segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

O estado sobrecrítico da justiça portuguesa

Esteve recentemente em Portugal, para analisar o estado da justiça a relatora do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), Gabriela Knaul, estando o país no fogo cruzado duma reforma da justiça marcada por severas críticas e duma postura da titular da pasta cheia de intervenções públicas acolhidas de forma bem polémica, mesmo por parte de muitos que se posicionam na área política da Ministra.
Knaul, relatora especial da ONU desde de agosto 2009, foi juíza no Brasil e é especialista em direito penal e em administração de sistemas judiciais. A sua visita a Portugal, a convite do Governo, teve a duração de 8 dias e insere-se na preparação de um relatório sobre o sistema judicial português, que será apresentado ao Conselho de Direitos Humanos, em junho deste ano.
Para conseguir uma abundante e suficiente panóplia de dados, Gabriela Knaul entrevistou, em Lisboa, Coimbra e Porto, diversos agentes do sistema judicial português, como: a procuradora-geral da República, o provedor de Justiça, vários juízes, vários magistrados e funcionários do Ministério Público e vários advogados. Ouviu ainda representantes da sociedade civil.
No passado dia 3 de fevereiro, termo da visita, a relatora em causa já conseguiu fornecer algumas indicações que integram o relatório preliminar sobre a temática do estado da justiça portuguesa, destacando, como alguns dos problemas detetados, atrasos em tribunais, vencimentos de magistrados e ausência de informações a arguidos, bem como observações sobre o sistema informático da justiça e a falta de orçamentos próprios das magistraturas.
Porém, de acordo com a especialista, o trabalho do relatório final irá concentrar-se em questões-chave da administração da justiça, como os “atrasos indevidos, a igualdade de acesso à justiça e a assistência jurídica, em especial para os membros mais vulneráveis da população, como as crianças, os imigrantes, a comunidade cigana ou as mulheres vítimas de violência doméstica”. Por outro lado, o trabalho deverá pôr o acento nas “conquistas e nos desafios do país para garantir a independência do poder judiciário, o livre exercício da profissão de advogado e o acesso à justiça para todos”.
A relatora do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas disse que o poder judicial português não pode estar de joelhos, com o chapeuzinho na mão, aguardando recursos financeiros e administrativos” para funcionarconstituindo esta metáfora uma crítica à dependência financeira do sistema judicial frente ao poder executivo.  “O que me preocupa mais no que diz respeito a Portugal é, realmente, a questão orçamental”, disse ainda Gabriela Knaul. E lembrou, a propósito, que tanto os orçamentos para os Tribunais da Relação e de primeira instância, como para o Ministério Público, são atualmente administrados através do Ministério da Justiça (MJ), o que “parece limitar as possibilidades de responsabilização de juízes e procuradores pela eficiência na execução das suas atividades”. 
Chega mesmo a afirmar categoricamente que “Portugal precisa de uma autonomia financeira e administrativa reforçada”, pois, “esses elementos são essenciais para a eficiência e o bom funcionamento da Justiça portuguesa”.
Em suma, tal como a nível interno, também a ONU sabe que a justiça portuguesa enferma de algumas mazelas: excessivamente gravosa e discricionária nas medidas de coação prévias (demasiado duradouras) a julgamento; lenta e morosa; excessivamente cara; burocraticamente complexa, dado o excesso de formalismo; eivada de expedientes dilatórios; inacessível por parte dos mais vulneráveis; distante da realidade, que é dinâmica; permeável a contradições; pelo menos, aparentemente discriminatória; dependente financeiramente; e, muitas vezes, ineficaz.
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Por seu turno, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) considerou importante “alguém de fora” como a relatora da ONU Gabriela Knaul vir dizer que a “dependência financeira dos tribunais” é um dos principais problemas do sistema judicial português. A este respeito, o Presidente da ASJP, Mouraz Lopes, em declarações à agência Lusa, considerou que as declarações da relatora sobre a necessidade de autonomia financeira e administrativa dos tribunais, por forma a garantir a independência do poder judicial, vão ao encontro das preocupações da ASJP.
Segundo aquele magistrado, a relatora da ONU advertiu que a “dependência financeira dos tribunais é uma questão-chave” e que qualquer reforma da justiça tem que ter presente essa faceta do sistema. Ademais, não basta mudar as leis e efetuar reformas orgânicas; é também preciso que os juízes tenham meios e sejam independentes financeiramente, para “gerir o próprio orçamento da Justiça”. 
Mouraz Lopes assinalou ainda o facto de Gabriela Knaul ter reconhecido que a reforma do mapa judiciário decorreu de forma “apressada”, quando ainda não estavam reunidas as condições necessárias para a fazer, designadamente quanto ao sistema informático, instalações e meios humanos.  Mas o presidente da ASJP admitiu que as preocupações manifestadas no relatório quanto ao sistema judicial não constituem novidade para os operadores judiciários, mas entendeu ser importante que “alguém de fora” venha dizer o mesmo sobre a justiça.
Penso, no entanto, não dever superlativizar o facto de ser “alguém de fora” a denunciar os males da justiça portuguesa, uma vez que os investigadores e relatores que vêm a Portugal não inventam, apenas se estribam no que lhes é dito. A grande vantagem é que, na posse da informação recolhida, podem fazer sobre ela um juízo mais imparcial e objetivo.
