quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Festa da Transfiguração do Senhor: teofania do Deus que é e que há de vir

 
A festa da Transfiguração do Senhor recorda a dedicação das Basílicas do Monte Tabor, celebrada desde o fim do século V, no Oriente. É posterior à da Exaltação da Cruz, a 14 de setembro, da qual depende a sua data, marcada para 6 de agosto, 40 dias antes da Exaltação da Cruz. E começou a ser celebrada no Ocidente, a partir do século IX, mas a generalização da sua celebração só ocorreu no século XV, quando foi inserida no calendário romano pelo Papa Calisto III, em 1457: uma ocasião histórica, pela recordação da vitória, em 1456, contra os Turcos, que ameaçavam, seriamente, o Ocidente.
A Transfiguração do Senhor, que está entre as grandes festas e solenidades da Igreja oriental, vem precedida com a oração das vésperas solene, seguida da grande vigília de oração. É evidente que, para os irmãos orientais, esta festa tem extraordinária importância, pois traduz, profundamente, a teologia da divinização do homem.
A festa da Transfiguração do Senhor, na qual Jesus Cristo, Filho Unigénito, em quem o Eterno Pai pôs toda a sua complacência, diante dos apóstolos Pedro, Tiago e João, com o testemunho da Lei e dos Profetas, manifestou a sua glória, para significar que a nossa humilde condição de servos, por Ele assumida, foi generosamente renovada pela graça e para proclamar, até aos confins da Terra, que a imagem de Deus, plasmada no Mundo criado, embora corrompida em Adão, foi restaurada em Cristo.
A Transfiguração do Senhor diante dos apóstolos Pedro, Tiago e João, com o testemunho da Lei e dos Profetas, “manifestou a sua glória e na sua humanidade, em tudo semelhante à nossa, fez resplandecer a luz da sua divindade, para tirar do coração dos discípulos o escândalo da cruz e para mostrar que devia realizar-se no corpo da Igreja o que resplandecia na sua cabeça”.
O episódio da Transfiguração, situado no contexto do anúncio da Paixão e da Morte, chegou até nós, pelos relatos dos Evangelhos Sinóticos (Mt 17,1-9; Mc 9,2-10; Lc 9,28-36), e por uma alusão, contida na Segunda Carta de São Pedro Apóstolo (2Pe 1,16-18), proposta pela forma litúrgica como uma leitura do livro do profeta Daniel (Dn 7-9-10.13-14), se a festa for celebrada na semana.
A Transfiguração, manifestação da vida divina, que está em Jesus, é uma antecipação do esplendor que encherá a noite da Páscoa. Os Apóstolos, quando virem Jesus na sua condição de Servo, não deverão esquecer a sua condição divina. É óbvio que não foi assim, porque a condição humana leva tempo a aceitar o mistério. O espírito está pronto, mas a carne é fraca (Mt 26,41).
Neste evento prodigioso, Moisés (antonomásia da Lei) e Elias (antonomásia da Profecia) apareceram e conversavam com Jesus. Diante de tudo isso, Pedro voltou-se para Jesus a expressar a sua admiração e o seu temor pelo que ele e os outros dois discípulos tinham visto e em que eles estavam a participar: “Rabi, que quer dizer (mestre), é bom estarmos aqui: vamos fazer três tendas, uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias.”
Uma nuvem chegou, símbolo da presença divina como a que acompanha os judeus, (cf Ex 16,16), que os envolveu com sua sombra, da qual veio uma voz: “Este é o meu Filho amado: escutai-o!”, repetindo o que Deus, o Pai, já havia revelado por ocasião do batismo de Jesus no Jordão, a primeira teofania da Trindade. “Filho Amado” é um dos mais importantes títulos cristológicos, inspirados por (Is 42,1), onde o termo “amor” significa o Servo de Javé, enquanto o convite: “ouvir”, lembra (Dt 18,25), onde Moisés anuncia a vinda do profeta do fim dos tempos ao qual o povo deve ouvir.
Essa voz e a sombra da nuvem lançaram os discípulos em grande medo, de modo a prostrá-los ao chão. Mas quando os discípulos olharam em volta, não viram senão só Jesus. Esta presença é o único essencial, é a coisa mais importante a ser encontrada no final de uma grande experiência. Ao descerem da montanha, Jesus ordenou que não contassem a ninguém nada sobre a experiência teofânica vivida, exceto depois de o Filho do Homem ressuscitar dos mortos, o que eles não compreenderam.
