O mundo percebeu claramente quais as
ambições do novo governo grego para o seu povo. A consecução dos objetivos
passava pela afirmação reiterada Urbi et
Orbi das suas opções políticas e pela vontade de negociar com as instâncias
europeias todo o serviço da dívida: montantes, tempos, custos e outras
condições de satisfação dos respetivos encargos.
Ora, quem ganha eleições tem de saber gerir
a vitória e a governança. Quem governa sabe que não pode ignorar a realidade e
os compromissos que ela comporta. E quem negoceia percebe que tem de ceder, conquanto
não ceda no essencial. Tsipras e sua equipa, conhecida a vitória, trataram de a
cantar e de lhe apor a semântica requerida e expectável, retomando o conteúdo
essencial das promessas eleitorais. Porém, como a vitória clara não deu ao Syriza
a maioria absoluta no Parlamento, foi rapidamente construída uma coligação com
um partido de direita – o que revela que a euforia de esquerda a que Miguel
Angel Belloso, no DN, do passo do dia
6 (sexta-feira), chama de “orgasmo da esquerda caviar”, na Grécia foi relativamente
contida. Tanto assim é que os responsáveis vieram esclarecer que não está em causa
o pagamento da dívida, mas a indexação ao crescimento da economia, pedindo mais
tempo e menos juros.
Entretanto, a corrente dominante na Europa
– a corrente economicista e dos interesses de alguns, que se sobrepõem a todos
os mais – não desarma. Assim, um dos seus influentes paladinos e porta-vozes, o
mencionado colunista semanal “veneriano”, acusa: “Os intelectuais ‘progressistas’
– a esquerda caviar – recuperaram as ilusões com a vitória do Syriza na Grécia”.
E, para sublinhar o estado de ilusão e
infantilidade desses intelectuais espalhados um pouco por todo o mundo,
assemelha-os a “uma criança com sapatos novos”, já que acreditam estar aberto “o
caminho para uma era dominada pelo regresso da política, ali onde governava a
ditadura obscena dos mercados”.
E como é que ele explica aquela espécie de
orgasmo metafórico que lhe parece cómica? Admite o excelso intelectual e diretor
da revista espanhola Actividad Económica
que “os intelectuais do regime politicamente correto andam desorientados há
décadas”, uma vez que “pensaram que, com a crise do Lehman Brothers e a dura
recessão que se lhe seguiu, tinha chegado novamente a hora deles”. Tem razão o
colunista quando infere que a generalidade dos analistas do politicamente
correto estavam convictos de “que o capitalismo tinha fracassado tanto como o
comunismo”, equiparando factualmente a queda do Lehman Brothers e, em cadeia, a
crise do sistema financeiro, à derrocada do muro de Berlim e à subsequente
reunificação alemã e desabamento do império soviético.
Por outro lado, o alegado fracasso da 3.ª
via, proposta e encetada por Tony Blair e levada à prática por outros, a
guinada política à direita dos partidos socialistas e socialdemocratas, logo
que chegam ao Governo, e a descolagem das medidas governativas em relação às
promessas eleitorais, mal se inaugure novo ciclo governativo. têm dado ao
desbarato do descrédito a política e dela afastado o grosso dos cidadãos
eleitores. Por estas razões, Belloso crê ter razão quando supõe que os
intelectuais do regime politicamente correto se sentiram “de novo atraiçoados e
confusos”. E argumenta com os exemplos dos socialistas Hollande e Valls, na
França, e Renzi, na Itália. Em França, o governo socialista põe em marcha
políticas tendentes à redução da despesa pública, diminuição de impostos e
liberalização da economia, fomentando a livre concorrência e eliminado algumas
situações de privilégio. Por seu turno, os socialistas italianos, que Belloso chama
heterodoxos, promovem a flexibilização da legislação laboral perante os protestos
dos sindicatos, que veem aproximar-se a liquidação das suas “sinecuras”.
Face a esta situação, os corifeus da
transformação da sociedade, que julgavam ter ao alcance da sua mão o passarinho
da revolução, empunhando a bandeira dos pobres e desfavorecidos sentem o
desencanto da desilusão e gosto amargo da frustração:
O que nos resta? O que
poderemos esperar? Aonde iremos chegar se a grande França, pátria do
acolhimento e dos direitos sociais, se propõe diminui-los, ou na Itália
herdeira da eterna Roma governa um socialista heterodoxo? – perguntam-se,
segundo as palavras de Belloso.
Não obstante e por mais veemente e
agressivo que seja o discurso do citado colunista neoliberal, há que insistir
em que a questão deve ser colocada noutros termos. Não vale argumentar, como o
comum dos europeus que têm responsabilidades governativas, com o facto de os
gregos serem livres de fazer as suas escolhas políticas, mas terem de respeitar
os acordos e as opções dos eleitorados dos outros países. Apetece-me perguntar
se foram mesmo os eleitorados respetivos que obrigaram os governos alemão e
francês a vender aviões e sobretudo submarinos a preços astronómicos à Grécia e
a levá-la ao sistema das parcerias público-privadas como solução pontual para
determinados problemas de carência ou insuficiência de infraestruturas públicas.
Depois, a famigerada troika esteve a acompanhar in loco a execução do programa de ajustamento negociado com a
Grécia. Porque não urgiu a correção dos alegados (parece que reais) desmandos financeiros, económicos, políticos, fiscais e eivados de
corrupção? Afastou-se muda e calada para que as pedras atiradas de longe sejam
mais sonantes e firam mais? E porque é que se misturam todos os fatores de
dívida para o englobamento na dívida soberana? É verdade – todos o sabem – que a
dívida, que todos são chamados e obrigados a pagar, foi contraída por oligarquias
políticas, financeiras e económicas. E qual a sua responsabilidade?
