Porque a vida é o dom mais precioso de Deus aos seres
humanos, termos de fazer as melhores escolhas, para que não a desperdicemos e
ela tenha sentido. Neste âmbito, a liturgia do 18.º domingo do Tempo Comum no Ano C adverte-nos contra as opções
que não conduzem a lado nenhum e aponta-nos o rumo da plena realização.
***
Na primeira
leitura (Co/Ecle) 1,2; 2,21-23), o “Cohelet”, sábio de Israel
oferece-nos uma reflexão sobre o sentido da vida. Num misto de pessimismo e de
realismo, dá conta de que não vale a pena o homem cansar-se com a acumulação de
bens que, afinal, abandonará. Esses bens, que, por si sós, nunca encherão de
sentido a vida humana não passam de vanidade e tornam a vida oca. Embora o
raciocínio deste sábio pouco adiante, serve de plataforma para sairmos à
descoberta de Deus e n’Ele encontrarmos o sentido último da existência.
O Livro de Cohelet (ou “Livro do “Eclesiastes”) é um
escrito enigmático, que se apresenta como reflexão sobre o sentido da
existência. Pertence à “literatura sapiencial”. O autor autointitula-se
“Cohelet”, nome que, tal como o nome grego “Ekklesiastés”), significa “o que participa
na assembleia” ou “o que fala na assembleia”. O autor diz-se “filho de David,
rei de Jerusalém”. O único filho de David que reinou em Jerusalém foi Salomão,
o rei sábio, mas a linguagem próxima do Hebreu rabínico (que apresenta traços
tardios) e as ideias mostram que a redação do livro é posterior à época de
Salomão. Assim, é de pensar que o autor terá sido um judeu conhecedor da
cultura e dos valores religiosos do povo, talvez dos círculos intelectuais de
Jerusalém, nos finais do século III a.C., na primeira fase da helenização da
Palestina.
Apesar de refletir sobre o sentido da existência, o
livro não fornece respostas para as grandes questões da vida. Ao invés, o seu
escopo será a destruição das certezas e seguranças que ancoram a sabedoria e a
catequese de Israel. Em tom amargo, o autor sustenta que o homem é incapaz de
aceder à sabedoria, que não há qualquer novidade, que estamos condenados a
repetir os mesmos desafios, que o esforço humano é vão, que é impossível
conhecer Deus, que nada vale a pena, porque a morte está no horizonte. Por
isso, iguala-nos aos ignorantes e aos animais.
No entanto, no livro ecoa o grito de angústia da Humanidade
ferida e perdida, que não entende a razão de viver. O trecho em referência pertence
à primeira parte do livro. Pondo-se na pele de Salomão, amargurado depois de uma
vida de glórias e de prazeres, o autor verifica a inutilidade dos esforços do
homem e conclui que tudo é “vanidade”, “ilusão”. O texto começa com uma frase
sentenciosa que reaparecerá 25 vezes ao longo do livro e que funciona como
resumo e conclusão de tudo o que será dito: “Vaidade das vaidades: tudo é
vaidade”. O termo traduzido como “vaidade” designa o vazio, a vacuidade, a
deceção, a inconsistência de uma realidade para a qual o autor não encontra
razão nem sentido. A existência é, na ótica do Cohelet, um imenso “absurdo”.
Em jeito de exemplo, o Cohelet expõe a situação de um
homem “que trabalhou com sabedoria, ciência e êxito” e juntou significativa riqueza.
Porém, isso não lhe serviu para nada pois, chegado o momento da morte, teve de
deixar tudo para outro que nada fez. Sendo assim, interroga-se o sábio: “De que
aproveita ao homem todo o seu trabalho e a ânsia com que se afadigou debaixo do
sol? […] Terão feito sentido todas as preocupações e cuidados que teve, as
dores que sofreu, as fadigas que suportou, para levar até ao fim o seu trabalho
e juntar alguns bens que, afinal, são bem efémeros?” E o Cohelet responde:
“Também isto é vaidade.” É uma conclusão estranha, tendo em conta que a
sabedoria tradicional “excomungava” o que não fazia nada e apresentava como
ideal do sábio o que trabalhava e cumpria as tarefas que lhe estavam
destinadas.