A Transfiguração é, portanto, uma teofania ou manifestação tanto da vida divina de Cristo como da Trindade. Nesse sentido, este episódio da vida de Jesus é considerado como o batismo de Jesus no Jordão. A voz do Pai declara Jesus como seu filho amado; o Filho está brilhando de luz, símbolo da sua descida divina; o Espírito envolve os discípulos com a sombra da nuvem, tornando-se o portador da voz que testemunha a identidade de Jesus. Jesus foi transfigurado aos olhos dos discípulos e, até mesmo, os olhos dos discípulos foram transfigurados, no sentido de uma transformação da sua capacidade de ver, de contemplar, para ser capaz de encontrar em Cristo a glória de Deus através do Espírito Santo.
A Transfiguração é um encontro discipular com que Jesus manifesta a sua glória, mas cuja plenitude de manifestação ocorrerá com a ressurreição, o que implica a passagem pela via do sofrimento e da morte. Leva a um conhecimento maior de Jesus e marca, profundamente, a história de vida do discípulo, se entendida à luz da ressurreição.
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Comentando Dn 7, 9-10.13s, é de referir que o profeta, em visão noturna, vê a História do ponto de vista de Deus. Sucedem-se os impérios e os opressores, mas o projeto de Deus não falha. Ele é o último juiz, que avaliará as ações dos homens e intervirá para resgatar o seu povo. Aos reinos terrenos contrapõe-se o Reino que o Ancião confia a um misterioso “filho de homem” que vem sobre as nuvens. Trata-se de verdadeiro homem, mas de origem divina. Já não se trata do Messias davídico que havia de restaurar o Reino de Israel, mas da sua transfiguração sobrenatural: o Filho do homem vem inaugurar um reino que, embora se insira no tempo, “não é deste Mundo” (Jo 18,36). Ele triunfará sobre as potências terrenas, conduzindo a História para a sua realização escatológica. Jesus irá identificar-se, muitas vezes, com esta figura bíblica na sua pregação e, particularmente, diante do Sinédrio, que o condenará à morte.
Relendo 2Pe 1, 16-19, anotamos que Pedro e os dois companheiros se reconhecem portadores de uma graça maior do que a dos profetas, porque ouviram a voz celeste que proclamava Filho muito amado do Pai, Jesus, seu mestre. Contudo, a Palavra veterotestamentária continua a ser “uma lâmpada que brilha num lugar escuro” (v. 19), até ao dia sem fim, quando Cristo vier na sua glória. Jesus transfigurado sustenta a nossa fé e acende em nós o desejo da esperança nesta caminhada. A “estrela da manhã” já brilha no coração de quem espera vigilante.
A leitura do Evangelho de Lucas (Lc 9,28b-36) ensina que a Transfiguração confirma a fé dos Apóstolos, manifestada por Pedro em Cesareia de Filipe, e ajuda-os a ultrapassar a sua oposição à perspetiva da paixão anunciada por Jesus. Quem quiser seu discípulo, terá de participar nos seus sofrimentos (Mt 16, 21-27. A Transfiguração é um primeiro resplendor da glória divina do Filho, chamado a ser Servo sofredor para salvação dos homens.
Na oração, Jesus transfigura-Se e deixa entrever a sua identidade sobrenatural. Moisés e Elias são protagonistas de um êxodo muito diferente nas circunstâncias, mas idêntico na motivação: a fidelidade absoluta a Deus. A luz da Transfiguração clarifica, interiormente, o seu caminho terreno. Quando a visão parece estar a terminar, Pedro como que tenta parar o tempo. É, então, envolvido com os companheiros pela nuvem. É a nuvem da presença de Deus, do mistério que se revela permanecendo incognoscível. No entanto, Pedro, Tiago e João recebem d’Ele a luz mais resplandecente: a voz divina proclama a identidade Jesus, Filho e Servo sofredor (cf Is 42,1).
Jesus manda rezar os discípulos. Toma à parte os seus prediletos, Pedro, Tiago e João, para os fazer rezar, mais longa e intimamente. Estes três representam, particularmente, os pontífices, os religiosos, as almas chamadas à perfeição. Para rezar, Jesus gosta da solidão, a montanha onde reina a paz, a calma, onde pode ver-se a grandeza da obra divina, sob o céu estrelado, durante as belas noites do Oriente.  
A Transfiguração é uma visão do céu. É uma graça extraordinária para os três apóstolos. Não nos devemos agarrar às graças extraordinárias, que são, por vezes, o fruto da contemplação. Pedro agarra-se a isso. Engana-se. Queria ficar lá: “Façamos três tendas”, diz. Não sabia o que dizia. A visão desaparece numa nuvem. Há aqui uma lição: “Entreguemo-nos à oração habitual, à contemplação. Não desejemos as graças extraordinárias. Se vierem, acolhamo-las, mas não nos agarremos a elas.”
