Ontem, 3 de fevereiro, o
Papa Francisco recebeu o Cardeal Angelo Amato, Prefeito da Congregação das
Causas dos Santos em audiência privada, na qual autorizou aquela Congregação a
promulgar os decretos respeitantes ao martírio dos Servos de Deus Oscar
Arnolfo Romero Galdámez, arcebispo
de São Salvador, e de Michele Tomaszek e Sbigneo Strzałkowski, sacerdotes professos da Ordem dos Frades
Menores Conventuais, e de Alessandro
Dordi, sacerdote diocesano – assassinados por ódio da fé – bem como às virtudes
heroicas do também Servo de Deus Giovanni
Bacile, arcipreste decano de Bisacquino.
Dado que os demais não ofereceram qualquer polémica, o
caso que impressionou a opinião pública é o atinente ao arcebispo salvadorenho Salvador
Oscar Romero, assassinado a tiro
enquanto celebrava missa, em 1980, na capela do Hospital de São Salvador.
Apesar de muito crítico do regime militar e da repressão do Exército durante a
guerra civil que opôs o Governo aos rebeldes de esquerda entre 1980-1992, este denodado
defensor público dos pobres e oprimidos foi morto, não por motivos políticos,
mas mártir por causa da sua fé – fé tão consequente que foi assassinado um dia
depois do sermão em que pedia aos soldados do país para que desistissem das
políticas de opressão e de violação de direitos humanos do regime.
Embora não tenha ainda sido estabelecida
a data da beatificação, Francisco já tinha afirmado que caberia ao responsável
da suso Congregação, Angelo Amato, ou ao prelado que defendeu a causa de
Romero, Vincenzo Paglia, decidir quem o beatificará.
A Igreja Católica pode considerar
mártires pessoas que tenham sido mortas por causa da religião, podendo os
mártires ser beatificados mesmo que não lhes tenha sido atribuído milagre algum,
embora, para que possam depois ser canonizados, seja preciso um milagre, a
menos que reúnam os requisitos para a canonização equipolente.
O caso de Romero pode ser um
precedente para uma interpretação mais abrangente de mortes por ódio à fé, por
compaginar um entendimento mais vasto que uma ação apenas contra a crença
pessoal explícita, passando a englobar também um antagonismo em relação ao
trabalho feito pela pessoa por causa da sua fé. Aliás, os textos bíblicos abrem
inquestionavelmente para esta perspetiva: “Bem-aventurados os que sofrem
perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus” (Mt
5,10); e “Felizes
sereis, quando os homens vos odiarem, quando vos expulsarem, vos insultarem e
rejeitarem o vosso nome como infame, por causa do Filho do homem” (Lc,
6,22). Não parece
que o “por causa do Filho do Homem” implique necessariamente a adução explícita
do nome de Cristo, até porque biblicamente o nome significa o ser e a missão
específica da pessoa.
***
É voz corrente que, durante anos,
a Igreja bloqueara o processo de Romero, confundindo a sua ação com a Teologia
da Libertação, em certa medida conotada com as dinâmicas marxistas. E conhece-se
a relutância manifestada por João Paulo II e por Bento XVI pela Teologia da Libertação
qua tali, motivada pela não visível
descolagem das perspetivas de Marx e pelo desconhecimento da realidade
latino-americana, em parte devido à desinformação prestada por alguns dos
prelados mais ligados aos poderes instituídos. No entanto, não será legítimo
duvidar do empenho de João Paulo II pela causa dos pobres (que,
em 2000, quis incluir Romero na celebração do Jubileu dos Mártires), bem como da evolução
verificada durante o seu pontificado em relação à causa de Óscar Romero, como
se verá mais adiante, e de algumas posições do próprio Bento XVI (que
desbloqueou a causa de canonização, em dezembro de 2012). Com efeito, Cristo não só
procurou libertação do pecado, mas de todos os tipos de opressão.
No entanto, a decisão clara foi
tomada por Francisco, que reabriu o processo de Romero, um dos heróis dos
católicos da América Latina, quando foi eleito Papa em 2013 e ao qual se
referiu publicamente algumas vezes.
O que aconteceu foi que, segundo
o postulador da causa de canonização do arcebispo, D. Vicenzo Paglia, Óscar
Romero, foi um bispo “fiel” ao magistério da Igreja e seguiu o ensinamento do
Concílio Vaticano II, recusando uma 'Teologia da Libertação' que tivesse em
vista apenas “a libertação material”. E explicitou o atual presidente do Pontifício
Conselho da Família (Santa Sé), em conferência de imprensa: “Romero é
verdadeiramente um mártir da Igreja do Vaticano II, uma Igreja que é mãe de
todos, particularmente dos mais pobres”. O postulador da canonização revelou
aos jornalistas que a decisão sobre o martírio mereceu juízo unânime da
comissão teológica e da comissão dos cardeais que analisaram o caso.
