Num destes dias, houve
jornais que fizeram capa com a “falta de
memória” do governador do BdP (Banco de
Portugal). Não é a
primeira vez que tal hiperdose de amnésia comparece em CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), tendo sido o caso de Zeinal Bava o mais mediático, a ponto de alguns
observadores passarem a falar do do bavismo.
A audição do governador do BdP na presente CPI à CGD (Caixa
Geral de Depósitos)
preenche parte significativa das primeiras páginas dos jornais do passado dia
28. Para lá das genéricas falhas ou lacunas de memória, são de destacar dois
tipos de amnésia: a referente aos “créditos da Caixa”, como deixa estampado
o Correio da Manhã; e a atinente
à exposição do banco público ao BCP, como atesta o Jornal de Negócios.
Na audição de 5 horas, Mariana Mortágua confrontou
Carlos Costa com os financiamentos da CGD a duas autoestradas em Espanha, no âmbito
da sua responsabilidade pelo banco estatal no país vizinho, tendo obtido como
resposta o invariável “não tenho memória”.
Porém, a resposta invariável não se mostrou imbatível à ironia da deputada
bloquista, que inferiu ter o Governador boa memória para as operações que derem
lucros, mas uma memória fraca para aquelas que resultaram em prejuízos.
Foi, com efeito, Mariana Mortágua quem confrontou Carlos
Costa com o tema: o BdP já sabia em 2011 quais eram os grandes créditos
problemáticos para a CGD, o que não fez travar nomeações de antigos
administradores como fez a auditoria da EY. Disse a deputada:
“Eu também achava que o
relatório da EY tinha sido decisivo para estas avaliações [de nomes para
cargos], até que vou procurar nos documentos enviados ao Parlamento e encontro
uma auditoria do Banco de Portugal de 2011”.
E, citando passagens daquela auditoria de 2011, revelou ter
encontrado informação “sobre os contratos mais precisa e minuciosa” do que na
EY quanto aos grandes devedores da CGD, como Joe Berardo, a Investifino,
o Grupo Espírito Santo ou o grupo Goes Ferreira, e fez várias críticas à inação
do supervisor face ao que já sabia há 8 anos. E Costa respondeu com ironia:
“Felizmente, a deputada está a
dar ao Banco de Portugal o mérito de ter feito a auditoria e de ter detetado as
situações”.
Obviamente os deputados riram. Mas não foi este o único
momento em que tal sucedeu. Assim, quando o governador foi confrontado com o
seu envolvimento nos grandes e problemáticos créditos para a CGD, disse não ter nos seus registos nem na memória averbado
a participação nas reuniões que decidiram estas operações. Sabe-se lá porquê!
Outros temas levantados na audição foram: o monte comprado a Armando Vara, que Carlos Costa disse ter sido adquirido
por “procuração”, pois não estava então em Lisboa; e o momento do pedido de escusa, que
não foi em novembro de 2018, mas no início de 2017, “sempre que a questão se
colocou”. Sobre a escusa, rejeitou que signifique a sua implicação pela
auditoria, afirmando ter-se afastado das decisões para a “reforçar a qualidade
da decisão” em termos da perceção pública e disse que os deputados “não sabem o
que é a supervisão”.
A última divergência entre a CPI e o governador incidiu no
que os deputados chamaram de “ficheiros secretos”,
ou seja, o relatório Costa Pinto (documento do então presidente da comissão de auditoria João
Costa Pinto com a ajuda da BCG) sobre a atuação do BdP no caso do BES e que Carlos Costa se recusa a
enviar à AR. Aí, reiterou a asserção de que não iria enviar o documento (que terá apontado falhas à atuação do
supervisor em relação ao BES), alegando que “é um documento interno” para “reflexão do governador” e
protegido “pelas regras do sistema dos bancos centrais” que visam “salvaguardar
a independência da supervisão”.
***
Como foi dito, não é a primeira vez que alguém, numa CPI
à banca, se escuda na falta de memória, alegadamente por muitos serem chamados
a depor sobre factos ocorridos há s anos.