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Em resultado da visita da conselheira da ONU a Portugal e das indicações que forneceu, já foram dadas a conhecer algumas das intenções da governação portuguesa.
Assim, para resolver o problema da alegada dependência financeira e demais aspetos de controlo da parte do poder executivo, para lá do novo estatuto dos magistrados cujo debate está em curso, sabe-se que juízes e PGR vão gerir ordenados e horas extra das respetivas magistraturas, assim como vão ser responsabilizados por atrasos nos processos e por melhorar a eficiência nos tribunais. É verdade. Os ordenados dos juízes, as despesas de deslocação e as horas extra vão passar a ser geridos pela própria magistratura. Por via desta gestão orçamental própria, os magistrados passam a ser responsáveis e responsabilizados pelos eventuais atrasos nos processos. É Paula Teixeira da Cruz quem, numa nota enviada à Comunicação Social, garante que a autonomia financeira dos conselhos superiores da Magistratura (CSM) e do Ministério Público (CSMP) vai avançar. Obviar-se-á, deste modo à alegada dependência financeira e a uma das causas da lentidão da Justiça.
“Os grupos de trabalho constituídos para a revisão dos Estatutos da Magistratura Judicial e do Ministério Público discutiram amplamente a questão da autonomia orçamental, financeira e administrativa das magistraturas, tendo consagrado a autonomia administrativa e financeira do Conselho Superior da Magistratura, bem como do Conselho Superior do Ministério Público”, explica a referida nota do gabinete da Ministra da Justiça.
Atualmente, as verbas – destinadas também a material de trabalho como canetas, folhas de papel ou computadores – são geridas pela Direção-Geral da Administração da Justiça do MJ, o que contraria a Lei 36/2007, de 14 de agosto, que estabelece que tal gestão cabe aos respetivos conselhos superiores. Também, a este respeito Mouraz Lopes explica que “esta autonomia financeira será uma decorrência da lei e estará prevista no Orçamento na rubrica de Encargos Gerais do Estado”. Para este ano, no OE estão previstos 919 milhões de euros em despesas com todo o pessoal da Justiça. Com as novas regras, a gestão de cada tribunal será garantida por uma estrutura tripartida, composta pelo juiz presidente, pelo magistrado do Ministério Público coordenador e pelo administrador judiciário. Este terá a seu cargo a parte de gestão do orçamento atribuído a cada tribunal, previamente definido pelos conselhos superiores.
Em 29 de janeiro do ano passado, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça lançou o aviso: “A reorganização supõe igualmente a dotação de condições orçamentais que permitam o reordenamento da estrutura e das capacidades do Conselho Superior da Magistratura para responder às tarefas acrescidas de coordenação que serão exigidas”. Por sua vez, agora a representante da ONU opinou que “a concentração das atribuições de gestão no Ministério da Justiça parece limitar as possibilidades de responsabilização de juízes e procuradores pela eficiência na execução das suas funções”. Com efeito, “um magistrado pode invocar falta de recursos, mas, se lhe forem disponibilizados os meios necessários, será responsabilizado por eventuais falhas ou atrasos”.
Do seu lado, Paula Teixeira da Cruz explicou que “o MJ está a ponderar a introdução, em sede estatutária, de garantias de desempenho e mérito, proporcionando aos magistrados, nomeadamente, as condições de formação que lhes permitam desempenhar a sua atividade com qualidade e eficiência”, garantindo que “será consagrada ainda uma licença sem remuneração precisamente para formação”. E, respondendo a Gabriela Knaul, que sublinhou o erro do Governo ao apressar a implementação do mapa judiciário (acentuando a rapidez com que as mudanças ocorreram num sistema que tinha problemas evidentes e não estava apto a mudar o seu funcionamento de maneira acelerada), a Ministra defendeu que “a discussão da reforma decorreu durante vários anos e foi amplamente participada”.
Todavia, apesar de acolher a maioria das sugestões da ONU, o Governo não criará a figura do defensor público (contraposto ao Ministério Público) para reduzir os custos no acesso ao direito. A relatora da ONU propôs esta solução para tornar a justiça mais barata, mas a tutela entende que esse modelo não goza “da cobertura total do território nacional providenciada pelos cerca de dez mil advogados que o integram” e garante que os que recorrerem ao apoio judiciário beneficiarão do mesmo auxílio que o cidadão que dele não necessite, “uma vez que os advogados que se encontram inscritos são os mesmos advogados que qualquer cidadão pode contratar”.
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Ora, se a Ministra acredita na solidez da reforma da justiça e no novo estatuto dos magistrados, como é que receia a diminuição da independência dos poderes, nomeadamente do judicial, caso o PS ganhe as próximas eleições legislativas?
Parece que não acredita mesmo no sistema, caso contrário não teria receio de falar ao telefone. Ao telefone não dizemos tudo, mas não falamos como que “para um gravador”. Em circunstâncias normais, temos de estar seguros de que não somos escutados. E quem tem dúvidas deve intervir ou suscitar intervenção de quem de direito, não valendo andar a levantar suspeitas sobre a competência dos trabalhadores, processando-os, demitindo-os e não ouvir os seus avisos. Como não vale andar de forma aligeirada a apregoar a liberalização das drogas leves sem definir quaisquer condições ou contrariando o programa do governo (Passos disse).

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