Paglia recordou que vários padres tinham sido assassinados
durante o conflito em El Salvador e que, em relação ao arcebispo, “havia um
clima de perseguição contra um pastor que, seguindo a inspiração evangélica,
escolheu viver no meio dos pobres para os defender da opressão”. Porém, “não
havia motivos ideológicos”, relevou, rejeitando que D. Óscar Romero servisse um
pensamento “pseudomarxista”, precisando que o prelado “foi morto porque
escolheu a justa perspetiva” da Igreja Católica, “atenta à paz, à justiça e à
verdade evangélica”.
Aquele responsável pontifício sustentou que a acusação de
comunismo era uma “acusação fácil” que se fazia contra quem estava perto dos
pobres e recordou que o prelado salvadorenho foi morto durante a Missa e não em
casa ou na rua: “Queriam matá-lo no altar”.
***
Entretanto, D. Gregorio Rosa, amigo e colaborador do venerável arcebispo
salvadorenho, veio a Portugal, em maio de 2013, a convite dos Missionários da Consolata, falar sobre o pensamento e a espiritualidade
deste insigne homem de Igreja. E, no dia 22, concedeu entrevista à agência Ecclesia, de que se respigam os dados
mais significativos, para que se afastem todas as dúvidas.
Rosa conta que
Romero era um sacerdote de 40 anos, quando
o amigo, aos 15 anos, iniciava os estudos no seminário menor, tendo trabalhado
com ele um ano inteiro no seminário menor de San Miguel, como seu assistente,
em 1968.
O seu nome aparece muitas vezes no
diário do arcebispo por serem muito próximos. E aparece sobretudo quando D. Oscar, enquanto arcebispo, tinha de
preparar relatórios para Roma, para se explicar e defender de ataques injustos
que lá chegavam contra ele.
Por outro lado,
como jornalista, D. Gregorio preparou com ele,
muitas vezes, um programa de rádio, de 30 minutos, que era transmitido todas as
semanas. Colocava-lhe questões muito provocadoras e uma vez perguntou-lhe se
ele se tinha transformado, tendo ele esclarecido que não se tratava de
transformação, mas de uma evolução. É uma ideia que ele refere que Romero
explicita num documentário da televisão suíça em 1979, um ano antes de morrer: quando
era bispo no interior do país, via as coisas de uma forma, mas, quando chegou a
arcebispo e passou a estar na capital, descobriu de forma brutal o que é a violência
estrutural, o que é a injustiça institucionalizada. E sentiu a vocação de
acompanhar um povo esmagado pela violência, pela repressão, pelos esquadrões da
morte, e de ser voz dos que não têm voz.
Ora, os profetas nunca são
compreendidos. E Romero foi evoluindo para uma missão profética. Nas homilias
falava muito do tema do profeta e comparava a missão de Jesus com a missão dos
profetas. Ele foi um profeta – incompreendido, perseguido, assassinado. É muito
fácil perceber, a partir daí, o que foi a missão de Romero, a sua opção, a sua
vida e o seu martírio – a vida de um profeta fiel à sua missão, porque foi
acima de tudo um discípulo de Jesus Cristo.
Sobre as dificuldades
que ensarilharam o processo de beatificação de D. Oscar Romero, Gregorio Rosa fez uma breve resenha histórica: Romero foi incompreendido em primeiro lugar pelos
seus irmãos bispos – quando era arcebispo, eram seis bispos no país, quatro
contra dois, tinha apenas um bispo a seu favor, que foi depois seu sucessor em
San Salvador, D. Arturo Rivera Damas. Quando havia votações, este perdia
sempre. Romero terá dito uma vez, falando com jovens de um colégio católico:
“Para uns sou a causa de todos os males do país, para outros sou o pastor que
acompanha o povo”. Há, portanto, duas visões sobre D. Oscar: o homem recusado e
o homem amado como pastor.
Vem, depois, um segundo momento: Romero
é assassinado por um grupo preparado por um militar, Roberto
D'Aubuisson, que fundou o partido político ARENA, partido que chegou ao poder, governando durante
20 anos – período de tempo em que não se interessou por Romero, mas em ir
contra ele, já que tinha morrido por causa deles. Por isso, Roma nunca teve um
sinal positivo sobre a canonização por parte do Governo, porque Romero era um
inimigo.
Há relativamente pouco tempo, surgiu
um primeiro Governo de esquerda, que levou Romero a sério. O presidente Mauricio Funes, no dia da sua
proclamação, proclamou: “Romero é a minha inspiração, o meu modelo, e quero
como ele optar pelos pobres e seguir os seus ensinamentos”. Assim, Roma começa
a ouvir algo diferente, nos últimos anos.
