segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Culturas femininas: igualdade e diferença

Decorrerá, em Roma, de 4 a 7 de fevereiro, a assembleia plenária 2015 do Pontifício Conselho da Cultura em torno da temática “Culturas femininas: igualdade e diferença”, referenciada em epígrafe, procurando responder a questões sobre o papel das mulheres na Igreja Católica.
O encerramento do encontro ficará marcado por uma audiência concedida pelo Papa aos participantes e o resultado institucional mais visível será a criação de um organismo permanente de consulta às mulheres.
Na apresentação que hoje fez do evento à comunicação Social, o Cardeal D. Gianfranco Ravasi, presidente deste departamento pontifício, diz que é necessário encontrar um lugar “original” para a presença feminina na Igreja. A este respeito, lamenta que a discussão se venha centrando quase exclusivamente na questão do “sacerdócio feminino”, um debate algo “clerical” que prejudica o desejável esforço de “encontrar um lugar próprio, original, para as mulheres”, um espaço que seja “expressão da maternidade da Igreja”.
Frisa também o eminente purpurado que as mulheres têm sido sistematicamente excluídas “do jogo da economia, da política, da sociedade”. E mais lamentável do que isso é a barbárie da violência sobre as mulheres que continua a manchar o mundo atual. “Todos os dias há mulheres mortas à face da terra, pelas razões mais absurdas”, confessou à Agência Ecclesia o presidente do Pontifício Conselho da Cultura, em declarações a respeito da próxima assembleia plenária.
Sobre a temática, explicitou que a expressão ‘culturas femininas’ se refere à “perspetiva” específica das mulheres e não a uma divisão com a visão “masculina” do mundo.
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A base da discussão é o documento de trabalho elaborado por um grupo de mulheres à luz das considerações pastorais enviadas pelos membros e consultores do Pontifício Conselho da Cultura, que assinala a prostituição como “a forma mais difundida de escravidão”, mesmo nas sociedades democráticas e denuncia “o aborto seletivo, o infanticídio, as mutilações genitais, os crimes de honra, os matrimónios forçados, o tráfico de mulheres, abusos sexuais, violações”.
Paralelamente, para preparar a sua próxima reunião magna, aquele departamento da Santa Sé lançou uma campanha nas redes sociais com o marcador (hashtag) ‘#LifeOfWomen’ [Vida das Mulheres], partindo de um vídeo explicativo, em italiano e inglês, disponível no YouTube e no site do dicastério da Cúria Romana, devendo os trabalhos mais significativos ser expostos na sessão de abertura da predita assembleia plenária.
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O referido documento de trabalho começa, na premissa, por citar Edith Stein, que declara:
Estou convencida de que a espécie humana se desenvolve como espécie dupla varão e mulher, que a essência do ser humano, à qual não deve faltar nenhuma caraterística, tanto num como na outra, se manifesta de maneira dupla, e que toda a estrutura da essência coloca em evidência esta marca específica.
E, salientando, o contributo dos membros e consultores, “tratará de captar alguns aspetos das culturas femininas para identificar possíveis itinerários pastorais”, que levem as comunidades cristãs a escutar o mundo contemporâneo e a dialogar com ele nestas matérias. Precisando o sentido da expressão culturas femininas, assegura a consciência de que existe um olhar próprio das mulheres sobre o mundo, o que nos rodeia, a vida e a experiência – captável em todos os setores onde a mulher intervém.
Historicamente, distribuíam-se rigidamente os papéis e funções entre homem e mulher. Ao homem cabia a responsabilidade, a autoridade e a presença na esfera pública (a lei, a política, a guerra, o poder); à mulher, a reprodução, a educação e o cuidado da espécie no âmbito doméstico. A mulher exercitava os seus próprios talentos na família e nas relações pessoais, sendo excluída da esfera pública – exclusão a que escapavam as imperatrizes e rainhas. Porém, os meados do século XIX inauguraram o questionamento de tal situação: as mulheres reivindicam igualdade, não aceitando o papel de segundo sexo e exigem os mesmos direitos (voto, acesso à instrução superior e às profissões). Todavia, o caminho aberto à paridade entre sexos não está isento de dificuldades. No passado (e ainda hoje), as mulheres tiveram de lutar pelo exercício de profissões e assunção de papéis decisórios, antes destinados apenas aos homens. Isto sucedeu e sucede à escala planetária e nas diferentes culturas e ideologias.
