A propósito da elevação de 20 personalidades ao
cardinalato no consistório do próximo dia 14 de fevereiro, segundo a
publicitação feita pelo próprio Papa por ocasião da recitação do Angelus na
Praça de São Pedro, a 4 de janeiro, que inclui o Patriarca de Lisboa, ocorre-me
pequena reflexão sobre a missão dos cardeais. Para o efeito, valer-me-ei da
carta aberta que Sua Santidade endereçou, naquele mesmo dia, aos futuros
purpurados e a um pouco de História.
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Segundo o Bispo de Roma, os designados para o
cardinalato são chamados a novo serviço, “um serviço de ajuda, apoio e proximidade especial
à pessoa do Papa e para o bem da Igreja”. Mais: “o cardinalato é uma vocação”
para o exercício desta “dimensão de serviço” ao Papa e à Igreja.
Mais
do que a dignidade cardinalícia, que alguns indevidamente consideram como “um
prémio, o ápice duma carreira, uma dignidade de poder ou de distinção superior”,
Francisco sublinha, contra o carreirismo, o significado do “ser cardeal”: incardinar-se na Diocese de Roma para dar
testemunho da Ressurreição do Senhor e dá-lo totalmente, até ao sangue se
necessário. E, embora reconheça que os cristãos se alegram pela sua
ascensão ao cardinalato e a festejarão como bons cristãos (porque é próprio do cristão rejubilar e festejar – releva o Pontífice), convoca os designados
para a púrpura a aceitarem humildemente o cargo, rejeitando toda a mundanidade,
“que embriaga mais do que o álcool em jejum, desorienta e separa da cruz de
Cristo”.
Neste sentido, o Papa aconselha a cada um a “oração e um pouco de
penitência” e faz votos de “muita paz e alegria”. Porém, em relação à missão de
serviço, exprime-se na 2.ª pessoa:
“Far-te-á bem ao coração
repetir na oração a expressão que o próprio Jesus sugeriu aos seus discípulos
para que se mantivessem em humildade: Dizei: ‘Somos servos inúteis’, e não como fórmula de boa educação mas como
verdade depois do trabalho, ‘quando
terminastes tudo o que vos foi ordenado’ (Lc 17,10).
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O
termo “cardeal” provém etimologicamente do vocábulo latino cardo/cardinis, que significa gonzo, quício, couceira (peça ou
artefacto de metal e sobre o qual o batente – de porta ou janela – pode ser
girar ou ser movimentado). De cardo, derivou-se o adjetivo
relacional cardinalis / cardinale (de gonzos, de porta ou,
figuradamente, principal). Assim, o Bispo de Roma começou a dispor de bispos que se
encarregavam das cidades / dioceses satélites de Roma (suburbicariatos), dos presbíteros (padres) titulares das paróquias
de Roma e dos respetivos diáconos – que o ajudavam no seu múnus episcopal e
também no exercício do ministério petrino. Sendo eles os homens em que se
apoiava o Papa na sua ação pastoral, eram os episcopi cardinales (os bispos principais ou cardeais), os presbyteri cardinales (os presbíteros principais
ou cardeais)
e os diaconi cardinales (os diáconos principais ou
cardeais).
Daí até que o termo cardinales passasse
outra vez de adjetivo relacional a nome foi um pequeno passo.
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O
cardinalato é, como se vê, uma instituição ligada ao exercício do primado do
Romano Pontífice, para ajudar o Papa no governo da Igreja e sempre se manteve ligado
ao primado, dele dependente na composição e atribuições. Surgiu num período de
grande reforma da Igreja e para assegurar o seu êxito e continuidade. Foi no início do 2.º
milénio que esta instituição teve o seu aparecimento, precisamente no
Pontificado de S. Leão IX (1049-1054), o primeiro Papa santo,
depois de 42 Papas consecutivos que não foram adornados com esse título.