A grande lição do Cohelet é a demonstração da
incapacidade de o homem encontrar, por si só, um sentido para a vida. O
pessimismo do Cohelet leva-nos a reconhecer o sem sentido de uma vida voltada
só para o humano e para os bens efémeros. Por isso, o livro constitui um apelo a
olhar para mais além. E nós, iluminados pela fé, concluímos: para Deus. Só em
Deus e com Deus seremos capazes de encontrar o sentido da vida e tirar da
vanidade a existência.
***
No Evangelho Jesus
(Lc 12,13-21), com a parábola do rico
insensato, denuncia a falência da vida voltada só para o gozo dos bens
materiais. Quem aposta tudo no conforto, no bem-estar, na segurança que o
dinheiro proporciona, é louco. As suas opções irresponsáveis levam-no a passar
ao lado das coisas que realizam o homem e lhe proporcionam a felicidade infinda.
No caminho da Galileia para Jerusalém, Jesus aproveita
todos os pretextos para formar os discípulos nos valores do Reino de Deus.
Prepara-os para serem, no tempo da Igreja, as testemunhas do Reino diante de
todos os povos e nações. Com as lições que recebem de Jesus, crescem na lógica
do Evangelho, despem-se das lógicas pessoais, egoístas e interesseiras, e
interiorizam a proposta de Jesus.
A lição de Jesus neste Evangelho é exclusiva de Lucas.
É espoletada por uma questão de partilhas. Um homem não identificado pede a
Jesus que intervenha, como árbitro, na repartição de uma herança familiar.
Segundo a tradição judaica, o filho primogénito de família de dois irmãos
recebia dois terços das possessões paternas. O texto lucano não esclarece se o interpelante
era o irmão mais novo, que não tinha recebido a sua parte, se era um irmão
descontente com a avaliação dos bens feita pelo outro ou se requeria a
intercessão de Jesus para que o irmão fosse mais generoso na repartição dos
bens herdados.
Não raro, os escribas e os doutores da lei, versados
nas escrituras, assumiam o papel de juízes em casos similares. Competia-lhes, a
partir da Lei, indicar como resolver situações discutíveis. O interpelante,
chamando “mestre” (“didáskale”) a Jesus, reconhece-Lhe autoridade semelhante à
dos escribas e doutores da Lei.
Jesus recusa envolver-se na partilha de uma herança.
Era uma questão legal, para a qual não tinha mandato (“amigo, quem me fez juiz
ou árbitro das vossas partilhas?”). A sua missão, a que Ele recebeu do Pai, é
anunciar o Reino de Deus, e não intrometer-se entre dois irmãos que discutem sobre
dinheiro e sobre outros bens materiais. O modo áspero como Jesus responde dá a
entender que viu no interpelante intenção que não Lhe agradou. Talvez o homem tivesse
apego excessivo ao dinheiro, o que explicaria a declaração que Jesus fez a
seguir (“vede bem, guardai-vos de toda a avareza: a vida de uma pessoa não
depende da abundância dos seus bens”). Na ótica de Jesus, o homem não pode
edificar a sua existência sobre a cobiça, a ambição, a ganância. A cobiça dos
bens, o desejo insaciável de ter mais e mais, é idolatria: toma conta do
coração do homem, domina-o e faz com que o homem se afaste de Deus e deixe de
se preocupar com os irmãos. Enfim, conduz à lógica interesseira e egoísta, em
contraste com a lógica do Reino de Deus.
Para que tudo fique bem claro, Jesus conta uma
parábola que expõe o caso de um latifundiário da Galileia. Contempla os seus
campos e percebe que terá colheira muito abundante. Em diálogo consigo, desenha
um plano: destruir os velhos celeiros, exíguos e degradados, e construir outros
novos, capazes de armazenarem toda a colheita produzida nesse ano bom; depois,
certo de que terá riqueza suficiente para viver bem por muito tempo, poderá dedicar-se
a gozar a vida.
