Vítor Melícias reforçou:
“Isto não pode ser assim, os órgãos sociais da
Associação Mutualista foram legitimamente eleitos e não é nenhum ‘secretariozeco’ nem nenhum ministro que vão retirar do cargo
pessoas democraticamente escolhidas pelos associados”.
***
No passado dia 7, perante o vazio legal que o próprio Governo criou e
acabou por reconhecer com o novo CAM, o Primeiro-Ministro prometeu, no Parlamento, fazer aprovar em conselho de ministros uma “norma
clarificadora” que esclareça que cabe à ASF avaliar a idoneidade do
presidente da mutualista, retirando àquele supervisor “qualquer álibi” para fazer
aquilo que lhe compete, “que também é avaliar a idoneidade de quem gere as
associações mutualistas e, no caso concreto, o Dr. Tomás Correia”. Ficava a dúvida sobre se uma “norma clarificadora”
seria suficiente e daria segurança jurídica à ASF para avaliar e, eventualmente,
retirar a idoneidade a Correia, como esperam muitos observadores, incluindo
alguns candidatos às últimas eleições para a mutualista.
Segundo o Público on line, de 14
de março, a iniciativa segue-se à tomada de
posição do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que defendeu a
necessidade de esclarecer qual a entidade que deve fiscalizar as mutualistas, e
a partir de que momento.
Por seu turno, José Almaça disse no Parlamento que a
ASF aguarda pela norma interpretativa que o Governo anunciou que ia redigir e publicar
para decidir depois como vai atuar no caso da idoneidade de Tomás Correia. E adiantou
que não vai fugir às responsabilidades, assegurando que vai cumprir a lei. Mas,
neste momento, a lei em vigor não lhe dá poder
para avaliar a idoneidade de nenhum membro das mutualistas que vão passar para
a alçada da ASF. E desafiou: “Se querem que eu avalie
já, alterem a lei”.
O Código das Associações
Mutualistas e o regime jurídico do setor
segurador têm regras diferentes no atinente aos requisitos
de idoneidade dos órgãos sociais das entidades supervisionadas, o que tem
gerado várias interpretações quanto o que poderá acontecer a Tomás Correia –
isto para lá das dúvidas sobre quem pode avaliar a idoneidade neste momento: o
regulador ou o Governo. E José Almaça foi claro neste assunto.
Quer
isto dizer que, quando a ASF for avaliar a idoneidade de Tomás Correia, vai ter
em conta o que vem no regime de supervisão aplicado às seguradoras, que
determina as seguintes condições para chumbar algum nome:
“A
acusação, a pronúncia ou a condenação, em Portugal ou no estrangeiro, por
crimes contra o património, crimes de falsificação e falsidade, crimes contra a
realização da justiça, crimes cometidos no exercício de funções públicas,
crimes fiscais, crimes especificamente relacionados com o exercício de uma
atividade financeira e com a utilização de meios de pagamento e, ainda, crimes
previstos no Código das Sociedades Comerciais”.
Ora, hoje,
dia 14 de março, como refere comunicado Conselho de Ministros adrede divulgado
e a conferência de imprensa (em que não esteve presente o ministro que tutela as mutualistas) subsequente à sessão deste órgão de
soberania, foi aprovado o decreto-lei que clarifica o regime transitório de
supervisão das associações mutualistas, com a seguinte justificação:
“Perante algumas dúvidas sobre o atual
quadro jurídico por parte dos agentes do setor, o diploma agora aprovado
procede à interpretação autêntica de alguns pontos daquela legislação,
nomeadamente no que respeita aos poderes da Autoridade de Supervisão de Seguros
e Fundos de Pensões e, em concreto, à competência desta entidade reguladora
para apreciar a qualificação profissional, a idoneidade e eventuais incompatibilidades
ou impedimentos dos titulares dos órgãos sociais das associações mutualistas
abrangidas pelo período transitório”.
E,
como consta da nota divulgada na página web
da Presidência da República, “considerando
essencial o aditamento efetuado”, o Presidente
da República promulgou aquele diploma do Governo que vem clarificar “o
regime transitório de supervisão das associações mutualistas”.
Fica,
assim, desfeito o impasse na avaliação da idoneidade de Tomás Correia, pois o novel diploma obriga o
regulador dos seguros examinar já as condições de idoneidade do presidente
da AMMG que foi recentemente condenado pelo BdP por irregularidades
em que incorreu quando era presidente do Banco Montepio. Além disso, diga-se,
em abono da verdade, que tem mais um processo de contraordenação a correr no BdP
por causa de infrações na lei de branqueamento de capitais e está a ser investigado pelo Ministério Público por causa do
Finibanco Angola.
