A Liturgia da Palavra do 21.º domingo do Tempo Comum no Ano C tem como tema a salvação, que é iniciativa e dom de Deus, a que devemos responder com alegria e prontidão. E isso postula que saibamos para onde caminhamos, o que nos espera, no final do caminho, e como devemos viver, para que a vida não termine em fracasso.
Neste sentido, a Palavra de Deus proclamada e meditada nesta dominga convida-nos a caminhar de olhos postos na salvação que Deus nos oferece e mostra-nos o rumo que devemos seguir.
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Na primeira
leitura (Is 66,18-21), o
profeta desvela-nos o desígnio de Deus para a Humanidade, ou seja, a, gloriosa
e luminosa meta final da nossa peregrinação pela Terra, que é a reunião à volta
do Senhor, na cidade da fraternidade e da paz, dos homens e das mulheres de
todas as nações e línguas, em comunidade universal de salvação.O profeta contempla um quadro futuro, de caráter escatológico, com a glória de Deus a iluminar toda a cena, que nos conduz ao momento em que Deus vem, para dar início ao processo de reunião das nações. A partir de Jerusalém, Deus enviará os seus mensageiros ou missionários a Társis (no Sul da Espanha, figura usada para falar dos “confins da terra”), a Fut e a Luc (na costa africana do Mar Vermelho, desde o Sudão até à Somália), a Tubal (a Sul do Mar Negro) e a Java (as ilhas jónias e a Grécia). Os enviados por Deus terão como missão anunciar a todas as nações a glória de Deus. Assim, a comunidade do Povo de Deus é verdadeiramente missionária.
As nações que receberem o anúncio responderão ao sinal do Senhor e dirigir-se-ão para o monte santo de Jerusalém. Jerusalém é, na teologia judaica, o centro umbilical do Mundo, para onde tudo converge, pois, ali, Deus reside no meio do seu Povo e irromperá a salvação definitiva. Os que chegam não vêm armados, como ambiciosos e violentos conquistadores, mas vêm encontrar-se com o Senhor e trarão com eles, como oferenda para Deus, os habitantes de Judá que estavam dispersos entre as nações. Por fim, o Senhor escolherá, de entre os que chegam (dos judeus regressados da Diáspora e dos pagãos que escutaram o convite do Senhor para integrar a comunidade da salvação) sacerdotes e levitas para O servirem.
Este cenário é, humanamente, transcendente ou “impossível”, em tons universalistas, com limites impensáveis. Na Jerusalém pós-exílica, habitada por uma população desconfiada, face aos estrangeiros, o profeta visionário anuncia que todos os povos serão convocados por Deus para integrarem o seu Povo; e esses estrangeiros aceitarão o convite e virão, felizes e gratos, ao encontro de Deus no seu monte santo. Porém, a afirmação mais ousada – até escandalizante – é a indicação de que Deus escolherá, de entre os pagãos, sacerdotes e levitas que entrem no espaço sagrado do Templo e desempenhem funções cultuais. Ora, na compreensão tradicional da religião israelita, o pagão que entrasse no espaço sagrado do templo era réu de morte. Porém, o profeta visionário propõe aos habitantes de Judá radical mudança das mentalidades (uma revolução). De facto, a salvação de Deus tem a marca da universalidade. Não se circunscreve a um povo, a uma casta, a um escol. Destina-se a “todos, todos, todos”, como acentuava o Papa Francisco. Ninguém ficará à margem da misericórdia de Deus. Jesus tornará real esta visão extraordinária. Dele nascerá um povo sacerdotal, constituído por gentes de todas as raças, cores e línguas.
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No Evangelho
(Lc 13,22-30), Jesus é confrontado com
uma pergunta acerca do número dos que se salvam. Não responde, mas aproveita o
ensejo para sugerir como devem viver os que querem construir uma vida com
sentido: “Esforçai-vos por entrardes pela porta estreita.” Os que se esforçam
por entrar pela porta estreita – isto é, os que se dispõem a seguir Jesus e
aceitam a sua oferta de salvação – terão lugar à mesa de Deus,
independentemente da sua raça, das suas raízes, da sua história de vida.***
“Jesus dirigia-Se para Jerusalém e ensinava nas
cidades e aldeias por onde passava.“Alguém Lhe perguntou: ‘Senhor, são poucos os que se salvam?’ Ele respondeu: ‘Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, porque Eu vos digo que muitos tentarão entrar sem o conseguir.”
“Uma vez que o dono da casa se levante e feche a porta, vós ficareis fora e batereis à porta, dizendo: ‘Abre-nos, senhor’; mas ele responder-vos-á: ‘Não sei donde sois’.
“Então começareis a dizer: ‘Comemos e bebemos contigo e tu ensinaste nas nossas praças’. Mas ele responderá: ‘Repito que não sei donde sois. Afastai-vos de mim, todos os que praticais a iniquidade’.
“Aí haverá choro e ranger de dentes, quando virdes no reino de Deus Abraão, Isaac e Jacob e todos os Profetas, e vós a serdes postos fora. Hão de vir do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul, e sentar-se-ão à mesa do reino de Deus. Há últimos que serão dos primeiros e primeiros que serão dos últimos’.