Assim, a assembleia plenária esforçar-se-á por captar a especificidade feminina, considerando temas como função, papel, dignidade, igualdade, identidade, liberdade, violência, economia, política, poder, autonomia, etc. E a reflexão será orientada por quatro temas considerados basilares: entre igualdade e diferença, a procura de um equilíbrio; a generatividade como código simbólico; o corpo feminino, entre cultura e biologia; e as mulheres e a religião (fuga ou novas formas de participação na vida da Igreja?). Cada tema é, no documento, objeto de pequena glosa, seguida de um grupo de pertinentes questões de reflexão(exceto o tema 4 em que a glosa vem ensanduichada pelas questões), de que passamos a uma breve síntese.
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Tema 1 - Entre igualdade e diferença: a procura de um equilíbrio. As mulheres tentam conciliar a vida profissional com os compromissos familiares. Ora, se não renunciam à maternidade, assumem o dever de alimentar, educar e proteger os filhos. Mesmo não casadas e sem filhos, acolhem, incluem, procuram a mediação e são capazes de ternura e perdão mais do que os homens. Além do modo peculiar de encarar a progenitura, há diferença entre feminino e masculino “nas técnicas de resolução de problemas, na perceção do ambiente, nos modelos de representação e ciclos de repouso”, entre outros aspetos. A abolição das diferenças empobrece a experiência pessoal. Nesta ótica, é de rejeitar uma neutralidade imposta e valorizar a diferença. A onda igualitária – contínua e atingente a todos os âmbitos da vida social e de quase todas as instituições humanas e culturas – é tão forte que, no Ocidente, se chegou a negar qualquer diferença. Mas, ao reivindicar a paridade, raramente as mulheres renunciam à própria diferença.
Algumas questões
Uma mesma situação, com um protagonista masculino, teria obtido a mesma resposta? Iguais e diferentes, as duas coisas ao mesmo tempo?
A diferença (entre homem e mulher) gerou uma desigualdade radical. Onde se devem procurar as suas raízes? A questão do género pode ligar-se a esta visão desigual entre homem e mulher, donde deriva a pretensão de criar-se uma identidade cultural?
Pode haver alguma relação, especialmente ao nível das tensões sociais? As categorias de reciprocidade e complementaridade serão uma chave de leitura e um itinerário possível de vida, ou é necessário identificar outras categorias?
Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou: homem e mulher os criou (Gn 1,26-27). Que linguagem poderíamos usar hoje para tornar compreensível esta palavra?
Tema 2 - A generatividade como código simbólico. Estudos éticos e jurídicos mostram que a generatividade é um dos temas mais debatidos e controversos no panorama cultural, social e político do Ocidente. Daí resulta a decisão de ler esta categoria em chave simbólica, evitando leituras mais complexas (de tipo sociológico, jurídico e bioético) que requereriam análise mais detalhada e tempos mais alargados de investigação e debate. Um percurso generativo divide-se em 4 momentos: desejar, iluminar, cuidar e deixar andar. A generatividade, como ato antropológico originário e código simbólico, manifesta-se nos espaços pedagógicos (educação da fé, atividade pastoral, formação escolástica), vivificando estruturas sociais, culturais e económicas conotadas com valores, ideias, princípios e práticas em prol do bem comum, desenvolvimento humano integral e compromisso solidário. Porém, a generatividade gira em torno do corpo da mulher, já que o universo feminino, por predisposição natural, espontânea, biofisiológica, desde sempre protege, conserva, cuida, apoia, cria atenção, consenso e cura em torno de quem é concebido, se desenvolve, nasce e cresce.
Algumas questões
O primeiro contacto com o mundo e primeiro olhar sobre a vida do ser humano têm um destinatário feminino. Reconhece-se suficientemente o valor das mulheres neste segmento imprescindível da vida humana?
Reconhece-se o papel central das mulheres que acompanham até à plenitude do humano na sociedade e na Igreja em todas as latitudes? O trabalho do “cuidar” continua a ser coisa de mulheres (anjos do lar)? Tem reconhecimento económico? Como traduzir esta expressão a nível social? E na Igreja?
O nascimento de novas modalidades e espaços generativos (relações, amizades, apoio, solidariedade, etc.) pode ser facilitado pela rede virtual. Que espaços encontram as mulheres no mundo das comunicações sociais para se expressar?