Assim, à CPI ao Banif, Vítor Constâncio, o anterior
governador do BdP, que tinha a excecional prerrogativa de poder responder aos
deputados por escrito por então ser vice-presidente do BCE, enviou uma carta em
que aduzia ter uma memória “muito lacunar” sobre o que aconteceu no banco.
Referia o ilustre administrador:
“Deixei de representar a instituição em junho
de 2010, não trouxe comigo qualquer documentação propriedade do BdP e não tenho
naturalmente direito a solicitar qualquer informação neste momento. Toda a memória institucional está na posse do BdP e a minha
memória dos poucos assuntos relativos ao Banif que foram apreciados no Conselho
de Administração, passados tantos anos, é naturalmente muito lacunar.”.
Agora, que já abandonou o cargo internacional, esteve
no dia 28 a falar presencialmente à Assembleia da República (AR) sobre o papel que teve na supervisão da CGD, que deu
créditos considerados ruinosos numa altura em que Constâncio era governador do
BdP.
Logo no início, já avisava os deputados:
“Não tenho muito mais a acrescentar depois
do que disse nas respostas por escrito que dei na primeira comissão”.
Mesmo assim, a audição acabou por ser a mais longa das
três que se realizaram na última semana. É um velho
conhecido das lides parlamentares, não só porque foi político (liderou o PS entre 1986-1989), como já tinha sido chamado
anteriormente para prestar declarações sobre a atuação do BdP em casos como o
BPN e o BES. Aliás, já lá tinha sido chamado em 2012 por causa da
nacionalização do BPN.
Ao invés de Costa, que tentou proteger-se das críticas e
acusações, Constâncio chegou ali como “alguém
que já passou à história”. Assim, tornando-se-lhe fácil reconhecer falhas,
disse:
“Não sinto que tudo correu mal,
mas decididamente que houve falhas em relação a alguns aspetos da supervisão,
mas não foi só em Portugal, mas em todos os países europeus”.
Os deputados quiseram colocá-lo na pele de corresponsável das
perdas da CGD, o que Vítor Constâncio sempre recusou a assumir pessoalmente. Disse que era genericamente o responsável máximo do BdP,
mas vincou:
“Há que fazer uma distinção entre o que é a
participação pessoal ou não, o que é uma responsabilidade genérica de uma
instituição. Numa grande organização, o presidente nunca é informado de tudo.
Não é da responsabilidade de gestores de topo, sobretudo de quem não tem a
responsabilidade direta da supervisão.”.
Admitindo a possibilidade de atos ilícitos, mas duvidando de
que tenham existido, lembrou que “a CGD sempre foi uma instituição que nunca deu muitas preocupações”
ao BdP. Para o assegurar, socorreu-se de vários indicadores – lucros de biliões
de euros, taxa de rentabilidade mais alta do mercado, rating de grande qualidade… – aduzindo que veio a
crise e foi a “explosão geral” no crédito malparado que afetou todo o setor
financeiro.
Os deputados tentaram puxar pela memória de Vítor Constâncio
sobre os alertas de Almerindo Marques, antigo administrador da CGD, que lhe
enviou duas cartas a denunciar operações irregulares e lesivas para o banco
estatal. Mas o antigo governador do BdP afirmou:
“Se a carta existiu, haverá registo no Banco
de Portugal. Não tenho ideia dessa carta. Não tenho obrigação de ter memória de
todas as cartas, era impossível.”.
Mais tarde, ao ser novamente confrontado com o tema, disse
lembrar-se do que lhe transmitiu o seu vice-governador (que tinha o pelouro da supervisão) e afirmou que a resposta que obteve é de que “as operações eram legais”. Ora, sendo operações
legais, o supervisor não podia impedi-las. E chegou a responder por cima de uma
intervenção de Mariana Mortágua:
“É a lei, é a lei, é a lei!”.
***
Porém, o caso mais
mediático foi o de Zeinal Bava em fevereiro de 2015.
Com efeito, foi largamente badalado o que se passou
com o antigo presidente da PT na sua prestação na CPI ao BES. Em 6 horas de
audição, por várias vezes, repetiu expressões como:
“Não tenho memória”, “não sabia, não tinha
que saber”, “tenho dificuldade em dar-lhe esses números” e “não tenho
responsabilidade”.