Diga-se entre parêntesis
que, no 1.º milénio, o título de santo se atribuía com mais facilidade do que
hoje. Todavia, é sintomático que até ao ano 530 todos os legítimos Bispos de
Roma tenham obtido esse título e a partir daí, com Bonifácio II, o tenham
perdido. Até 884, o título ainda aparece com alguma frequência, mas com Estêvão
VI (885-891), o imediato predecessor do Papa Formoso, o título
desaparece, reaparecendo somente em 1049, justamente com o Papa que instituiu o
cardinalato.
No século X e primeira
metade do século XI, a Igreja de Roma atravessou o período obscuro, o do chamado
“século de ferro”. A Cátedra de Pedro, posta à mercê de umas poucas famílias
romanas, ao sabor dos próprios interesses e de amigos, foi ocupada por pessoas
que não estavam à altura. Por isso, Roma deixara de ser o ponto de referência
pastoral e espiritual. Porém, foi nesse período que se deu a reforma de Cluny,
que depressa extrapolou a vida monástica para o tecido eclesial, penetrando
mesmo nalgumas cortes europeias, que se tornaram viveiros de santos e onde se
encontrou força travar a crise que atingira o Papado. A partir de 1046,
assomou no topo da Igreja uma série de Papas, na maioria alemães, criaturas do
Imperador, mas escolhidas para reformar a Igreja de Roma e dar continuidade a essa
reforma. É a “reforma gregoriana” – do nome do maior impulsionador, o Papa
Gregório VII – reforma que se manifesta basicamente em duas frentes: moralidade
do clero e autonomia ante o poder civil.
Para lograr os objetivos
reformistas, Leão IX rodeou-se de eclesiásticos – sobretudo monges – amigos da
reforma. Entre eles, sobressaem os monges Humberto e Hildebrando, os futuros
cardeal Silva Cândida e papa Gregório VII; e o arcediago de Liege, Frederico de
Lorena, futuro Papa Estêvão X. A modalidade encontrada para integrar na
estrutura eclesiástica da Igreja Romana esses colaboradores externos foi a dos
“cardinales”, cognominação que então se dava aos bispos e sacerdotes
encarregados de ministrar sacramentos e presidir aos serviços litúrgicos, por
turnos, nas Basílicas romanas. Com Estêvão II (752-757) eram “cardinales” os
bispos das 7 dioceses suburbicárias ou da periferia da Urbe (Roma), e os padres que presidiam às igrejas “titulares” de
Roma, correspondentes às atuais igrejas paroquiais. Esses bispos e presbíteros
eram “cardinales”, que serviam por turnos nas basílicas romanas – os bispos, na
Basílica de São João de Latrão; os padres titulares, nas de São Pedro, São
Paulo, Santa Maria Maior, São Lourenço, etc. O termo “cardinal” não significava
posição hierárquica, mas apenas implicava funções litúrgicas fora das próprias
igrejas. Se eram eminentes, era pela sua posição de chefes das igrejas a que
presidiam.
Até Leão IX, o Papa, mais
no enfoque de Bispo de Roma que de Pastor Universal, era assistido no governo corrente
da sua Igreja, inclusive no múnus petrino, pelo clero romano: padres e diáconos.
Nas questões mais relevantes, era assessorado pelo Sínodo, em que participavam
os bispos suburbicários, os da Itália central e os de outras dioceses que
eventualmente se encontrassem em Roma. No caso de sede vacante, o governo da Igreja Romana pertencia ao clero romano,
representado por um triunvirato: o arcipreste
(o chefe dos padres ou presbíteros), o arquidiácono ou
arcediago (o chefe dos diáconos) e o primicério (o primeiro dos notários palatinos, ou seja, da Casa
Episcopal). Era
uma estrutura e uns procedimentos em parte comuns a outras dioceses. Mas
o sistema transforma-se com a reforma do século XI. Aos colaboradores externos
o Papa confere cargos que os tornam “cardinales”, confiando-lhes dioceses “suburbicárias”
ou igrejas “titulares”, isentando-os dos serviços litúrgicos e associando-os ao
governo da Igreja. “Cardinal” passa assim de adjetivo a nome com a semântica de
serviço e dignidade. Deste modo, os titulares das dioceses suburbicárias e das
chamadas igrejas “titulares” já não são sempre membros do clero romano. Estes novos
titulares, espécie de adidos, ficam dispensados do serviço litúrgico, embora
conservem a categoria, e passam a colaborar no governo da Igreja, quando, dantes,
os “cardinales” se cingiam à liturgia, designadamente a ministração dos
sacramentos. Vêm a ser considerados os “cardines” (quícios) da Igreja Universal,
integrando o chamado sacro colégio,
tanto assim que S. Pedro Damião, em 1057, diz que os 7 bispos cardeais, ou
seja, os 7 bispos suburbicários, participam com Pedro do poder supremo da
Igreja. E é em 1059 que Nicolau II reserva a estes bispos a eleição do
Papa.