Tema 3 – O corpo feminino: entre cultura e biologia. Para a mulher – como para o homem – o corpo é, em sentido cultural e biológico, simbólico e natural, o lugar da identidade: “sujeito, meio, espaço de desenvolvimento e da expressão do eu, lugar de convergência de racionalidade, psicologia, imaginação, funcionalidade natural e tensão ideal”. O corpo feminino “coloca-se como filtro de comunicação com o outro, num intercâmbio, contínuo e inevitável, entre indivíduo e contexto”. Mas a identidade feminina está na convergência da fragilidade quotidiana, da vulnerabilidade, da mutabilidade, do múltiplo, entre a vida emotiva interior e a fisicidade exterior. Assim, cabe a denúncia de graves e alastrantes distorções:
A cirurgia estética configura uma das muitas manipulações do corpo que exploram os seus limites quanto à identidade, com uma especificidade hodierna que sujeita a mulher a pressões, a ponto de provocar patologias várias (dismorfofobia, transtornos da alimentação, depressão...) ou amputar as possibilidades expressivas do rosto humano ligadas à capacidade empática. Esta cirurgia, quando não é médico-terapêutica, pode expressar agressão à identidade feminina, mostrando a rejeição do próprio corpo enquanto rejeição da vida que se está a atravessar.
Depois, o uso indiscriminado e indiferenciado que a comunicação, em todas as declinações, desde a publicidade (alusão sexual e denegrição do papel feminino) aos media, operou no corpo feminino, é um exemplo incontestável de uma verdadeira agressão ao corpo feminino.
A indigência feminina é outro flagelo. Segundo estimativas da ONU, mais de 70 % das pessoas que no mundo vivem na indigência são mulheres: pobres, incultas, em condições de exploração, de perigo, de sujeição, de dificuldade – graves situações que lhes limitam profundamente as possibilidades de conhecimento, informação, emancipação e libertação. São mulheres mutiladas pela depressão, desarmadas, sem coragem e sem valor, sujeitas aos homens, dispostas a aceitar a presumida inferioridade, condicionadas pelos costumes e culturas.
“A pobreza é, assim, causa e consequência da violência sobre as mulheres”. Em tal cenário, o corpo da mulher converte-se no lugar simbólico do nada, do ser-objeto, através da ocultação, mutilação e constrição do corpo, até à eliminação da subjetividade e de qualquer expressão de vida e de pensamento”.
Neste caso, se enquadra a prostituição, a forma mais difundida de escravidão, também nas sociedades civis e democráticas. Quando se fala da violência perpetrada contra as mulheres, começando pelas meninas, fica evidenciada a violação dos princípios e valores sancionados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e das subsequentes leis nacionais e internacionais em defesa e proteção dos direitos humanos que evocam o mandamento bíblico de não oprimir o órfão e a viúva (Ex 22,21).
E mais: O femicídio, o homicídio da mulher enquanto mulher (para apoderar-se de algo que se considera um direito exclusivo, recorrendo à humilhação e à violência, física ou psicológica), o aborto seletivo, o infanticídio, as mutilações genitais, os delitos de honra, os matrimónios forçados, o tráfico de mulheres, abusos sexuais, violações – em algumas regiões, violações em massa ou étnicas – são das feridas mais profundas infligidas quotidianamente à alma do mundo passando pelo corpo das mulheres e das meninas, vítimas silenciosas e invisíveis.
A violência doméstica – exercida pelos homens, pais, maridos ou irmãos – é a primeira causa de morte no mundo para as mulheres entre os 16 e os 44 anos.
Algumas questões
Porque é que uma mulher é assassinada por um marido, companheiro ou ex-companheiro de anos de vida, pais de filhos que criaram juntos? Por que é que uma mulher, ao primeiro empurrão ou às primeiras palavras brutais, não afasta de si para sempre o homem que a ameaça, e que queima, destrói e profana o amor conjugal até ao extremo?
“A cirurgia estética é como uma burca de carne” – definição dada por uma mulher. Salvaguardando a liberdade de escolha de cada um, não estaremos sob o jugo cultural de um modelo feminino único?
O corpo expressa o ser de uma pessoa, mais do que uma dimensão estética autorreferencial. Como evitar uma aproximação puramente funcional (sedução, comercialização, utilização com fins de mercado) ao corpo da mulher? Pensamos nas mulheres usadas na publicidade e na comunicação de massa?
De geradores de vida a produtores. O horizonte científico interpela-nos: um cenário onde se concebe sem ter em conta o corpo, sobretudo feminino, onde o chamamento à existência de um ser humano acontece sem relação, primeiro com os pais e depois entre mãe e filho, não significa uma deriva rumo ao corpo como produtor e não como gerador?