É, a meu ver, justo que o novo Governo não
queira continuar a negociar com uma troika cujas diretivas em nada contribuíram
para resolver a situação calamitosa do país, mas somente serviram para
sobrecarregar um povo, adicionando mais austeridade a mais austeridade e aumentando
a dívida externa e o seu serviço. É natural que a Grécia pretenda solidariedade
europeia. Quando o diretório impôs investimento público, os Estados cumpriram;
agora, que as consequências do investimento público se tornaram gravosas, os
gregos e outros países têm de pagar a peso de ouro. Bonita solidariedade!
Não, não apareceu, senhor Bellso, uma
Grécia, “pátria dos clássicos, a quem tanto devemos, mas onde não houve
Renascimento nem chegou o Iluminismo”. Não sei nem me interessa saber se lá
chegou ou não o Renascimento. Mas sei dizer que o Renascimento se processou à
luz da arte e da literatura gregas, que Roma divulgou e à semelhança das quais
também construiu as suas artes e letras. Ademais o “século das luzes” não é
feudo da França nem o despotismo iluminado ou esclarecido foi exclusivo da
Áustria.
Nem sucedeu que “um senhor chamado Tsipras
se propõe desafiar os convencionalismos e a regra básica de qualquer sociedade
civilizada: que há que pagar o que se deve”. Quando é que este novel governante
pôs em causa o pagamento das dívidas? E se o fez, já se centrou nas exigências
da governação.
Diz o senhor Belloso que “os gregos já
tiveram muitas oportunidades e que, ao votarem no Syriza, queimaram o seu
último cartucho”. E pergunta-se:
“Porque haveríamos de
ter mais consideração para com os gregos do que para com os alemães que lhes
emprestaram quase cem mil milhões ou os pobres espanhóis que injetaram vinte
mil milhões em tempos tão difíceis e que esperam que estas dívidas possam ser
honradas como é próprio de gente honesta”?
Só que o ilustre colunista se esquece de quanto
e de quantos ajudaram a Alemanha ou então passou-lhe mesmo ao lado o dia 27 de
fevereiro de 1953:
O Acordo sobre a
divida alemã, avaliada em 32 biliões de marcos, foi assinado após duras
negociações com representantes de 26 países. Os EUA propunham o perdão da
dívida contraída após a II Guerra. Mas, ante a recusa dos outros credores, foi
perdoado cerca de 50% da dívida e feito o reescalonamento da dívida restante
para um período de 30 anos. Para uma parte da dívida este período foi ainda
mais alongado. E só em outubro de 1990, dois dias depois da reunificação, o
Governo emitiu obrigações para pagar a dívida contraída nos anos 1920. O acordo
visou, não o curto prazo, mas procurou assegurar o crescimento económico do devedor
e a capacidade efetiva de pagamento. O acordo adotou 3 princípios fundamentais:
perdão/redução substancial da dívida; reescalonamento do prazo da dívida para
um prazo longo; e condicionamento das prestações à capacidade de pagamento do
devedor.
Não há que ter piedade – afiança o
colunista – com os extremismos, que optam sempre por políticas económicas
erradas e levam à ruína os países onde têm possibilidade de governar. Mas julga
certo e equitativo perdoar ou reescalonar dívidas de um país que provocou duas
guerras mundiais e que se reconstruiu à custa de si mesmo, mas também à custa do
apoio e do trabalho dos outros?
O acordo de Londres, de 1953, tinha
uma caraterística que não se encontra nos acordos de hoje – a imposição de condições
também aos credores – e não só aos países endividados. Os países credores
obrigavam-se, na época, a garantir de forma duradoura, a capacidade negociadora
e a fluidez económica da Alemanha.
Agora, o próprio presidente da
Comissão Europeia e o presidente do BCE parecem já estar a ceder à Alemanha e
suas políticas em relação aos planos reformistas que enunciaram. A Alemanha terá
tentado condicionar as reivindicações gregas a troco de uns milhares de milhão.
E Belloso entende que o Syriza tem pouco a
ver com a esquerda convencional, que trata de tornar compatíveis os seus
devaneios com a despesa social, e o seu afã redistributivo com a manutenção dos
equilíbrios financeiros. O que, segundo ele, carateriza Tsipras é a
desconfiança natural da economia de mercado e o puro estatismo, não havendo
nada de bom a esperar dele.
Critica-o pela maneira como começou o seu
mandato, parecendo ignorar os montantes de que a Grécia precisa no imediato:
aumento do salário mínimo “até limites selvagens”, paragem do programa de
privatizações, contratação de mais funcionários, distribuição eletricidade
grátis aos cidadãos ditos excluídos, recuperação da televisão pública e outras enormidades.
Finalmente, Belloso critica a esquerda dita
caviar que, aumentando artificialmente a capacidade aquisitiva dos cidadãos, julga
que a procura sobe e um país cresce e gera emprego, mas que se esquece de que,
num mundo globalizado, as pessoas dos Estados livres e democráticos têm a
capacidade de escolher, não sendo obrigadas a comprar os produtos nacionais e
podendo acontecer que “o aumento do poder de compra sirva para enriquecer os
países que ofereçam os produtos de melhor qualidade ao melhor preço, que é o
santo-e-senha do capitalismo”. Mas – diga-se em abono da crua
verdade – é o universo dos números anónimos, o reino dos cifrões!
Aonde chega a defesa intempestiva de uma
ideologia e de uma práxis, orientada num único sentido sem olhar a meios,
esquecendo, talvez premeditadamente, o sentido da História e o seus fluxos e
refluxos!
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