Esteve recentemente
em Portugal, para analisar o estado da justiça a relatora do Conselho de Direitos Humanos da
Organização das Nações Unidas (ONU), Gabriela Knaul, estando o país no fogo
cruzado duma reforma da justiça marcada por severas críticas e duma postura da
titular da pasta cheia de intervenções públicas acolhidas de forma bem
polémica, mesmo por parte de muitos que se posicionam na área política da
Ministra.
Knaul, relatora
especial da ONU desde de agosto 2009, foi juíza no Brasil e é especialista em
direito penal e em administração de sistemas judiciais. A sua visita a Portugal, a
convite do Governo, teve a duração de 8 dias e insere-se na preparação de um
relatório sobre o sistema judicial português, que será apresentado ao Conselho
de Direitos Humanos, em junho deste ano.
Para conseguir
uma abundante e suficiente panóplia de dados, Gabriela Knaul entrevistou, em Lisboa, Coimbra e Porto,
diversos agentes do sistema judicial português, como: a procuradora-geral da
República, o provedor de Justiça, vários juízes, vários magistrados e
funcionários do Ministério Público e vários advogados. Ouviu ainda
representantes da sociedade civil.
No passado dia 3 de fevereiro, termo
da visita, a relatora em causa já conseguiu fornecer algumas indicações que
integram o relatório preliminar sobre a temática do estado da justiça
portuguesa, destacando, como alguns dos
problemas detetados, atrasos em
tribunais, vencimentos de magistrados e ausência de informações a arguidos, bem
como observações sobre o sistema informático da justiça e a falta de
orçamentos próprios das magistraturas.
Porém, de acordo com a
especialista, o trabalho do relatório final irá concentrar-se em questões-chave
da administração da justiça, como os “atrasos indevidos, a igualdade de acesso
à justiça e a assistência jurídica, em especial para os membros mais
vulneráveis da população, como as crianças, os imigrantes, a comunidade cigana
ou as mulheres vítimas de violência doméstica”. Por outro lado, o trabalho
deverá pôr o acento nas “conquistas e nos desafios do país para garantir a
independência do poder judiciário, o livre exercício da profissão de advogado e
o acesso à justiça para todos”.
A relatora do
Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas disse que o poder
judicial português “não pode
estar de joelhos, com o chapeuzinho na mão, aguardando recursos financeiros e administrativos” para
funcionar – constituindo esta metáfora uma crítica à dependência financeira do sistema judicial
frente ao poder executivo.
“O que me preocupa mais no que diz
respeito a Portugal é, realmente, a questão orçamental”, disse ainda Gabriela
Knaul. E lembrou, a propósito, que tanto os orçamentos para os Tribunais da
Relação e de primeira instância, como para o Ministério Público, são atualmente
administrados através do Ministério da Justiça (MJ), o que “parece limitar as possibilidades de
responsabilização de juízes e procuradores pela eficiência na execução das suas
atividades”.
Chega mesmo a afirmar categoricamente que “Portugal precisa de uma autonomia
financeira e administrativa reforçada”, pois, “esses elementos são essenciais
para a eficiência e o bom funcionamento da Justiça portuguesa”.
Em suma, tal como a nível interno,
também a ONU sabe que a justiça
portuguesa enferma de algumas mazelas: excessivamente gravosa e discricionária nas
medidas de coação prévias (demasiado duradouras) a julgamento; lenta e morosa; excessivamente
cara; burocraticamente complexa, dado o excesso de formalismo; eivada de
expedientes dilatórios; inacessível por parte dos mais vulneráveis; distante da
realidade, que é dinâmica; permeável a contradições; pelo menos, aparentemente
discriminatória; dependente financeiramente; e, muitas vezes, ineficaz.
***
Por seu
turno, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) considerou importante
“alguém de fora” como a relatora da ONU Gabriela Knaul vir dizer que a “dependência
financeira dos tribunais” é um dos principais problemas do sistema judicial
português. A este respeito, o Presidente da
ASJP, Mouraz Lopes, em declarações à agência
Lusa, considerou que as declarações da relatora sobre a necessidade de autonomia
financeira e administrativa dos tribunais, por forma a garantir a independência
do poder judicial, vão ao encontro das preocupações da ASJP.
Segundo aquele
magistrado, a relatora da ONU advertiu que a “dependência financeira dos
tribunais é uma questão-chave” e que qualquer reforma da justiça tem que ter
presente essa faceta do sistema. Ademais,
não basta mudar as leis e efetuar reformas orgânicas; é também preciso
que os juízes tenham meios e sejam independentes financeiramente, para “gerir o
próprio orçamento da Justiça”.
Mouraz Lopes
assinalou ainda o facto de Gabriela Knaul ter reconhecido que a reforma do mapa
judiciário decorreu de forma “apressada”, quando ainda não estavam reunidas as
condições necessárias para a fazer, designadamente quanto ao sistema
informático, instalações e meios humanos.
Mas o presidente da ASJP admitiu que as preocupações manifestadas no
relatório quanto ao sistema judicial não constituem novidade para os operadores
judiciários, mas entendeu ser importante que “alguém de fora” venha dizer o
mesmo sobre a justiça.
Penso, no entanto, não dever
superlativizar o facto de ser “alguém de fora” a denunciar os males da justiça
portuguesa, uma vez que os investigadores e relatores que vêm a Portugal não
inventam, apenas se estribam no que lhes é dito. A grande vantagem é que, na
posse da informação recolhida, podem fazer sobre ela um juízo mais imparcial e
objetivo.
