O enunciado, que poderia
sustentar reflexão a propósito de várias outras situações, vem agora a
propósito do panorama que, nos últimos dias, envolve Portugal e os portugueses
de forma interna e alargada na área da saúde: situação caótica.
À confusão que se instalou nas
urgências hospitalares e respetivas “salas” de espera, onde morreram pessoas em
número significativamente superior ao expectável, juntou-se o caso de alguém (uma
pessoa em concreto, original e irrepetível – não um número) por inacessibilidade ao novo medicamento
contra a hepatite C, obscena e astronomicamente dispendioso.
A isto, o considerado competente
Ministro da Saúde responde que o Governo não garante a saúde a qualquer preço,
corrigindo, logo a seguir, perante a reação estarrecida de deputados e público,
que não pode pactuar com os interesses monopolistas.
Por seu turno, o senhor
Primeiro-Ministro declarou que estes problemas não se resolvem “custe o que
custar”, mas esquece-se de que os portugueses tiveram, nos anos de duração da
sua governação, de passar contínua e progressivamente por todos os sacrifícios
que Sua Excelência entendeu dever impor custasse
o que custasse, em nome da inevitabilidade do cumprimento dos compromissos
assumidos ante os credores internacionais, como expiação por havermos vivido
acima das nossas possibilidades, segundo o que nos apontam caluniosamente.
Situações parecidas com a atual
têm sucedido noutras ocasiões relativamente a algumas doenças crónicas, de que
se destaca a resultante do vírus VIH/SIDA (já mal nos lembramos da
polémica) e algumas
situações de doença do foro oncológico (ainda recentemente uma
intervenção cirúrgica desta ordem foi adiada por duas vezes no Centro
Hospitalar de Entre Douro e Vouga).
***
É dito e redito que a
responsabilidade de cuidar da vida própria e do semelhante é obrigação de cada
um e de cada comunidade em relação aos seus membros. Tanto assim que
tradicionalmente se dizia caber a cada comunidade cuidar dos seus pobres,
tratar dos seus doentes, impedir a morte de seus semelhantes e rodear a morte
inevitável da dignidade inerente à condição do ser humano. O princípio basilar
é que não se pode deixar que as pessoas
morram, sem que se faça tudo para o evitar. E tem sido tão triste como criticável
o facto de tantas pessoas terem morrido isoladas, tendo-se dado conta do seu
óbito dias, semanas e até meses depois – o que tem vindo a merecer – e bem – as
atenções de alguns agentes de segurança e pessoas de boa vontade.
Ora, esta obrigação como as
similares, que impendem sobre cada cidadão e a comunidade que ele integra,
obriga de forma eminente e inquestionável o Governo da República (bem
como o poder autárquico)
e os seus competentes serviços, quando os cidadãos ou a comunidades não o podem
fazer por si. E não há diretivas internacionais, credores, troikas, indústrias,
redes, lóbis, catástrofes que inocentem ou desculpem o Governo do cumprimento
dos seus deveres vitais.
Se o medicamento existe, não há razão
por que não o chamar ao mercado português. Se o país deteta uma situação de vida
ou de morte, não há legitimidade para, em nome do cifrão, da dificuldade (por
vezes, inabilidade e falta de vontade)
negocial ou da autonomia do poder económico e empresarial, deixar morrer uma
pessoa. A pessoa pode morrer, mas que não seja por não se fazer tudo para a
salvar. Há que evitar a morte a todo o custo, sim, a todo o custo.
Reagir aos acontecimentos como
catástrofes naturais, surtos epidémicos ou mesmo pandémicos, situações gravosas
para a saúde pública é próprio de gente comum. Porém, a um Governo decente
compete antecipar-se, planear, criar serviços e zelar pela sua manutenção e
otimização, dotar a estruturas de recursos (humanos, financeiros,
materiais e logísticos)
e vigiar pela organização funcionamento e avaliação do desempenho das pessoas e
dos sistemas. É óbvio que tudo deve ser feito de forma racional (sem
lugar a prodigalidades supérfluas ou desperdícios), mas sem que ninguém nem nada falte na ocasião da
necessidade.
Compete ao Governo, ao invés de
se ajoelhar acrítica e servilmente perante os ditames internacionais (se
se tratasse de meras diretrizes, seriam úteis), zelar pelo bem-estar dos cidadãos, mormente
quando a vida ou a saúde estão em grave perigo.