Os planos deste agricultor abastado parecem bastante
acertados. É homem previdente, esforçado, responsável, que merece que a vida
lhe corra bem. Contudo, análise mais atenta revela que tinha um horizonte de
vida limitado: verificando que as suas terras produzirão uma colheira
abundante, propõe-se usar os bens que lhe estarão à disposição apenas em proveito
próprio (“descansa, come, bebe, regala-te”). É um egoísta, que só pensa em si
mesmo. A linguagem que utiliza expressa-o: diz a “minha” colheita, os “meus”
celeiros”, o “meu” trigo”, os “meus” bens. Nunca pensa nos outros, nunca fala
dos outros, não coloca a possibilidade de repartir com os seus trabalhadores
pobres os bens que Deus lhe colocar nas mãos; nunca refere a família, nem os
amigos; nem pensa em agradecer a Deus pelos bens que receber. Vive em circuito
fechado. O seu horizonte é o seu pequeno mundo e o bem-estar que pode tirar da
vida enquanto está no Mundo.
Jesus considera esta visão da vida muito limitada. Na
avaliação de Jesus, este homem é um insensato, porque é egotista e porque põe
toda a confiança nos bens materiais. Crê que a posse de muitos bens lhe dá ilimitada
segurança. Não reconhece a fragilidade inerente à condição humana, nem a brevidade
da vida, não pensa no que o espera, quando a sua rota na terra terminar.
A parábola conta que Deus, nessa noite, lhe vai “pedir
contas e desfará as suas ilusões. Esse homem terá de “entregar a alma” e os bens
não lhe servirão para nada. Jesus não fala de castigo de Deus, simplesmente diz
que a vida vivida num registo egoísta e materialista é péssima opção: é vida
oca e termina mal.
Jesus propõe aos que O escutam uma vida diferente,
voltada para os valores do Reino de Deus. Os verdadeiros discípulos de Jesus –
os que vão com Ele para Jerusalém e todos os que, pelos séculos fora, decidirem
segui-Lo – têm de construir as suas vidas sobre valores que dão pleno sentido à
existência do homem. Só dessa forma a vida não será perdida.
Dizem alguns que, tanto no “Cohelet” como neste
Evangelho, não há qualquer maldição das riquezas. Não é bem assim. Os bens
foram destinados a todos, pelo que todos devem possuir, pelo menos, um mínimo para
viverem com dignidade. Por outro lado cabe a cada pessoa (e todas) fazer com
que se multipliquem, com trabalho inteligente, os bens que Deus nos doou.
Quando o liberalismo económico absoluto campeia, o
homem usa todos os meios lícitos e ilícitos para acumular riqueza. Tudo serve
para satisfazer a ganância e a avareza: roubo, fraude, opressão dos mais fracos,
guerra, morticínio. O dinheiro e a riqueza, em geral, tornam-se ídolo, que as pessoas
idolatram, deixando de se abrir à novidade de Deus e às necessidades dos
irmãos. Tanto assim é que a riqueza de poucos abunda cada vez mais e a pobreza
de muitíssimos torna-se cada vez mais profunda. Lá diz o Evangelho: “Não podeis
servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24).
Na segunda
leitura (Cl 3,1-5.9-11), o apóstolo das Gentes insta à afeição pelas
“coisas do alto”, em detrimento das terrenas (brilhantes e sugestivas, mas efémeras
e fúteis). Quem, no batismo, foi enxertado com Cristo, tem de viver de modo que
seja, para os irmãos, “imagem do Criador”.
Não foi Paulo que evangelizou a cidade de Colossos,
sita na Ásia Menor, ao Sul da antiga Frígia, no vale do rio Lico. Foi Epafras, seu
discípulo, quem lá anunciou o Evangelho. Do esforço missionário de Epafras
nasceu uma comunidade viva e empenhada, constituída, maioritariamente, por
cristãos provindos do paganismo, embora contasse com alguns cristãos de origem
judaica.