***
Em resultado da visita da conselheira da ONU a
Portugal e das indicações que forneceu, já foram dadas a conhecer algumas das
intenções da governação portuguesa.
Assim, para resolver o problema da alegada
dependência financeira e demais aspetos de controlo da parte do poder executivo,
para lá do novo estatuto dos magistrados cujo debate está em curso, sabe-se que
juízes e PGR vão
gerir ordenados e horas extra das respetivas magistraturas, assim como vão ser
responsabilizados por atrasos nos processos e por melhorar a eficiência nos tribunais.
É verdade. Os ordenados dos juízes, as despesas de deslocação e as horas extra
vão passar a ser geridos pela própria magistratura. Por via desta gestão
orçamental própria, os magistrados passam a ser responsáveis e
responsabilizados pelos eventuais atrasos nos processos. É Paula Teixeira da
Cruz quem, numa nota enviada à Comunicação Social, garante que a autonomia
financeira dos conselhos superiores da Magistratura (CSM) e do Ministério
Público (CSMP) vai avançar. Obviar-se-á, deste modo à alegada dependência financeira
e a uma das causas da lentidão da Justiça.
“Os grupos de trabalho constituídos para a revisão dos
Estatutos da Magistratura Judicial e do Ministério Público discutiram
amplamente a questão da autonomia orçamental, financeira e administrativa das
magistraturas, tendo consagrado a autonomia administrativa e financeira do
Conselho Superior da Magistratura, bem como do Conselho Superior do Ministério
Público”, explica a referida nota do gabinete da Ministra da Justiça.
Atualmente, as verbas – destinadas também a material de
trabalho como canetas, folhas de papel ou computadores – são geridas pela
Direção-Geral da Administração da Justiça do MJ, o que contraria a Lei 36/2007,
de 14 de agosto, que estabelece que tal gestão cabe aos respetivos conselhos
superiores. Também, a este respeito Mouraz Lopes explica que “esta autonomia
financeira será uma decorrência da lei e estará prevista no Orçamento na rubrica
de Encargos Gerais do Estado”. Para este ano, no OE estão previstos 919 milhões
de euros em despesas com todo o pessoal da Justiça. Com as novas regras, a
gestão de cada tribunal será garantida por uma estrutura tripartida, composta
pelo juiz presidente, pelo magistrado do Ministério Público coordenador e pelo
administrador judiciário. Este terá a seu cargo a parte de gestão do orçamento
atribuído a cada tribunal, previamente definido pelos conselhos superiores.
Em 29 de janeiro do ano passado, o presidente do Supremo
Tribunal de Justiça lançou o aviso: “A reorganização supõe igualmente a dotação
de condições orçamentais que permitam o reordenamento da estrutura e das
capacidades do Conselho Superior da Magistratura para responder às tarefas
acrescidas de coordenação que serão exigidas”. Por sua vez, agora a representante
da ONU opinou que “a concentração das atribuições de gestão no Ministério da
Justiça parece limitar as possibilidades de responsabilização de juízes e
procuradores pela eficiência na execução das suas funções”. Com efeito, “um
magistrado pode invocar falta de recursos, mas, se lhe forem disponibilizados
os meios necessários, será responsabilizado por eventuais falhas ou atrasos”.
Do seu lado, Paula Teixeira da Cruz explicou que “o MJ está a
ponderar a introdução, em sede estatutária, de garantias de desempenho e
mérito, proporcionando aos magistrados, nomeadamente, as condições de formação
que lhes permitam desempenhar a sua atividade com qualidade e eficiência”, garantindo
que “será consagrada ainda uma licença sem remuneração precisamente para
formação”. E, respondendo a Gabriela Knaul, que sublinhou o erro do Governo ao
apressar a implementação do mapa judiciário (acentuando a rapidez com que as mudanças ocorreram num
sistema que tinha problemas evidentes e não estava apto a mudar o seu funcionamento
de maneira acelerada), a
Ministra defendeu que “a discussão da reforma decorreu durante vários anos e
foi amplamente participada”.
Todavia,
apesar de acolher a maioria das sugestões da ONU, o Governo não criará a figura
do defensor público (contraposto
ao Ministério Público)
para reduzir os custos no acesso ao direito. A relatora da ONU propôs esta
solução para tornar a justiça mais barata, mas a tutela entende que esse modelo
não goza “da cobertura total do território nacional providenciada pelos cerca
de dez mil advogados que o integram” e garante que os que recorrerem ao apoio
judiciário beneficiarão do mesmo auxílio que o cidadão que dele não necessite, “uma
vez que os advogados que se encontram inscritos são os mesmos advogados que qualquer
cidadão pode contratar”.
***
Ora, se a Ministra acredita na solidez da reforma
da justiça e no novo estatuto dos magistrados, como é que receia a diminuição da
independência dos poderes, nomeadamente do judicial, caso o PS ganhe as próximas
eleições legislativas?
Parece que não acredita mesmo no sistema, caso
contrário não teria receio de falar ao telefone. Ao telefone não dizemos tudo,
mas não falamos como que “para um gravador”. Em circunstâncias normais, temos
de estar seguros de que não somos escutados. E quem tem dúvidas deve intervir
ou suscitar intervenção de quem de direito, não valendo andar a levantar
suspeitas sobre a competência dos trabalhadores, processando-os, demitindo-os e
não ouvir os seus avisos. Como não vale andar de forma aligeirada a apregoar a
liberalização das drogas leves sem definir quaisquer condições ou contrariando
o programa do governo (Passos
disse).
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