O enunciado que eu coloco sob a
forma de questão, coloca-o sob a forma de asserção Pedro Boucherie Mendes no
seu livro Cemitério dos Prazeres – os
portugueses e as suas manias, da Oficina do Livro, 2011.
Como o comum dos observadores,
também este analista, semi-humorista, verifica que, “regra geral, a política
não só não interessa como é tida como território de manigâncias, corruptos e
gente diferente de nós, para pior”. Tanto assim é que alguns que desempenham
cargos públicos, legal e estatutariamente, entregues a figuras políticas fazem
questão, não de dizer que são partidariamente independentes, mas que não são
políticos. Disse-o Salazar, disse-o Cavaco e disse-o o atual Ministro das
Finanças da Grécia, Yanis
Varoufakis. Os dois primeiros serviram a política numa missão
largamente prolongada (Salazar 40 anos, Cavaco vai a caminho
dos 21); do grego, a
ver vamos. Vítor Gaspar, quando alguém no Parlamento disse que ele fora eleito
para…, enervou-se e gritou: “Eu não fui
eleito coisíssima nenhuma!”.
Os próprios magistrados, a cada
passo, distinguem a magistratura e os “políticos”, atirando para estes a
principal responsabilidade do estado a que as coisas chegaram, como se os
tribunais não fossem órgão de soberania e, portanto, poder político segundo a
Constituição (CRP).
Recordo que a parte III da CRP trata da organização do poder político (órgãos
de soberania – Presidente da República, Assembleia da República, Governo,
Tribunais; outros poderes políticos – regiões autónomas, poder local,
administração pública, defesa nacional).
Provavelmente, não olhamos para
as coisas com olhos de ver, temos um certo receio ou somos hipócritas. O
desempregado esquece-se de que a sua situação se deve não somente à lógica
empresarial, mas sobretudo à falta de políticas públicas, sustentáveis, sólidas
e coerentes de empregabilidade e emprego. Também, num sentido lato, há
políticas de empresa, de serviço ou de instituição – muitas vezes, sob a
designação de direção estratégica e/ou supervisão – à luz das quais se pautam o
planeamento, a organização, o funcionamento, a avaliação e a expansão da
respetiva unidade orgânica ou grupo de unidades.
Temos receio de que nos conotem
com as subserviências aos aparelhos partidários, com o tachismo, a corrupção, o
compadrio, o locupletamento com dinheiros públicos ou a falta de palavra. No
entanto, se nos é dada a oportunidade, nós, mesmo que iniciemos com o estatuto
de independente (ou colaboradores em estados gerais,
debate sem fronteiras ou laboratório de ideias…) aderimos a partido que nos dê visibilidade,
contrapartidas e lugar público, com dinheiro e mordomias. Ademais, o citado
analista dá exemplos para sustentar a tese de que “a nossa política é a
política do particular, do nosso metro quadrado”. Diz ele que, por exemplo, “se
formos caçadores e aparecer uma nova lei que nos impede de atirar aos coelhos e
se formos cartomantes e vier uma lei que nos obrigue a pagar impostos, aí sim,
discutimos política com a demagogia dos melhores”.
Afinal, nós somos políticos
quando nos interessa. Assim, quando precisamos de reivindicar salários,
direitos sociais, benefícios para a nossa família, terra ou quinta, sabemos as
leis todas e sabemos utilizar o nosso capital de relação ou dispor de quem o
possua. Vale tudo quando estão em causa os nossos interesses ou, como diz
Boucherie Mendes, “só quando nos toca diretamente num caso concreto é que a
política é lembrada. De resto, preferimos a praia, o campo ou o cómodo do nosso
cantinho ao cumprimento do dever cívico ou exercício político do direito do
voto em eleições (europeias, legislativas e presidenciais,
bem como nos referendos).
Já nas autárquicas, porque se movem outros interesses – os nossos – somos menos
faltosos.
Conquanto, tenha sido determinado
que o voto é secreto, para preservar, tanto quanto possível, a liberdade de
voto, suscitar o à vontade do cidadão eleitor e evitar represálias do
caciquismo que anda persiste ou do neocaciquismo que tende a instalar-se
nalguns ambientes, concordo com a estranheza de Boucherie Mendes. Efetivamente,
se os cidadãos falam com à vontade da sua pertença a clube, a associação ou a
escola, porque hão de esconder sistematicamente o sentido do seu voto, a não
ser quando tal se torna útil para fazer cobranças ou para nos afastarmos
socialmente deste ou daquele político que acabou por desagradar à comunidade,
depois de um período em que o agora postergado foi maioritariamente seguido,
obedecido, indiscutido, aceite ou tolerado?
***
Ora, se o grande benefício da
democracia é a redução do risco de incerteza e a relativização das
consequências de um engano dos eleitores (de 4 em 4 anos podemos
corrigir o sentido de voto nos deputados e nos autarcas; e de 5 em 5, no
Presidente da República e nos eurodeputados), não há motivo para incorrermos na tentação de
encarar supersticiosamente a política como um azar de que é necessário fugir.