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Esta lição de Jesus no caminho para Jerusalém começa
com a pergunta de um anónimo: “Senhor, são poucos os que se salvam?”Durante muitos séculos a questão da salvação não era equacionada pela catequese judaica. Acreditava-se que, após a morte, todos desciam ao sheol, o mundo dos mortos, onde levavam existências iguais, independentemente do que tinham sido em vida. Não havia, aí, recompensa para os bons, nem castigo para os maus. O prémio ou o castigo era dado na vida terrena. Contudo, a experiência mostrava que as coisas não eram lineares: na Terra, muitas vezes, os justos triunfam, enquanto os justos vivem no sofrimento. Numa fase mais tardia, alguns grupos religiosos (como os fariseus e os essénios), para salvaguardar a justiça de Deus, começaram a falar de outra vida, onde os bons recebem o prémio pela sua justiça e vivem felizes. Os maus, em contrapartida, não ressuscitariam: estariam condenados a viver no mundo das sombras.
Na época de Jesus discutia-se, nos ambientes rabínicos, sobre quem ressuscitaria, após a morte, e teria acesso à vida feliz reservada aos justos. Para os fariseus, a salvação era reservada ao Povo eleito, com exceção de alguns pecadores com comportamentos especialmente graves; mas, em alguns círculos apocalíticos, era dominante a visão pessimista segundo a qual muito poucos estavam destinados à felicidade eterna. Por sua vez, Jesus, falava de Deus como o Pai cheio de misericórdia, cuja bondade O leva a acolher todos, especialmente, os pobres, os débeis e os pecadores. A pergunta do anónimo que Jesus encontrou no caminho para Jerusalém deve enquadrar-se neste contexto.
Jesus não responde à pergunta, por não lhe parecer importante especular sobre esse tipo de questões. Para Ele, mais do que falar em números, acerca da salvação, é importante definir as condições para pertencer ao Reino e estimular nos discípulos a opção pelo Reino.
Na ótica de Jesus, entrar no Reino é, antes de mais, esforçar-se por “entrar pela porta estreita”. A imagem é tomada da entrada das cidades, onde havia duas portas: a larga, destinada a carruagens puxadas por cavalos; e a estreita, destinada à passagem de peões. Lucas não explica o significado de entrar pela porta estreita, mas a imagem pretenderá sugerir que, para entrar no Reino, será necessário renunciar a tudo o que avoluma o homem e o torna pesado – como o orgulho e a autossuficiência, o egoísmo e a ambição (a ganância), o desejo de poder e de domínio – e o impede de viver na lógica de serviço, de entrega, de amor, de partilha, de dom da vida.
Nestes termos, para encontrar a vida verdadeira é preciso o esforço pessoal. Ninguém chegará à realização plena pelo caminho da facilidade, dos valores efémeros, das apostas exclusivas no comodismo e no bem-estar material.
Para explicitar melhor o ensinamento sobre a entrada do Reino, Lucas põe na boca de Jesus uma parábola em que o Reino é descrito na linha da tradição judaica, isto é, como o banquete em que os eleitos estarão à mesa, lado a lado com os patriarcas e os profetas. Na casa do banquete, a porta está fechada. Os que se distraíram com os afazeres fúteis, que se demoraram a gozar as coisas da vida, que hesitaram até deixar passar o tempo oportuno, chegarão atrasados. Baterão à porta, mas o dono da casa não se levantará para os acolher. Convictos de que o seu estatuto lhes dá acesso à mesa do banquete, os tardios pedirão: “Abre-nos, Senhor”; mas o dono da casa responder-lhes-á: “Não sei de onde sois”. Esta expressão era usada, entre os judeus, para excluir alguém da comunidade do Povo eleito. Os excluídos insistirão com o dono da casa, lembrando que comeram e beberam com ele e que se sentaram nas praças, a ouvir as suas lições; mas ele, mantendo a decisão de não os conhecer, não lhes abrirá a porta e impedi-los-á de se sentarem à mesa.
Ao invés, muitos virão “do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul”. O critério para poderem sentar-se à mesa do Reino residirá na forma como acolheram a salvação que Jesus lhes trouxe. Quanto aos que não acolheram a oferta de Jesus, ficarão fora do banquete do Reino, ainda que nascidos dentro das fronteiras étnicas, geográficas e institucionais do Povo eleito. É evidente que Jesus fala para os judeus e sugere que não é pelo facto de pertencerem a Israel que têm entrada no Reino assegurada. Todavia, a parábola aplica-se, igualmente, aos discípulos que, na vida real, não quiserem despir-se do orgulho, do egoísmo, da ambição, para percorrerem, com Jesus, a via do amor e do dom da vida.
