sábado, 7 de fevereiro de 2015

As crianças devem ter aulas de política na escola?

O enunciado que eu coloco sob a forma de questão, coloca-o sob a forma de asserção Pedro Boucherie Mendes no seu livro Cemitério dos Prazeres – os portugueses e as suas manias, da Oficina do Livro, 2011.
Como o comum dos observadores, também este analista, semi-humorista, verifica que, “regra geral, a política não só não interessa como é tida como território de manigâncias, corruptos e gente diferente de nós, para pior”. Tanto assim é que alguns que desempenham cargos públicos, legal e estatutariamente, entregues a figuras políticas fazem questão, não de dizer que são partidariamente independentes, mas que não são políticos. Disse-o Salazar, disse-o Cavaco e disse-o o atual Ministro das Finanças da Grécia, Yanis Varoufakis. Os dois primeiros serviram a política numa missão largamente prolongada (Salazar 40 anos, Cavaco vai a caminho dos 21); do grego, a ver vamos. Vítor Gaspar, quando alguém no Parlamento disse que ele fora eleito para…, enervou-se e gritou: “Eu não fui eleito coisíssima nenhuma!”.
Os próprios magistrados, a cada passo, distinguem a magistratura e os “políticos”, atirando para estes a principal responsabilidade do estado a que as coisas chegaram, como se os tribunais não fossem órgão de soberania e, portanto, poder político segundo a Constituição (CRP). Recordo que a parte III da CRP trata da organização do poder político (órgãos de soberania – Presidente da República, Assembleia da República, Governo, Tribunais; outros poderes políticos – regiões autónomas, poder local, administração pública, defesa nacional).
Provavelmente, não olhamos para as coisas com olhos de ver, temos um certo receio ou somos hipócritas. O desempregado esquece-se de que a sua situação se deve não somente à lógica empresarial, mas sobretudo à falta de políticas públicas, sustentáveis, sólidas e coerentes de empregabilidade e emprego. Também, num sentido lato, há políticas de empresa, de serviço ou de instituição – muitas vezes, sob a designação de direção estratégica e/ou supervisão – à luz das quais se pautam o planeamento, a organização, o funcionamento, a avaliação e a expansão da respetiva unidade orgânica ou grupo de unidades.
Temos receio de que nos conotem com as subserviências aos aparelhos partidários, com o tachismo, a corrupção, o compadrio, o locupletamento com dinheiros públicos ou a falta de palavra. No entanto, se nos é dada a oportunidade, nós, mesmo que iniciemos com o estatuto de independente (ou colaboradores em estados gerais, debate sem fronteiras ou laboratório de ideias…) aderimos a partido que nos dê visibilidade, contrapartidas e lugar público, com dinheiro e mordomias. Ademais, o citado analista dá exemplos para sustentar a tese de que “a nossa política é a política do particular, do nosso metro quadrado”. Diz ele que, por exemplo, “se formos caçadores e aparecer uma nova lei que nos impede de atirar aos coelhos e se formos cartomantes e vier uma lei que nos obrigue a pagar impostos, aí sim, discutimos política com a demagogia dos melhores”.
Afinal, nós somos políticos quando nos interessa. Assim, quando precisamos de reivindicar salários, direitos sociais, benefícios para a nossa família, terra ou quinta, sabemos as leis todas e sabemos utilizar o nosso capital de relação ou dispor de quem o possua. Vale tudo quando estão em causa os nossos interesses ou, como diz Boucherie Mendes, “só quando nos toca diretamente num caso concreto é que a política é lembrada. De resto, preferimos a praia, o campo ou o cómodo do nosso cantinho ao cumprimento do dever cívico ou exercício político do direito do voto em eleições (europeias, legislativas e presidenciais, bem como nos referendos). Já nas autárquicas, porque se movem outros interesses – os nossos – somos menos faltosos.
Conquanto, tenha sido determinado que o voto é secreto, para preservar, tanto quanto possível, a liberdade de voto, suscitar o à vontade do cidadão eleitor e evitar represálias do caciquismo que anda persiste ou do neocaciquismo que tende a instalar-se nalguns ambientes, concordo com a estranheza de Boucherie Mendes. Efetivamente, se os cidadãos falam com à vontade da sua pertença a clube, a associação ou a escola, porque hão de esconder sistematicamente o sentido do seu voto, a não ser quando tal se torna útil para fazer cobranças ou para nos afastarmos socialmente deste ou daquele político que acabou por desagradar à comunidade, depois de um período em que o agora postergado foi maioritariamente seguido, obedecido, indiscutido, aceite ou tolerado?
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Ora, se o grande benefício da democracia é a redução do risco de incerteza e a relativização das consequências de um engano dos eleitores (de 4 em 4 anos podemos corrigir o sentido de voto nos deputados e nos autarcas; e de 5 em 5, no Presidente da República e nos eurodeputados), não há motivo para incorrermos na tentação de encarar supersticiosamente a política como um azar de que é necessário fugir. Pelo contrário, o cidadão deve ser político: votar sempre que surja a oportunidade de eleição e/ou referendo; militar num partido político se se revê no seu ideário e práxis e vê que, através dele, pode contribuir para a causa pública; manter-se independente e alinhar nas iniciativas que, no momento, achar mais necessárias e/ou meritórias para a sua ação em prol do bem comum; intervir pelos meios de que dispuser, com ideias, críticas e sugestões, sempre que necessário e pertinente; encarregar-se com zelo das missões que lhe forem confiadas; e, sobretudo, informar-se e informar os outros sobre doutrinas e factos de relevante interesse.
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O citado autor vai ao ponto de dizer que “gostaria de que houvesse disciplinas de introdução à política desde o ensino básico”. Para além de obstar à ignorância crassa e alastrante nesta matéria e evitar confusões recorrentes ou ter as pessoas motivadas para a prática da cidadania, Boucherie Mendes está escudado, talvez sem o pensar, na CRP e na própria Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE).
O n.º 2 do art.º 73.º da CRP estabelece:
“O Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida coletiva”.