***
O comentário do padre Melícias, que já foi presidente
do Montepio (e da AMMG)
de 1983 a 1988 e agora é presidente da AMMG há muito tempo, merece algum
reparo. A eleição democrática dos órgãos sociais duma agremiação, independentemente
de ela ter sido totalmente lisa ou não o ter eventualmente sido, não pode ser
uma capa sob a qual possam ficar tapadas eventuais irregularidades, erros,
ilícitos contraordenacionais ou mesmo ilícitos criminais. Ninguém está acima do
código civil, muito menos acima do código penal. Ademais, além da
responsabilidade civil ou da criminal que lhes seja imputada, os eleitos podem perder
o mandato e os nomeados podem ser exonerados. Depois, os eleitos e os nomeados
merecem respeito como pessoas que são e como titulares de órgãos do poder
soberano ou do poder autárquico para os quais foram eleitos direta ou
indiretamente.
Ora quem conhece o padre Melícias estranha que fale
assim de ministro ou de secretário de Estado. Com efeito, se os deputados são
eleitos democraticamente, os membros do Governo são nomeados por um titular do
poder político que foi eleito democraticamente (o Presidente da
República), que ouve
os partidos com assento na Assembleia da República, cujos elementos foram eleitos
democraticamente e, graças ao sistema de representação proporcional, são a voz institucional
das diversas tendências políticas que emergem da sociedade portuguesa. Por
isso, têm legitimidade para praticar os atos que se encaixam no elenco das suas
competências. Tanto assim é que o padre Melícias aceitou com postura cívica a
sua nomeação para provedor da SCML e a sua exoneração, tendo esta acontecido
para dar lugar a Fernanda Mota Pinto. Ora, os ministros que procederam à nomeação
ou à exoneração tinham legitimidade de democrática.
Por isso, bem podia ter escapado à pena de Pedro
Sousa carvalho, que em artigo no ECO
lembra que, há 10 anos, a par de Manuel Alegre (em campanha para as presidenciais,
mas sem saber que estava a participar numa campanha publicitária para o BPP) e mais 60 figuras da sociedade portuguesa, Melícias entrou a dar a cara pelos
produtos do BPP que estavam a ser promovidos pela agência BBDO
“Os textos, segundo o articulista,
foram publicados em jornais, com anotações à margem feitas pelo próprio BPP a
promover os seus produtos”, nomeadamente o produto do retorno absoluto “vendido como se de um depósito a prazo se
tratasse”. E muitos foram enganados e ficaram sem qualquer palavra de consolo
a posteriori.
No seu texto publicitário, Melícias escrevia que o dinheiro
“É apenas um instrumento, cheio de tantos
perigos, como de potencialidades para fazer o bem e impulsionar o
desenvolvimento da humanidade”.
Porém, o termo “potencialidades” gerou uma nota à margem do BPP:
“Com a nossa Estratégia de Retorno Absoluto,
que garante valorizações reais e potenciais muito competitivas e a conservação
do capital investido, são bem mais as potencialidades do que os perigos”.
Agora, o franciscano defende um outro banco e a sua principal
dona – o Montepio e a Associação Mutualista – mesmo depois de Tomás Correia ter sido condenado pelo BdP “por,
entre outras coisas, realizar operações ilegais para esconder créditos em
incumprimento e mesmo depois de se saber “que Tomás Correia é arguido pelo MP (Ministério
Público) e suspeito, entre outras coisas, de
ter recebido 1,5 milhões do construtor civil José Guilherme”.
Obviamente, como o padre Melícias sustentou no conselho geral da AMMG, uma decisão
condenatória só o é depois de transitada em julgado. Todavia, não podem as
entidades supervisoras ficar impedidas torpedeadas de promover as necessárias avaliações
e de tomar as consequentes decisões administrativas e disciplinares que sejam
da sua competência – o que não impede do recurso aos tribunais, que terão a
última palavra. Porém, há situações em que, pelo interesse público, os
supervisores devem antecipar decisões que o poder judicial sancionará ou não,
consoante a força e a evidência das provas.
Em todo o caso, é enigmático verificar como o padre
Melícias, com o que se sabe de Correia, o continua a apoiar e como é que tantas figuras públicas acham normal que
alguém condenado pelo BdP continue a ser responsável por gerir as poupanças de
620 mil portugueses.
2019.03.14
– Louro de Carvalho
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