Os frutos desta festa são, primeiro que tudo, o crescimento da fé. Os apóstolos testemunham-nos que viram a glória do Salvador. “Não são fábulas que vos contamos”, diz Pedro (2Pe 1,16), “fomos testemunhas do poder e da glória do Redentor. Ouvimos a voz do céu sobre a montanha gritando-nos no meio dos esplendores da transfiguração: “É o meu Filho bem-amado, escutai-o’.” Paulo encoraja a nossa esperança recordando a lembrança da glória do salvador manifestada na transfiguração e na ascensão: “Veremos a glória face a face, diz, e seremos transfigurados à sua semelhança” (2Cor 3,18). “Esperamos o Salvador, Nosso Senhor Jesus Cristo, que transformará o nosso corpo terrestre e o tornará semelhante ao seu corpo glorioso” (Fl 3,21).
Porém, este mistério é, sobretudo, próprio para aumentar o nosso amor por Jesus. Nosso Senhor manifestou-nos, naquele dia, toda a sua beleza. O seu rosto era resplandecente como o Sol. Os apóstolos, testemunhas da transfiguração, estavam totalmente inebriados de amor e de alegria. “Que bom é estar aqui”, dizia Pedro. “Façamos aqui a nossa tenda”. A beleza de Cristo transfigurado, contemplada pelo pintor Rafael, inspirou-lhe a obra-prima da arte cristã.
Nosso Senhor falava então da sua Paixão com Moisés e com Elias: nova lição de amor por nós. O Coração de Jesus, mesmo na sua glória, não pensa senão em nós e nos sacrifícios que quer fazer por nós. Lições de penitência, de reparação, de compaixão pelo Salvador, porque teve de sofrer tanto para nos resgatar, deploremos os nossos pecados, amemos o nosso Redentor, consolemo-lo.
“Este é o meu Filho muito amado: Escutai-o.” A voz do Pai celeste diz-nos: “Escutai-o”, palavra cheia de sentido, como todas as palavras divinas. Deus dá-nos o seu divino Filho por guia, por chefe, por mestre. “Escutai-o”, fala-nos nas leis do Evangelho e nos conselhos de perfeição. Fala nas santas regras dos religiosos e no regulamento de vida dos seculares. Fala-nos pelos superiores, pelo diretor espiritual, que têm a missão de dizer a vontade divina. Fala-nos pela sua graça, na oração, na união habitual com ele. A palavra de Deus nunca nos falta, é a nossa docilidade que falta habitualmente. Esta palavra divina “Escutai-o” espera de nós uma resposta. Não basta uma promessa vaga: “Hei de escutar.” É preciso uma disposição habitual: “Escuto, escuto sempre; falai, Senhor, o vosso servo escuta.” Escutaremos no começo de cada ação, para sabermos o que fazer e como fazê-lo.
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Assim o fizeram muitos santos e santas. São de recordar os que regista o Martirológio Romano para o dia 6 de agosto:
* Em Roma, junto à Via Ápia, no cemitério de Calisto, a paixão de São Sisto II, papa, e seus companheiros († 258);
* Em Alcalá de Henares, na Hispânia Cartaginense, hoje, na Espanha, os santos irmãos Justo e Pastor, mártires († 304);
* Em Roma, junto de São Pedro, o sepultamento de Santo Hormisdas, papa, que, como bom promotor da paz, conseguiu que, no Oriente, fosse resolvido o cisma de Acácio e, no Ocidente, fossem respeitados pelos novos povos os direitos da Igreja († 523);
* Em Savona, na Ligúria, região do Noroeste da Itália, o Beato Octaviano, bispo e irmão do papa Calisto II († 1132);
* No território do Luxemburgo, o Beato Gecelino, eremita († c. 1138);
* Em Bolonha, na Emília-Romanha, região da Itália, o dia natal de São Domingos de Gusmão, presbítero († 1221);
* Em Montevideu, no Uruguai, Santa Maria Francisca de Jesus (Ana Maria Rubatto), virgem, que, em Loano, cidade próxima de Savona, na Itália, fundou o Instituto das Irmãs Terciárias Capuchinhas († 1904):
* Perto de Gandia, no território de Valença, na Espanha, o Beato Carlos López Vidal, mártir († 1936);
* Em Roda-Holot, na Catalunha, também na Espanha, o Beato Adolfo Jaime (António Serra Hortal), religioso da Congregação dos Irmãos das Escolas Cristãs e mártir († 1936);
* Em Talavera de la Reina, próximo de Toledo, também na Espanha, o Beato Saturnino Ortega Montealegre, presbítero da diocese de Toledo e mártir († 1936); e
* Perto de Munique, cidade da Baviera, na Alemanha, o Beato Tadeu Dulny, mártir († 1942).
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Participamos da transfiguração de Cristo pelo Batismo – que implica a morte, sepultura e a ressurreição com Ele – e na vida cristã, que leva a viver os Evangelho com todas as suas implicações e consequências na vida pessoal e social.

2025.08.06 – Louro de Carvalho


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