Pelo contrário, o cidadão deve ser político: votar sempre que surja a
oportunidade de eleição e/ou referendo; militar num partido político se se revê
no seu ideário e práxis e vê que, através dele, pode contribuir para a causa
pública; manter-se independente e alinhar nas iniciativas que, no momento,
achar mais necessárias e/ou meritórias para a sua ação em prol do bem comum;
intervir pelos meios de que dispuser, com ideias, críticas e sugestões, sempre
que necessário e pertinente; encarregar-se com zelo das missões que lhe forem
confiadas; e, sobretudo, informar-se e informar os outros sobre doutrinas e
factos de relevante interesse.
***
O citado autor vai ao ponto de
dizer que “gostaria de que houvesse disciplinas de introdução à política desde
o ensino básico”. Para além de obstar à ignorância crassa e alastrante nesta
matéria e evitar confusões recorrentes ou ter as pessoas motivadas para a
prática da cidadania, Boucherie Mendes está escudado, talvez sem o pensar, na CRP
e na própria Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE).
O n.º 2 do art.º 73.º da CRP
estabelece:
“O
Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a
educação, realizada através da escola
e de outros meios formativos,
contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades
económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de
solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a
participação democrática na vida coletiva”.
Poderá
alguém convencer-me de que “a participação democrática na vida coletiva” será
uma coisa diferente de política? E poderá desenvolver-se uma personalidade sem
dimensão social e política? Deixemo-nos de eufemismos ao remeter a intervenção
política não partidária para o “mero” aspeto cívico.
Por
seu turno, a LBSE no n.º 5 do art.º 2.º, que estabelece os princípios gerais do
sistema educativo e da educação, refere:
“A
educação promove o desenvolvimento do espírito democrático e pluralista,
respeitador dos outros e das suas ideias, aberto ao diálogo e à livre troca de
opiniões, formando cidadãos capazes de
julgarem com espírito crítico e criativo o meio social em que se integram e
de se empenharem na sua transformação
progressiva”.
Ora,
a “transformação progressiva” do “meio social” resulta de política e de
políticos para o que são convocados os “cidadãos capazes”. Por outro lado, a
mesma LBSE dispõe na alínea i) do art.º 7.º (objetivos do
ensino básico):
“Proporcionar
a aquisição de atitudes autónomas, visando a formação de cidadãos civicamente
responsáveis e democraticamente intervenientes na vida comunitária”.
O
que é intervir democraticamente na vida comunitária que não configure ação ou ato
político?
No
atinente aos objetivos do ensino secundário, a alínea d) do art.º 9.º da LBSE
estabelece:
“Formar
(…) jovens interessados na resolução dos problemas do País e sensibilizados
para os problemas da comunidade internacional”.
Está
bom de ver que os problemas do País e os da comunidade internacional se
equacionam e resolvem através de políticas e com políticos.
Assim,
hoje se fala de políticas públicas, talvez para distinguir de políticas de
empresa ou de associação e de profissão. E, se a CRP estabelece políticas
económicas e financeiras, como é que trabalhadores esclarecidos, profissionais autónomos,
gestores, economistas, médicos, arquitetos ou engenheiros não hão de conhecer
regulamentos, leis e códigos que emanam de órgãos políticos e/ou de direção
estratégica e encará-los de forma crítica?
Por
isso, a introdução à política deveria constituir matéria curricular no ensino
básico e no ensino secundário. E não vale a pena tapar o sol com a peneira
argumentando que a educação para a cidadania é transversal a todas as
disciplinas. É-o, mas não o é suficiente. É mesmo necessário, para gerar
conformação com a Constituição e com os princípios gerais da educação, bem como
para cumprir os objetivos do ensino básico e do secundário, criar e manter uma
disciplina de “introdução à política”, que bem pode ser designada de “educação
para a cidadania” ou de “formação cívica”, desde que não receie a componente
política e não deixe de prestar informação e fazer formação adequada ao respetivo
nível de ensino sobre matéria política explícita.
***
O
Ministério da Educação foi criando sucessivamente a área-escola e a formação
cívica. Porém, a primeira não respondeu minimamente aos objetivos de cidadania e
política; a segunda serviu, o mais das vezes, para o diretor de turma acertar
contas com os alunos sobre faltas, comportamentos, recados e pouco mais. Agora,
resolveu-se o problema (?!) criando o nada ou remetendo o caso para a
transversalidade e instrumentalidade, confiando a tarefa de avaliar aos
professores das diversas disciplinas pesando já na classificação da respetiva
disciplina.
Finalmente,
oferece-se-me recordar que, muito embora hoje se apele à mobilização e
intervenção da sociedade civil (como contraponto à
intervenção política e dos políticos qua
tali), não é
justo esquecer que “civis” e “civitas” eram, no império romano, respetivamente o
homem (“vir”,
varão) que tinha o
direito e o dever de participar nas decisões da comunidade (o
cidadão) e o conjunto
desses homens (“cidade” por contraposição à “urbe”, “casario”). E aqueles termos latinos eram
os justamente equivalentes de “politês” e “pólis”, gregos. Depois, tínhamos em
Roma a “civilitas”, como ciência e arte de governar, igualdade de direitos,
civilidade, delicadeza; e na Grécia, “politicón”, como o mesmo sentido.
Assim,
para evitar equívocos, juntemos direitos (e deveres) civis e políticos e não os
separemos. De outro modo, sejamos cidadãos sem deixar de ser políticos, pois,
já Aristóteles ensinava que “o homem é um animal político”.
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