As palavras severas que Lucas põe na boca de Jesus são das mais duras que aparecem no terceiro Evangelho. Porém, como estão em consonância com o estilo dos pregadores da época, não têm caráter condenatório, mas exortativo, isto é, o seu escopo é levar os discípulos, os de ontem e os de hoje, a deixarem para trás todas as hesitações e a escolherem, de forma inequívoca, o Reino de Deus. Não são relato factual do que vai acontecer no final dos tempos, mas um convite veemente a assumir, radicalmente, os valores do Reino e a vivê-los.
Os que não viverem em consonância com os ditames do Reino são os últimos, apesar de se sentirem os primeiros por, supostamente, viverem segundo a Lei. E os que eram considerados últimos pelos doutores da Lei, passam a ser os primeiros, por estarem em sintonia com o Reino.
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Na segunda
leitura (Heb 12,5-7.11-13),
um mestre cristão exorta os crentes a verem os sofrimentos e contrariedades,
não como castigos, mas como sinais do amor de Deus. Dessa forma, vencerão o
temor que desalenta e paralisa; e, alimentados pela certeza do amor, caminharão,
com firmeza e perseverança, rumo à vida definitiva.***
“Já esquecestes a exortação que vos é dirigida, como a
filhos que sois: ‘Meu filho, não desprezes a correção do Senhor, nem desanimes,
quando Ele te repreende, porque o Senhor corrige aquele que ama e castiga aquele
que reconhece como filho.’“É para vossa correção que sofreis. Deus trata-vos como filhos. Qual é o filho a quem o pai não corrige? Nenhuma correção, quando se recebe, é considerada como motivo de alegria, mas de tristeza. Mais tarde, porém, dá àqueles que assim foram exercitados um fruto de paz e de justiça.
“Por isso, levantai as vossas mãos fatigadas e os vossos joelhos vacilantes e dirigi os vossos passos por caminhos direitos, para que o coxo não se extravie, mas antes seja curado.”
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O cristão não pode acomodar-se às dificuldades, nem
deixar-se deter por elas. Ultrapassando todos os obstáculos que encontra, corre
para a meta, como o atleta decidido a alcançar a vitória. Cristo é o seu
modelo: enfrentou todos os obstáculos, sofreu o suplício da cruz, mas venceu
tudo e sentou-Se à direita de Deus. O seu exemplo deve inspirar e animar todos
os que enfrentam as dificuldades que a corrida da vida traz.A Carta aos Hebreus detém-se na problemática dos sofrimentos, realidade que os destinatários – que enfrentavam, a cada passo, a hostilidade do Mundo – conheciam bem. É verdade que os sofrimentos e as dificuldades dificultam a caminhada, mas não são apenas algo de absurdamente negativo e sem sentido, nem nos são enviados por Deus como castigo para as faltas, nem constituem obstáculos intransponíveis, que justifiquem a desistência da luta pela vitória. Antes, recorrendo a uma máxima sapiencial (“meu filho, não rejeites a correção do Senhor, nem te irrites quando Ele te repreender, pois o Senhor castiga aquele a quem ama, como o pai a um filho querido”), a Carta insta os crentes a verem nos sofrimentos, não castigos de um Deus vingativo e justiceiro, mas correções, atos pedagógicos de um Pai que ama os filhos e que tudo fará para que eles construam vidas com sentido. As correções são desagradáveis, mas o seu efeito é salutar.
Certa mentalidade religiosa considerava o sofrimento como castigo de Deus para o pecado do homem. Em contraponto, segundo a Carta aos Hebreus, o sofrimento não é castigo, mas remédio que Deus envia aos seus filhos para os corrigir e para os fazer participantes da Sua santidade. Não gostamos que nos corrijam, mas, se o pai corrige o seu filho, é porque quer o seu bem. Sendo assim, essas correções são atos de amor. Com elas, Deus mostra a sua solicitude paternal. Como sinais do amor que Deus nos tem, os sofrimentos são prova da nossa condição de filhos de Deus. Além disso, despertam-nos, transformam-nos, curam-nos, fazem-nos mudar de vida e fazem-nos crescer. Assim, vamo-nos fazendo, interiormente, capazes de nos aproximarmos da santidade de Deus. Por isso, quando os sofrimentos chegam, devem ser tidos como parte do desígnio salvador de Deus para nós, portadores de paz e de salvação. No fundo, devemos estar gratos a Deus pelas correções que nos envia.
A conclusão surge em modo exortativo. Citando Is 35,3 (“fortalecei as mãos débeis, robustecei os joelhos vacilantes”), a Carta aos Hebreus insta os crentes a confiarem e a vencerem o temor que desalenta e paralisa.
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Por tudo, impõe-se aos crentes a tarefa do anúncio do
Reino, pois foram tornados apóstolos: “Ide por todo o Mundo, anunciai a boa
nova.” E são exortados a prestarem a Deus o devido louvor e a mais vibrante aclamação
(“Louvai o Senhor, todas as nações, / aclamai-O, todos os povos”), porque “é
firme a sua misericórdia para connosco, / a fidelidade do Senhor permanece para
sempre.”E, ao mesmo tempo, convém louvar Jesus Cristo (“Aleluia, Aleluia”), visto que é a nossa bússola: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por Mim.”
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