A Igreja de Roma, que até
à primeira metade do século XI era considerada a sede do Bispo de Roma, começa
agora a identificar-se com a Igreja Universal. E os cardeais vêm ganhar
supremacia em relação aos bispos. E, no cisma que contrapôs Gregório VII
ao antipapa Clemente III (1080-1100), este foi apoiado pelos
cardeais presbíteros e diáconos, passando também estes cardeais a adquirir
poder sobre os demais bispos. Gregório VII tentou diminuir o poder dos
cardeais no governo da Igreja, mas a política centralizadora que promoveu,
acabaria por reforçar-lhes o poder com os seus sucessores.
Com Pascal II (1099-1118) o colégio cardinalício já está organizado em três
ordens: 6/7 bispos, 28 padres e 18 diáconos, na maioria italianos. Constituíam
um estável órgão de governo de apoio ao Papa. Sob Calixto II (1119-1124), são chamados “senadores”, com primazia no que se
refere ao múnus apostólico. E é por serem senadores, na linha dos titulares do
senado da antiga Roma, que se vestem de púrpura. E o Papa, o principal dos “senadores”,
também era purpurado, até que o dominicano Michele, eleito Papa Pio V, impôs como
condição permitirem-lhe o uso do seu antigo hábito da Ordem dos Pregadores. E assim
os papas usam o hábito branco.
Em 1130, já as três
ordens de cardeais participaram na eleição do sucessor de Honório III. No
segundo Concílio Lateranense (1141), os cardeais bispos são
encarregados de desempenhar as funções do Sínodo Romano, mas é todo o Colégio
Cardinalício que é o órgão supremo do governo da Igreja. O Concílio Lateranense
III (1179) confirma os cardeais no poder de eleger o Papa, por maioria
de dois terços e confere a todos os cardeais os mesmos direitos. Doravante, é
constante a sua participação no governo da Igreja, assessorando o Papa; e, sede vacante, governam a Igreja e elegem
o novo Papa.
Em finais do século XI, é
regular a reunião do consistório que, aos poucos, substitui o Sínodo Romano. O
reforço do consistório assinala uma mudança, não sem resistências, em termos
eclesiais: o exercício da autoridade passa dos bispos aos cardeais e a do
Sínodo Romano ao consistório. Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo
de Braga, em visita aos cardeais, por ocasião do Concílio de Trento, censura os
comportamentos hegemónicos dos cardeais sobre os bispos, sendo estes de
instituição divina e aqueles de mera instituição eclesiástica.
A Igreja de Roma, mercê
de circunstâncias e condicionamentos históricos, tornara-se a única sede
importante do Ocidente, ao passo que as Igrejas Orientais católicas, que podiam
exercer uma influência moderadora na manutenção das ancestrais estruturas de
participação no governo eclesial, ficaram totalmente separadas, seguindo a própria
via e tradição. Grandes Igrejas do Ocidente, quase parceiras da Romana, como a
do Norte de África e a da Espanha visigótica, sucumbiram ao Islão. A única
Igreja florescente de então é a da Inglaterra, que emerge da Igreja Romana, com
as tradições e praxes canónicas desta. Quando, sob os Carolíngios, se realiza a
unidade europeia, é a práxis da Igreja Romana que se instaura e difunde. Daí resultou,
de forma pacífica, o fenómeno da centralização do Papado como fator de
fortalecimento do Ocidente, que emergia de uma grave e profunda crise. No
Pontificado de Inocêncio III (1198-1216), o mais significativo
da centralização medieval da Igreja, o consistório reúne-se regularmente três
vezes por semana. E, durante toda a Idade Média, tem reuniões regulares para
deliberar e decidir sobre as questões mais importantes, quer de ordem
espiritual quer temporal.