Há pouco menos de um mês, o
advogado José Miguel Júdice chamava “procônsul” a um dos nossos ex-Ministros
das Finanças pelo facto de sujeitar o país literalmente às regras
internacionais, sem que se esgotassem todas as possibilidades e formas de
negociação. Parece-me a mim que isto funciona como no âmbito militar: os
superiores hierárquicos mandam e os inferiores obedecem.
Mas a situação torna-se extremamente
grave quando os diversos ministros se veem obrigados a obedecer à ditadura do
Ministro das Finanças. Assim como governo que não aposte tudo na negociação com
as instâncias internacionais (com quem temos pactos de mútua cooperação) deixa de ter direito a apresentar-se
como legítimo (não falo da legitimidade meramente
formal), também um
Ministro que não leve até ao máximo a reivindicação dos meios para a gestão eficaz
da sua pasta (Desde quando é que é tolerável a necessidade de
autorização do/a Ministro/a das Finanças, ad
casum, para contratar pessoal para urgência em tempos de crise aguda?) não merece continuar a ser
ministro de um governo democrático.
E pior que um governo servir de
“procônsul” de poderes políticos europeus, é sê-lo de empresas farmacêuticas
nacionais, estrangeiras e multinacionais, a ponto de poderem ganhar num produto
vital tanto como 5000% sobre o custo real. Mas que admiração, quando se
instalou no Estado o “proconsulado” da Banca e instituições financeiras (É
o sistema! – dizem.),
dos grandes grupos económicos, das grandes sociedades! Recordem os SWAP e as
PPP!
***
No ponto agudo da crise, passam
as culpas de mão em mão, tal como as pombinhas da Cat’rina: os hospitais dizem
que a culpa é do Ministério da Saúde; este passa-a ao Ministério das Finanças;
e o Chefe do Governo diz que não há falta de pessoas (de médicos
e enfermeiros, diga-se)
nem de dinheiro. Até desafiou ontem os empresários privados das áreas do ensino
superior a criar escolas de formação de médicos (não é por falta
de dinheiro) em Santa
Maria da Feira, tal como o fazem para criar unidades de saúde privada.
Um hospital, cujo nome me escuso
de enunciar, porque não é digno de tal, aduziu que a sua paciente de hepatite C
morreu porque quis: vinha recusando tratamentos alternativos. Embora saibamos
que o primeiro responsável pela sua cura é o próprio paciente, também sabemos
como em determinadas situações o desespero pode mais que o homem. Pelo que se
pergunta qual a capacidade de motivação de uma unidade de saúde junto dos seus
utentes para urgir o tratamento, a menos que os profissionais de saúde se
encontrem esgotados das suas energias para lá do limite.
Depois, a empresa farmacêutica
apontada a dedo desculpa-se com o facto de o hospital nunca ter requisitado o
medicamento, pois, caso o tivesse efeito, o medicamento teria sido
disponibilizado sem custos. É caso para recordar o adágio: “Depois de filha
casada, não lhe faltam pretendentes”.
***
É óbvio que, se quem manda são os
cifrões e os governantes se tornam procônsules de quem manipula todos ou a
maior fatia dos cifrões, em vez se serem os provedores dos cidadãos e das
comunidades, a política seguida é a da eufemística “racionalização de meios”,
baseada no tautológico enunciado de que “os recursos não são inesgotáveis”. E
vai daí: fecham-se serviços, mesmo de urgência, sem ampliação dos serviços de
acolhimento; agrupam-se serviços, com a mira da poupança de gestores e pessoal
administrativo; operam-se cegos e avultados cortes orçamentais; pressionam-se
serviços para que economizem, impedindo ações, pesquisas e atenções consideradas
essenciais, chegando a invadir áreas de competência que deveriam ser autónomas
dos pontos de vista científico, técnico, profissional e gestionário. Enfim, há
falta gravosa de pessoal, meios e serviços. E gera-se o caos! É assim na saúde:
está à vista. Veja-se o que se passa noutras áreas. E a situação é parente bem
próximo: educação, justiça, segurança pública, forças armadas e por aí adiante.
***
Cumpre, no entanto, salientar a
postura da presidente da Comissão de Saúde, que, confrontada com intervenções
intempestivas da parte de gente do público, lembrou e relembrou com serenidade
que os cidadãos não podem manifestar-se; porém, não se enervou e não impediu
que ressoasse na sala o apelo, quase preceito de um doente de hepatite C:
“Senhor Ministro, não me deixe morrer!”.
E é este apelo-preceito que o
Ministro, o médico, o enfermeiro, o farmacêutico, o bombeiro familiar, o amigo,
o vizinho devem escutar e atender até ao limite das suas forças: “Não me deixe
morrer!”.
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