Isto sucedeu quando os deputados o confrontavam as
suas responsabilidades na aplicação de tesouraria ruinosa que a operadora de
telecomunicações fez na Rio Forte.
Incrédula face às evasivas por parte do deponente, a
deputada Marina Mortágua atirou:
“É um bocadinho de amadorismo para quem
ganhou tantos prémios de melhor CEO do ano, melhor CEO da Europa e arredores”.
Também em 2014, na mesma CPI, Manuel Fernando Moniz Galvão
Espírito Santo Silva, ex-chairman da
Rio Forte, teve problemas para se recordar do sucedido, que o Expresso resumiu:
“Eu não sabia”, “não me lembro”, “eu nunca
imaginei”, “não sei”, “não acompanhei”,
“nunca supus”, “nunca participei”, “nunca tive qualquer informação”, “não lhe
sei dizer”, “não estava no meu âmbito”, “nunca tratei”, “não era da minha
competência ou responsabilidade”, “não sou um financeiro”, “nunca participei”,
“nunca intervim”, “nunca fui membro”, “nunca tive funções executivas”, “agora
não me recordo”, “desconheço”, “estava a par, mas não com detalhe”, “não era do
meu pelouro”, “eu não estava lá no dia a dia”, “não faço comentários”…
Ante uma CPI sobre os media – inquérito ao plano da PT
para comprar a TVI – Henrique Granadeiro, que durante muitos anos
dividiu o poder na PT com Zeinal Bava, também teve um lapso de memória.
Respondendo à deputada Cecília Meireles, que lhe perguntou quem foram os
acionistas que sugeriram o nome de Rui Pedro Soares para a lista do conselho de
administração da PT formada em 2006, disse:
“Não me recordo quem sugeriu o nome de Rui
Pedro Soares, como não me lembro dos outros 24 [o conselho de administração da
PT era formado por 25 administradores]”.
Ainda no âmbito do inquérito ao BES, Helder Bataglia, presidente da Escom, também não se lembrou com
quem assinou contrato na ES Enterprise. A este respeito, escrevia o Observador:
“Mas quem o contratou por fora? Em nova
resposta remetida ao Parlamento, o presidente da Escom alega: ‘não me recordo
de quem subscreveu o contrato por parte da ES Enterprise, nem da pessoa ou
pessoas com quem estabeleci os detalhes da contratação’.”.
Quando o Expresso
apontou a Dias Loureiro que teria mentido na CPI
ao BPN ao dizer que desconhecia o Excellence
Assets Fund (veículo que permitiu uma compra ruinosa de duas
empresas tecnológicas em Porto Rico), a
resposta do ex-Ministro foi:
“Não me lembro dos contratos, posso ter
assinado, se vocês o dizem, mas não tenho memória. Foram dois atos isolados. Não tenho arquivo nenhum.
Sei que assinei o memorando de entendimento no início do contrato e mais nada.”.
No mesmo inquérito, Francisco Comprido, ex-administrador
do fundo do BPN, alegadamente envolvido no negócio do Porto Rico, invocou falta
de memória durante toda a sua audição no Parlamento: “Não me recordo”.
A resposta causou estupefação e indignação nos deputados, o que levou o
socialista Ricardo Rodrigues a lembrar, segundo escrevia o Público em 2009, que “a
recusa da não participação na comissão de inquérito, sem alegação de
cumprimento de sigilo, é crime de desobediência qualificada”.
A CGD já teve direito a três CPI. Na primeira, em
2017, Armando Vara, administrador do banco público, aquando da concessão de
vários créditos problemáticos por parte do banco, agora em investigação, provocou
confusão nos deputados, pois o ex-gestor, primeiro, começou
por dizer que nunca tinha falado com Sócrates sobre a CGD, enquanto este era
Primeiro-Ministro, mas depois disse que não se lembrava. E a resposta
final ficou nos termos seguintes:
“Tenho a certeza de que nunca falei e de que
o engenheiro José Sócrates nunca falou comigo sobre as questões da Caixa. Mas na verdade, provavelmente se a minha memória não inventou
qualquer coisa na minha cabeça. Não está nada em relação à Caixa com o
engenheiro José Sócrates.”.