Na crescente organização
da Cúria Romana, o Sacro Colégio mantém-se no topo, unido ao Papa no governo da
Igreja, sendo o seu contributo sempre de auxílio e não de controlo ou
diminuição da ação papal. No entanto, registam-se várias tentativas da parte
dos cardeais de condicionar o Papa, através de “capitulações” ou compromissos
feitos durante o conclave e tendentes a obrigar o eleito a aceitar algumas
exigências dos cardeais, mas todas essas “capitulações” foram, total ou
parcialmente, revogadas pelo Papa eleito. Por outro lado, pontificados
breves e prolongadas situações de sede
vacante (20 meses, em 1241; e 32, em 1268) favoreceram a importância
dos cardeais, que não chegou a consolidar-se. Cabe, entretanto, ao camerlengo
administrar da propriedade e a receita da Santa
Sé, determinar formalmente a morte do Papa e servir de Chefe de Estado sede vacante, mas competindo o governo à
congregação geral dos cardeais. E compete ao protodiácono
anunciar ao mundo o Papa eleito.
Também a
composição numérica do Sacro Colégio variou através dos tempos em proporção
inversa entre importância e quantidade. No início do século XII, os cardeais
são 53; no século seguinte, não superam os 20 e, por vezes reduzem-se a 10. Na
situação sede vacante de 1254, os
cardeais que elegem Alexandre IV são apenas 13. Em 1261, Urbano IV foi eleito
por 8 cardeais e, em 1277, Nicolau III foi-o por igual número. A estabilidade
no número de cardeais foi estabelecida por Sixto V, que o fixou em 70. Foi o
Papa João XXIII quem estatuiu que todos os cardeais (independentemente da ordem que integrem) recebessem a ordenação episcopal
e superou o número limite da composição do Sacro Colégio. João Paulo II irá
ainda mais longe no número e internacionalização do Sacro Colégio. Paulo
VI estabeleceu como limite de idade os 80 anos para a participação no conclave
e o número de 120 de cardeais eleitores e decretou que os Patriarcas das Igrejas Católicas de Rito Oriental elevados ao Colégio
Cardinalício passam a integrar
Ordem dos cardeais-bispos ficando hierarquicamente a seguir aos demais
cardeais-bispos suburbicários. Também a partir de João XXIII, os cardeais-bispos, embora
recebam o título de uma igreja suburbicária de Roma não possuem quaisquer poderes de
administração sobre as mesmas dioceses, que possuem um outro bispo residencial.
Hoje, os cardeais, qua tali, têm funções bastante reduzidas:
colaboram com o Santo Padre no exercício da sua função primacial, mas mais
integrados nos organismos da Cúria Romana (nem sempre
são presididos por cardeais) do que através de verdadeiros consistórios, que são
mais reminiscências históricas que estruturas efectivamente decisionais. O
consistório hoje serve mais para formalizar certas decisões, que para as
discutir ou decidir. O poder mais significativo que o Colégio Cardinalício
mantém é o de eleger o Papa, prerrogativa que se reduz à escolha de uma pessoa,
mas que, indiretamente, pode comportar a opção de uma linha de pontificado.
Dada porém a total autonomia que o eleito goza, essa determinação torna-se
relativa.
Em suma, o serviço de um cardeal
é aconselhar e coadjuvar o Papa (e até
representá-lo nalgumas missões significativas) no governo da Igreja Universal na solicitude
por todas as Igrejas.
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