Poderá alguém convencer-me de que “a participação democrática na vida coletiva” será uma coisa diferente de política? E poderá desenvolver-se uma personalidade sem dimensão social e política? Deixemo-nos de eufemismos ao remeter a intervenção política não partidária para o “mero” aspeto cívico.
Por seu turno, a LBSE no n.º 5 do art.º 2.º, que estabelece os princípios gerais do sistema educativo e da educação, refere:
“A educação promove o desenvolvimento do espírito democrático e pluralista, respeitador dos outros e das suas ideias, aberto ao diálogo e à livre troca de opiniões, formando cidadãos capazes de julgarem com espírito crítico e criativo o meio social em que se integram e de se empenharem na sua transformação progressiva”.

Ora, a “transformação progressiva” do “meio social” resulta de política e de políticos para o que são convocados os “cidadãos capazes”. Por outro lado, a mesma LBSE dispõe na alínea i) do art.º 7.º (objetivos do ensino básico):
“Proporcionar a aquisição de atitudes autónomas, visando a formação de cidadãos civicamente responsáveis e democraticamente intervenientes na vida comunitária”.

O que é intervir democraticamente na vida comunitária que não configure ação ou ato político?
No atinente aos objetivos do ensino secundário, a alínea d) do art.º 9.º da LBSE estabelece:
“Formar (…) jovens interessados na resolução dos problemas do País e sensibilizados para os problemas da comunidade internacional”.

Está bom de ver que os problemas do País e os da comunidade internacional se equacionam e resolvem através de políticas e com políticos.
Assim, hoje se fala de políticas públicas, talvez para distinguir de políticas de empresa ou de associação e de profissão. E, se a CRP estabelece políticas económicas e financeiras, como é que trabalhadores esclarecidos, profissionais autónomos, gestores, economistas, médicos, arquitetos ou engenheiros não hão de conhecer regulamentos, leis e códigos que emanam de órgãos políticos e/ou de direção estratégica e encará-los de forma crítica?
Por isso, a introdução à política deveria constituir matéria curricular no ensino básico e no ensino secundário. E não vale a pena tapar o sol com a peneira argumentando que a educação para a cidadania é transversal a todas as disciplinas. É-o, mas não o é suficiente. É mesmo necessário, para gerar conformação com a Constituição e com os princípios gerais da educação, bem como para cumprir os objetivos do ensino básico e do secundário, criar e manter uma disciplina de “introdução à política”, que bem pode ser designada de “educação para a cidadania” ou de “formação cívica”, desde que não receie a componente política e não deixe de prestar informação e fazer formação adequada ao respetivo nível de ensino sobre matéria política explícita.
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O Ministério da Educação foi criando sucessivamente a área-escola e a formação cívica. Porém, a primeira não respondeu minimamente aos objetivos de cidadania e política; a segunda serviu, o mais das vezes, para o diretor de turma acertar contas com os alunos sobre faltas, comportamentos, recados e pouco mais. Agora, resolveu-se o problema (?!) criando o nada ou remetendo o caso para a transversalidade e instrumentalidade, confiando a tarefa de avaliar aos professores das diversas disciplinas pesando já na classificação da respetiva disciplina.
Finalmente, oferece-se-me recordar que, muito embora hoje se apele à mobilização e intervenção da sociedade civil (como contraponto à intervenção política e dos políticos qua tali), não é justo esquecer que “civis” e “civitas” eram, no império romano, respetivamente o homem (“vir”, varão) que tinha o direito e o dever de participar nas decisões da comunidade (o cidadão) e o conjunto desses homens (“cidade” por contraposição à “urbe”, “casario”). E aqueles termos latinos eram os justamente equivalentes de “politês” e “pólis”, gregos. Depois, tínhamos em Roma a “civilitas”, como ciência e arte de governar, igualdade de direitos, civilidade, delicadeza; e na Grécia, “politicón”, como o mesmo sentido.

Assim, para evitar equívocos, juntemos direitos (e deveres) civis e políticos e não os separemos. De outro modo, sejamos cidadãos sem deixar de ser políticos, pois, já Aristóteles ensinava que “o homem é um animal político”.

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