***
Foram muitas as
explicações, as dúvidas e peripécias durante as quase 15 horas de audições que
marcaram o arranque dos trabalhos da comissão de inquérito à recapitalização da
CGD.
Conhecida a posição de Costa e Constâncio, resta saber o que
disse a EY à CPI.
A EY, responsável
pela auditoria independente aos atos de gestão da CGD entre 2000 e 2015, entre outros
aspetos, concluiu que se cifram em 1,2 mil milhões de euros as perdas que o
banco público registou naquele período relativamente aos 25 maiores créditos.
Aliás, foi esta auditoria que deu origem à II CPI à recapitalização da CGD e
aos atos de gestão.
Assim, quando Florbela Lima, partener da EY e principal autora do relatório da auditoria, começou
a falar, no começo da tarde do dia 26 de março, deixou o aviso que seria
premonitório: “O nosso trabalho não emitiu juízos de valor sobre a qualidade das
decisões tomadas”. E explicou, em seguida, que abordou
antes o processo de decisão tendo em conta as regras e as normas internas em
vigor na CGD em cada período. E socorreu-se deste argumento ao longo da audição
para evitar qualificar muitas das operações ruinosas para o banco público.
A uma provocação de um deputado, a especialista responsável
pelo relatório final disse:
“Há decisões que não foram justificadas,
sim. Se houve créditos de favor? É o senhor
deputado que tira essa conclusão, não somos nós. Não analisámos a qualidade das
decisões.”.
E disse, por várias vezes, que não se pode estabelecer
relação direta entre o facto de a CGD não ter cumprido as regras do crédito e
os grandes defaults. Os deputados
tentaram muitas vezes extrair um dado que a própria auditoria permitiu
concluir: em que período se concentraram
as maiores perdas para o banco e houve mais atropelos às regras internas de
concessão de crédito. E Florbela Lima esclareceu que, durante todos os anos,
se verificou este tipo de situações” em que o normativo não foi cumprido.
Todavia, a audição acabou por ficar marcada pelo tema
dos contratos em falta relativamente a alguns dos
maiores créditos da CGD. Florbela Lima começou por advertir que “há informação
que não foi localizada” e que a auditoria se cingiu à informação a que a EY
teve acesso. Face a esta asserção, a assunto foi explorado até a auditora
admitir que não lhe foi disponibilizada documentação sobre quatro dos 25
financiamentos mais problemáticos.
Assim, em resposta à deputada centrista Cecília Meireles Florbela
Lima precisou:
“Eu não estou a dizer que não
existe contrato, estou a dizer que o contrato não nos foi disponibilizado”.
Porém, quando a deputada a questionou:
“O facto de não ter sido disponibilizado é um indício muito forte
de que não há sequer contrato. Como é que sem suporte documental a CGD pode
recuperar este crédito?”
A deponente rendeu-se, dizendo: “É um
facto”. Com efeito, não
havendo documentos que comprovem a dívida, torna-se difícil para o banco bater
à porta do devedor para a reclamar.
E, no dia seguinte, logo pela manhã, o banco público vinha
esclarecer:
“A CGD confirma a formalização contratual
respeitante aos quatro créditos mencionados como parte do top 25 do relatório
de auditoria da EY. A CGD esclarece ainda que, das 60 operações referidas na audição, apenas 24 tinham exposição
à data de dezembro de 2015, confirmando a CGD que tem os documentos contratuais
que identificam e legitimam integralmente a sua posição e direitos.”.
***
Como é possível esta gente ficar tão desmiolada perante os
deputados, sem memória e cheia de arrogância ou a dizer que eles não sabem, não
percebem...? E são estes que (tendo feito política ou não) ganham balúrdios para arruinar o dinheiro do depositante,
investidor e contribuinte. Basta!
2018.03.30
– Louro de Carvalho
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