Um terceiro elemento é que Romero é
um Santo incómodo, pois os profetas são incómodos. É como Jeremias: é incómodo
e querem acabar com ele. Estes santos desinstalam-nos, tiram-nos do sítio,
obrigam-nos a rever a nossa vida medíocre – um fator contra Romero. Todavia, há
uma corrente cada vez maior em seu favor e os Papas foram entendendo isto. João
Paulo II entendeu Romero a partir do ano de 1983, quando visitou o seu túmulo. E
acabou por compreendê-lo bem a partir dos anos 2000 e 2001, quando confessou
que era um mártir da Igreja.
Não foi fácil a João Paulo II
entender como é que um bispo é morto por cristãos, como eram os comunistas de
El Salvador – que não eram como os da Polónia ou da Europa de Leste. Foi-o,
finalmente, compreendendo: era outra visão da esquerda, um problema complexo
que se foi esclarecendo.
O secretário do Papa polaco, D.
Estanislau (Dziwisz), ora arcebispo de Cracóvia, no livro ‘Uma vida com Karol’ – refere D. Gregorio – dedica ao martírio um
capítulo, no qual fala de apenas um mártir, Romero, relatando dois factos significativos
relacionados com João Paulo II:
– Em 1983, antes da visita a El Salvador,
aconselharam o Papa a não visitar o túmulo de Romero, por ser um tema muito
politizado. Mas o Papa respondeu: “Como
não o vou visitar, se morreu no altar, durante a Eucaristia”? As pressões
no país continuaram, mas o Papa levou a dele por diante e visitou o túmulo.
– Também no ano 2000, a propósito do
Jubileu dos Mártires, a 7 de maio, no Coliseu, na quarta-feira anterior,
anunciou-se na sala de imprensa da Santa Sé como seria a cerimónia, uma grande
paraliturgia, e perguntava-se que mártires deveriam ser evocados por cada Continente.
Da América Latina, foram mencionados três nomes de bispos, mas não apareceu o
de Romero, e os jornalistas perguntaram porque é que não constava o nome dele.
Houve, consequentemente, uma reação em Roma, muito forte, de protesto. Dois
dias depois, João Paulo II convidou vários cardeais, para jantar, entre eles o
cardeal Kasper, que também referiu o que vem no mencionado livro: o Papa pediu
o livro que ia ser usado na cerimónia dos mártires, procurou a página da
América Latina e a oração conclusiva dessa secção, onde escreveu “bispos como o inesquecível monsenhor
Romero, que entregou a sua vida no altar”. E teve de se fazer um novo
folheto. Há, pois, dois folhetos, o que se ia utilizar, sem referência a
Romero, e o que se usou, mencionando-o. Foi este o único nome evocado.
E, no mês de novembro de 2001, aquando
da visita ‘ad Limina’ com João Paulo II, no momento pessoal com o Papa, o
arcebispo Fernando Sáenz Lacalle chegou e, com ele, D. Gregorio Rosa. O Papa
estava muito cansado, muito doente, não reagia ao que dizia o arcebispo, mas de
repente levantou a cabeça e perguntou: “E
Monsenhor Romero?” O arcebispo respondeu: “Estamos a falar sobre a devoção,
não sabemos se há algum milagre por sua intercessão…”. O Papa pôs-se de pé, pegou na bengala e exclamou: “É um martírio”. E foi-se
embora.
João Paulo II foi compreendendo, entendeu
o que se passou com Romero e chegou à conclusão de que é um mártir da Igreja.
Ainda, no ano 2000, por ocasião da celebração do 20.º aniversário
da morte de Romero, houve uma grande marcha nas ruas de San Salvador, com
archotes – conta o entrevistado. Havia bispos italianos interessados na marcha,
que ficaram surpreendidos ao verem que os jovens gritavam na marcha: “a gente
sente, a gente sente, Romero está presente”.
E D. Gregorio Rosa conclui:
Os jovens precisam de algo que dê sentido à sua vida e
veem em Romero um discípulo de Jesus Cristo, coerente com o que diz, com o que
faz, e as pessoas precisam de modelos assim. Hoje vivemos num mundo que não tem
modelos, não tem líderes. Romero é um líder, um modelo para os jovens de hoje,
para as pessoas, e por isso é um santo muito atual.
***
Por mim, que participei em Portugal,
no ano de 1980, numa singela celebração religiosa em sufrágio por si enquanto vítima
do poder opressivo e repressivo, adorei conhecer um pouco mais do histórico
respeitante ao percurso da beatificação de D. Oscar Romero e folgo pelo facto de
ele se ter tornado um ícone para a juventude das novas gerações.
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