Aquando da escrita da Carta aos Colossenses, Paulo
está na prisão. Recebendo a visita de Epafras, soube que tinham chegado a
Colossos pregadores cristãos que ensinavam doutrinas erróneas. Tais pregadores,
de tendência judaizante, mas influenciados por ideias gnósticas, tentavam
convencer os Colossenses a acolher práticas, tradições e doutrinas que,
alegadamente, os levariam a maior perfeição, a um grau superior da experiência
cristã. Exigiam a circuncisão, o respeito pelo sábado, a observância de certas
festas judaicas, a abstinência de alguns alimentos; difundiam o culto dos anjos
e de poderes cósmicos que governavam os astros; e pregavam a necessidade da
submissão a rituais de iniciação em voga no mundo helénico e a rígidas práticas
ascéticas.
Paulo reconheceu, pela informação de Epafras, que
havia motivos de preocupação. O Evangelho estava a ser desvirtuado, pois os
pregadores deixavam na sombra Cristo e a salvação que Ele trouxe. Paulo escreve
aos Colossenses, vincando o papel e o lugar de Cristo no desígnio salvador de
Deus. O trecho em apreço integra a parte moral da carta, onde o apóstolo tira
conclusões práticas do que afirmou na primeira parte (Cristo basta para a
salvação) e convoca os Colossenses a viverem, no quotidiano, a vida nova que os
identificou com Cristo. Ora, Cristo derrotou o pecado e a morte. Na manhã de
Páscoa, saindo vivo do túmulo onde a maldade, a injustiça e a violência o
queriam encerrar, triunfou sobre tudo o que desfeia o Mundo e que rouba a vida
aos homens. A ressurreição de Cristo é o acontecimento capital, o alicerce
sobre o qual Deus construiu o seu desígnio de salvação. De Cristo ressuscitado
brota uma torrente de vida nova.
Pelo batismo fomos enxertados em Cristo ressuscitado e
passamos a receber vida d’Ele. Ficamos unidos a Ele e identificamo-nos com Ele.
A vida que brota do Ressuscitado passa a circular em nós. A vida velha ficou
para trás. Passamos a viver de olhos postos nas coisas do alto.
A vida de batizados deve ser expressão da vida nova que
circula em nós e que deve manifestar-se já, durante o nosso caminho na Terra.
Porém, revelar-se-á em plenitude, quando Cristo Se manifestar, definitivamente,
em toda a sua glória. Sendo assim, todas as obras do “homem velho” (Paulo
aponta algumas: “imoralidade, impureza, paixões, maus desejos e avareza”) devem
ser completamente banidas da vida do cristão, pois não são compatíveis com a
vida que recebemos de Cristo ressuscitado. O cristão é, depois de no batismo se
ter “revestido” de Cristo, um “homem novo”. Está impressa nele a imagem do Criador.
A vida nova que habita todos aqueles que se revestiram
do homem novo fará desaparecer as velhas diferenças de povo, de etnia, de
religião, de sexo. Seremos todos iguais, seremos, todos, imagem de Deus. Foi para
isto que Cristo veio: criar a comunidade de homens novos, que sejam, no Mundo,
a “imagem do Criador”. A identificação com Cristo ressuscitado – que resulta do
batismo – é, assim, um renascimento contínuo que deve levar-nos a parecer-nos
cada vez mais com Deus.
***
Vale a pena colocar a nossa a confiança no Senhor e exprimir
essa atitude, cantando:
“Senhor, tendes sido o nosso refúgio através das
gerações.”
“Vós reduzis o homem ao pó da terra / e dizeis: ‘Voltai,
filhos de Adão’. / Mil anos a vossos olhos são como o dia de ontem que passou /
e como uma vigília da noite.
“Vós os arrebatais como um sonho, / como a erva que de
manhã reverdece; / de manhã floresce e viceja, / de tarde ela murcha e seca.
“Ensinai-nos a contar os nossos dias, / para chegarmos
à sabedoria do coração. /Voltai, Senhor! Até quando…/ Tende piedade dos vossos
servos.
“Saciai-nos desde a manhã com a vossa bondade, / para
nos alegrarmos e exultarmos todos os dias. / Desça sobre nós a graça do Senhor
nosso Deus. / Confirmai, Senhor, a obra das nossas mãos.
2025.08.03 – Louro de Carvalho
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