Podemos ignorar a sofisticada interação entre cultura, biologia e tecnologia?
Tema 4 - As mulheres e a religião: fuga ou novas formas de participação na vida da Igreja? Temos de escutar o desconforto espiritual das mulheres ante uma iconografia feminina obsoleta. Os “padres” do Concílio Vaticano II, dirigindo-se às mulheres, declaram:
Chegou a hora em que a vocação da mulher se realiza em plenitude, a hora em que a mulher adquire na cidade uma influência, um alcance, um poder jamais conseguidos até aqui. É por isso que, neste momento em que a humanidade sofre uma tão profunda transformação, as mulheres impregnadas do espírito do Evangelho podem tanto para ajudar a humanidade a não decair.
E a Comissão de Estudo sobre a Mulher na Sociedade e na Igreja lança o apelo e advertência:
[Homens e mulheres] contribuam com a riqueza do próprio dinamismo para a construção do mundo, porque hoje é urgente, tanto na sociedade civil como na Igreja, um trabalho para despertar e promover a mulher. Trata-se de proteger a dignidade da mulher respeitando sempre o que é genuinamente feminino (esta é a verdadeira igualdade), e evitando que a mulher, no seu legítimo esforço para se inserir responsavelmente numa sociedade marcadamente machista, perca a sua feminilidade. No respeito desta originalidade da mulher baseia-se o verdadeiro desenvolvimento da posição da mulher.
Inegavelmente, são as mulheres as primeiras que acreditam, as primeiras testemunhas. São elas a quem Francisco pediu que continuem a levar o anúncio de esperança e ressurreição. Elas representam para a Igreja a fortaleza silenciosa da fé. Constituem um exército de mestras, catequistas, mães e avós que, olhando de perto a realidade, são figuras que parecem pertencer a um mundo antigo em vias de extinção. Todavia, hoje as mulheres já não passam a tarde a rezar o terço ou em devoções piedosas. Muitas são trabalhadoras, diretoras ocupadas como os homens, e às vezes mais, porque recai sobre elas o cuidado da família. Alcançam com esforço postos de prestígio na sociedade e no trabalho, mas não lhes corresponde nenhum papel de decisão ou de responsabilidade na comunidade eclesial. Ora, como diz o Papa, as mulheres têm um papel central no cristianismo, papel que tem de ter correspondência na vida normal da Igreja. Todavia, as vozes femininas sensatas não pretendem arrancar vestes ou lugares aos homens, subvertendo a relação de poder entre sexos nem colocar-se um barrete púrpura, em detrimento do reconhecimento das mulheres com todas as suas peculiaridades femininas. O objetivo realista será abrir às mulheres as portas da Igreja para que ofereçam a sua competência, sensibilidade, intuição, paixão e dedicação, em plena colaboração e integração com a componente masculina.
Algumas questões
Que anúncio querigmático, não redutível a uma visão moralista, haverá para as mulheres?
Que indicações para uma prática pastoral, um caminho vocacional rumo ao matrimónio e à família, rumo à consagração religiosa, considerando a consciência de si que adquiriram as mulheres?
Porque há tão poucas respostas e tão inadequadas à valorização do corpo, do amor físico, e aos problemas da maternidade responsável?
Porque é que uma presença tão grande de mulheres na Igreja não incidiu nas suas estruturas ou porque se atribuem à mulher na prática pastoral só as tarefas que se enquadram num esquema algo rígido de resíduos ideológicos e ancestrais?
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Que espaços se propõem às mulheres na vida da Igreja? É tida em conta a sua nova e diferente sensibilidade cultural, social, identitária? Continuam a propor-se modalidades de participação a partir de esquemas masculinos?
Perguntámo-nos sobre que tipo de mulher necessita a Igreja? Pensa-se e elabora-se juntamente com elas a sua participação ou entregam-se-lhes modelos já elaborados que não respondem às suas expectativas ou que respondem a perguntas já superadas? Estão as mulheres a fugir da Igreja?
Quais as caraterísticas da presença das mulheres nas diversas sociedades e culturas a partir de que poderemos extrair inspiração para uma renovação da pastoral e permitir uma ativa participação na vida eclesial?
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Não vamos participar na assembleia plenária de fevereiro do PCC, mas podemos refletir! E na reflexão podemos lançar o olhar sobre o corpo de Cristo apresentado no Templo (2 de fevereiro) e hoje tão maltratado no corpo de tantos e tantas que sofrem a ganância e o capricho e humano.

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